Miguel de Cervantes: uma vida de papel
Por José Manuel Lucía Megías
Possível retrato de Cervantes, el Greco. |
Miguel de Cervantes, como a maioria dos escritores do Século de Ouro,
tem criado uma personagem de si mesmo ao longo e à altura de sua obra. Duas
imagens cervantinas valem mais que mil palavras.
Em 27 de março de 1615, o funcionário Márquez Torres assina em Madri a
aprovação que permite a publicação da segunda parte do Quixote. Depois de mil louvores, termina seu texto com uma anedota
que dá conta de seu sucesso na Europa. Alguns cavaleiros franceses, ao escutar
o nome de Miguel de Cervantes, "começaram a
elogiar, encarecendo a estima em que, assim na França como nos reinos seus
confinantes, se tinham suas obras: a
Galateia, que algum deles tem quase de memória a primeira parte desta e as
Novelas".
E do êxito de suas obras a querer conhecer detalhes da vida do seu autor é só um passo. Ao perguntar-lhe sobre sua idade, profissão, quantidade e qualidade, Márquez se viu obrigado a dizer que era "velho, soldado, fidalgo e pobre". Um dos cavaleiros pergunto espantando: "Pois
a um tal homem não tem a Espanha muito rico e sustentado pelo erário público?" Ao que outro dos cavaleiros responde: "Se a
necessidade o há de obrigar a escrever, praza a Deus que nunca tenha
abundância, para que, com suas obras, sendo ele pobre, faça rico a todo o mundo ".
A novela bizantina Os trabalhos
de Persiles e Sigismunda (1617) é o projeto literário ao qual se entrega
nos últimos anos, onde tem alcançado seus desejos de fama depois de morto. O
prólogo começa com uma geografia muito conhecida e transitada por Cervantes: o
trajeto que vai de Esquivias (Toledo) a Madri. À saída deste lugar,
alcança-lhes um “estudante pardal” que deseja compartilhar com eles a viagem
até à corte. Mas o cotidiano, o trivial se torna extraordinário quando escuta
que quem vai bem devagar é o “cavalo do senhor Miguel de Cervantes”.
No mesmo
instante, o estudante sai depressa em sua cavalgada e tendo-lhe ao lado
esquerdo não pode deixar de gritar aos quatro ventos: “– Sim, sim; este é o
maneta saudável, o todo-famoso, o escritor alegre, e, finalmente, o regozijo
das musas!” Se na primeira das imagens, há lamento e crítica, aqui, na que
o escritor considerava sua obra literária mais sublime, prevalece o louvor. É o
triunfo do Cervantes de papel sobre o de carne e osso, a personagem
sobre o homem... a vida em papel que lhe permite triunfar onde fracassou em
vida: são, famoso, alegre... “regozijo das musas”. Qual foi o caminho que levou
a esta última imagem triunfante que é a quer projetar ao fim de sua vida?
Dois momentos literários
Miguel de Cervantes, como a maioria das personagens com uma certa
educação no Século de Ouro, escreveu sonetos e versos quando jovem e vez ou
outra uma comédia e a grande obra na sua maturidade. Agora, pensar que estava
colocando as bases a uma carreira de escritor há um abismo no qual caímos em
mais de uma ocasião.
De seu cativeiro argelino (1575-1580) restou os poemas
dedicados a Bartholomeu Ruffino de Chamberry e a famosa Epístola a Mateo Vázquez, em tercetos, que envia em 1577 ao
todo-poderoso secretário de Filipe II. No seu retorno a Madri em 1580, e enquanto se empenha em conseguir uma “graça”, um
posto na administração da Monarquia Espanhola, sabemos que em 1582 leva já
muito adiantado seu livro de pastores A
Galateia (publicado em Acalá de Henares três anos depois), e que escreve e
estreia várias comédias nos recintos madrilenos.
No dia 5 de março de 1585
assina um contrato com o empresário Gaspar de Porres para a representação de
várias obras, como La confusa e O Tratado de Constantinopla e a morte de
Celín. Destas primeiras obras, quase todas perdidas, restou-nos O acordo de Argel e Numancia. E não é menos certo que, por testemunhas indiretas
sabemos que Miguel de Cervantes será reconhecido como um dos autores de
romances mais prestigiados do momento, o vai contrário a essa ideia tão comum
de que era um mal poeta. Ele, que escreveu mais de 30 mil versos!
Todas essas obras, escritas em diferentes etapas de sua via e em
circunstâncias bem variadas, constituem um primeiro momento na escrita
cervantina. É a escrita instrumental, a que servirá a Cervantes, como a tantos
outros autores da época, para afiançar e dá suporte às suas pretensões laborais
ou pessoais. Assim fizeram outros autores de livros de cavalaria como o notário
Dionís Clemente (Valerián de Hungría) ou nobre Juan de Silva (Policisne de
Boecia), entre outros.
O que é
excepcional, ou pelo menos, na forma como desenvolverá Cervantes, será seu
segundo momento literário ao qual dedica os três últimos anos de sua vida, que
começa com as Novelas exemplares
(1613) e finda com a publicação póstuma dos Trabalhos
de Persiles e Sigismunda (1617). Nestes anos, revisa, escreve, dá forma
definitiva à maioria das obras que conhecemos dele, as mais geniais,
sem dúvidas. Às duas citadas é preciso acrescentar Viagem do Parnaso (1614), Oito
comédias e oito entremezes nunca representados (1615) e a segunda parte do
Quixote. Um segundo momento em que a literatura se converte no único território
digno de ser vivido, transitado. Uma vida de papel que terminou por ser mais real que
sua própria vida de carne e osso.
À mesa de bilhar
Miguel de
Cervantes, provavelmente por viver nas margens da literatura de sua época, por não
poder ter acesso a esse centro dominado por Lope de Vega e Góngora, desenvolveu
um projeto literário singular, único em seu tempo.
Não é casual que termine o
silêncio editorial depois do êxito da primeira parte do Quixote com a publicação oito anos depois das Novelas exemplares. Cervantes a define como “mesa de bilhar”, e como
tal temos de lê-la: não é só a reunião de algumas obras já escritas em finais
do século XVI, no mesmo momento em que da renda solta sua pena com o Quixote, é seu “projeto narrativo”, o
espaço em que experimenta com gêneros, tópicos, formas de narrar e personagens
próprias da época. Este projeto verá completo com uma reivindicação como poeta,
tanto narrativo (Viagem do Parnaso),
como dramático (Comédias). A aparição
em 1614 da segunda parte do Quixote de
Alonso Fernández de Avellaneda, o obrigou a deixar de lado seu projeto
literário e dar um fim aos capítulos que já havia escrito para o seu Quixote – estes que seguramente começou
a redigir em 1605. E os últimos tempos, as últimas forças dedicará ao seu Persiles.
“Um projeto literário único, deslumbrante e... falido”.
Não será
sobre o modelo da novela mais culta, ou sobre a poesia – tanto lírica,
narrativa ou dramática – de onde se levantará a fama de escritor de Cervantes. Uma
obra menor, de entretenimento, sem prestígio na época como é o Quixote será a que, com o tempo das
leituras inglesas do século XVIII, se alce como o projeto literário mais
influente da literatura ocidental, a primeira pedra para o triunfo do que
conhecemos como romance moderno. A vida de papel de Miguel de Cervantes segue o
que lhe faz único numa época fascinante como é a do Século de Ouro.
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