O fim de tudo, de Luiz Vilela
Por Pedro Fernandes
Desde
Machado de Assis, é possível distinguir entre os escritores brasileiros, uma
vertente do conto só encontrada por aqui. É que em grande parte a narrativa curta se distanciou do elemento poético ou das situações reflexivas comuns
em outras literaturas e aproximou-se do trivial e corriqueiro.
Isto é, nossa contística afeiçoou-se mais à crônica e figura não como uma
narrativa enquadrada numa moldura, um recorte fotográfico, para voltar às
relações descritas por Julio Cortázar, mas como um fotograma – o recorte também
de molde da fotografia, mas interessado em não desprezar o movimento contínuo
que se nota, por exemplo, na novela ou no romance. É claro que, determinadas maneiras
clássicas de assunção da narrativa curta, tem raízes profundas entre nós, sobretudo,
se olharmos a partir dos exercícios construídos por uma Clarice Lispector; mas,
mesmo a escritora de Laços de família,
se isolarmos a diversa quantidade de simbologias, propositalmente umas – outras
não –, construídas, produziu autênticos retratos do cotidiano mais corriqueiro.
A leitura
recente de alguns contos de Liev Tolstói somada do contato anterior com a prosa
nacional é o motivo dessa observação. No escritor russo, prevalece quase o
registro da vida cotidiana, mas a narrativa é quase sempre vestida de uma
grande história, nascida certamente da relação de quem escreve com as experiências
vividas e da maneira como enxerga seu tempo e os acontecimentos. Talvez a
primeira possibilidade signifique para a narrativa o tom não-artificial com que
as situações são desenvolvidas; é caso ainda de se averiguar com profundidade e
não com uma suposição gratuita para um texto breve.
Fato é que, algumas
narrativas nossas, por vezes, soam criadas
demais e não convencem o leitor de sua realização; não é o caso de que tudo
o que for narrado pela ficção tenha de ter acontecido fora dela – a questão tem
a ver como se conta. E nisso pode-se dizer que o escritor russo também foi um mestre, ao contrário de muitos nomes da nossa literatura. Pisar em falso também não é uma exclusividade nacional; os
melhores contistas têm suas narrativas medíocres. Tolstói as tem. Outro exemplo? Alguns contos da escritora
ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 2013, Alice Munro, uma autora que dedicou
todo seu trabalho de escrita à narrativa curta, tem alguns dos textos que mais
soam como um falsete, sobretudo quando carrega muito nas tintas no ir e vir
psicológico, que algumas outras peças suas geniais. Não dá para exigir
tudo sempre do melhor de um escritor.
Agora, no
Brasil, assim como são poucos os nomes que escrevem deveras um conto, com a devida força, poucos são os que se dedicaram
mais a essa forma narrativa; essa afirmativa não é generalizada e sim limitada
pelo horizonte de leitura de quem escreve. Sempre quando se pensa numa Alice
Munro – não pelo estilo, mas pelo trabalho exclusivo, logo se associa por aqui um Dalton
Trevisan, um dos nomes quase unânime entre os leitores quando o assunto é a
narrativa curta. O curitibano tem ainda outra característica que a de nos
deixar esperando pelo medíocre porque a construção de sua narrativa responde
por uma perfeição quase irretocável. Há ainda Rubem Fonseca, embora não se possa dizer
sobre este a maneira como Trevisan elabora o conto. Depois do curitibano, não
adianta insistir, a memória não alcança citar outros por muito que se saiba que todos os grandes escritores da nossa literatura praticaram a narrativa curta; no caso deles, prevalece o gênero que mais cultivaram e aqui a referência é feita aos autores exclusivos de contos.
A essa lista
tão breve de uma tradição narrativa tão bem-sucedida e bem recebida entre os
escritores da América Latina – por nós, porque sempre estivemos mais distantes do
texto de grande extensão, principalmente quando se confirma a objetividade da
escrita de um Graciliano Ramos, ele próprio autor de alguns contos marcantes da
nossa literatura – podem acrescentar o nome de Luiz Vilela. Não, o autor não é
novo. É alguém cuja biografia (e depois a obra) nos faz sempre perguntar onde
estava esse escritor que ainda não o conhecia, mesmo tendo figurado entre
vários lugares de importância para o cenário nacional, como os das premiações
do Jabuti, ou da Academia Brasileira de Letras.
Na bibliografia
de Luiz Vilela constam pouquíssimos romances – o mais recente, de 2011,
chama-se Perdição – e muitas
publicações de antologias de contos. O
fim de tudo que alcança tantos anos depois uma segunda edição – o livro é
de 1973 – é uma marca suficiente para não deixar o escritor fora da lista dos
contistas brasileiros e ainda a justificativa sobre o seu lugar de figura
reservada no cenário da literatura, este que de algum tempo tem se prestado
mais à balbúrdia e não ao valor do ofício da escrita. O título em questão deve
ser, como é para este leitor que fala, uma excelente porta de acesso ao seu
trabalho.
Os contos de
Luiz Vilela são despretensiosos, não lidam com o rebuscado. Lê-se com leveza e o arrasta para um maré de indagações sobre nossa existência. É ainda uma lavra
desse jeitinho brasileiro de narrar o trivial ou de dar ao cotidiano uma forma
tendente para a crônica pela qualidade quase do registro do acontecido sem se
preocupar na reflexão mais elaborada ou na construção de um enigma sobre o que
se vê. Não significa dizer que essa despreocupação não traga com o acontecido
um instante de pensar sobre questões mais profundas; é da natureza própria do
conto – mesmo depois da ruptura com o estigma da moral – que produza esse efeito
do “sim, e o que isso significa?”. E os mais bem realizados são aqueles textos
cuja força está na universalidade das questões existenciais; dessa antologia, quase todos estão
eivados do esvaziamento contínuo do homem contemporâneo, o sujeito marcado pela
sobreposição do modelo do indivíduo como sociedade, como sobressai de maneira
pungente em textos como “Coisas de hotel”, conto que é uma aguda reflexão
indireta sobre a destituição das relações humanas.
Uma coisa marcante
nesse livro de Luiz Vilela – e isso é algo muitas vezes presente apenas no
escritor de contos – é a construção de uma unidade temática que dá ao leitor a
constante sensação de “essa história é outra maneira de contar aquela história”,
por mais diversos que sejam os acontecimentos, ou mesmo que se leia dessa
maneira. O bom escritor se afeiçoa das melhores situações e burila pela ficção –
como o fabricante de uma joia rara com os instrumentos da lapidação – até
encontrar sua força vital e total. Isso vigora tanto na maneira com reconstrói o
mesmo narrado como na forma objetiva dada à linguagem. Os narradores dessas
histórias, mesmo os que se posicionam na primeira pessoa, zelam mais pela
exposição do acontecido que pelo interesse em reparar o que se passa em sua
interioridade.
O fio dessa
antologia está presente no próprio título: são narrativas que constatam uma
certeza que carregamos numa existência despossuída de grandes convicções – tudo,
um dia, acaba: um relacionamento e com ele toda sorte de sentimentos, um
comportamento por mais exemplar que seja (sobretudo, se muito exemplar), a
estadia fora da terra natal, as formas de amar, os ganhos e mesmo as perdas, a
vida. Cada situação traz consigo essa dimensão; cada texto não se descuida,
mesmo dedicando-se à forma do registro, da concentração e tensão das situações,
oferecendo ao leitor sempre a possibilidade “do poderia ter sido de outra
maneira” ou levá-lo à espreita, “o que poderá se passar depois disto”, como quem observa pela janela de um apartamento o desenvolvimento dos encontros e
desencontros na rua.
O fim de tudo é
ainda um livro sobre isso: encontros e desencontros. Sempre com o intuito de
mostrar que a vida humana porque se constitui de poucas certezas é um
emaranhado dessas idas e vindas. E tudo o contista relata ora com o olhar
distante de quem apenas observa e registra a situação ora na primeira pessoa
que apresenta a circunstância e a relação do narrador com ela. É como se quisesse
captar o constante movimento das pessoas, das situações e das coisas, num
tratamento que é o de apreensão e recriação do tempo. O escritor sabe que essa
tarefa é algo fadada ao fracasso porque não dispomos dessa capacidade de
apreensão da existência. Por essa razão, é que se pode redizer a ideia da
apreensão pela de compreensão; apreender para compreender. Isto é, o registro, embora contínuo e infinito, é o material do qual o contista forja uma leitura
sobre a nada fácil tarefa de existir na conjuntura em que cada vez mais nos fazemos criaturas sós no mundo.
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