Maurice, de E. M. Forster
Por Pedro Fernandes
Quando escreveu
o ainda útil livro Aspectos do romance,
E. M. Forster já era um autor de reconhecido sucesso, não só porque seus
romances eram de agrado do público leitor, mas porque estava claro o esmero com
que lapidou suas narrativas e construiu suas personagens; a menção ao livro que
se tornou referência indispensável entre os estudiosos da literatura é para
corroborar a pertinência, ao menos no âmbito da narrativa romanesca, dos
conceitos aí formulados: não tiveram outro ponto de partida que o seu próprio exercício
com o objeto narrativo, com o desenho do quadro psicológico com que deu força
aos seus seres ficcionais e, claro, a extensa vivência como leitor.
E é dessa
vivência que Forster volta ao conceito de amor, colhido nas referências
demonstradas em Maurice de lugares
como da cultura grega aí designada por nomes como Platão e Sócrates, e faz do
tema uma obsessão variada para a composição de seus enredos; pode-se dizer isso
quando, diante da leitura sobre um amor impossível fora das páginas de um livro
e mesmo dentro delas para época em que findou a escrita de Maurice, torna-o não apenas possível mas uma das histórias mais
comoventes e, ao seu modo, subversivas, da literatura. Não é um enredo cheio de
efeitos mirabolantes, porque ao escritor pareceu sempre que a tarefa do
romancista é a de, a partir da observação da realidade, descrevê-la,
principalmente o que se deixa encobrir pela visão comum, e deixar ao critério
dos leitores a descoberta sobre as nuances que são criteriosamente mascaradas
pela força da cultura e da ideologia.
Maurice foi escrito entre 1913 e 1914; a
data é para causar surpresa sobretudo entre aqueles que depositam uma crença absurda
de que as relações amorosas de natureza diversa são produtos da contemporaneidade
(o que, de fato, não são, antecedem todos os registros mais antigos da história
e, claro, pertencem às mais variadas expressões artísticas e narrativas) e mais
ainda quando se nota, e isso sim é necessário sublinhar, a capacidade de
observador crítico do escritor quando recomenda expressamente que a edição só
seja publicada postumamente. Os desejos foram atendidos e o romance só veio a
público um ano depois da morte de Forster – o escritor morreu em 1970.
A capacidade,
destaquemos para os que ainda não notaram, reside, primeiro, na compreensão de
que por esta época as histórias de amor como a que escreveu estão muito em voga
ao ponto de não representar mais o espanto ou horror que no tempo quando
escreveu a obra e, logo, o romance obter outra recepção; depois, uma obra póstuma
já não é motivo para que se cobre do escritor explicações – tudo o que se
quiser saber ou especular haverá de se recorrer ao que ficou escrito. Sobre o
contexto, é preciso dizer que, a década que recebeu esse romance passou pelas
mais significativas transformações culturais sobretudo as que designam as
liberdades individuais.
Mas, mesmo
que histórias como a que contou em Maurice
sejam mais comuns e tratadas mais ou menos como normais pela sociedade que recebeu a
obra, quando escreveu, Forster também terá previsto outra coisa: o romance
ainda seria capaz de causar alguma celeuma entre os leitores, sobretudo, os que
ele próprio acostumou com as típicas histórias de amor. Por essa razão – e porque
ainda que fora dos livros os amores de outras cores tivessem expressões diversas,
nos livros as restrições eram maiores – essa obra do escritor inglês logo se
tornou uma das precursoras, entre a literatura contemporânea produzida no
Ocidente, sobre o tratamento da diversidade do amor.
A razão para isso está na
maneira não sugestiva, como terá feito Oscar Wilde com o seu Dorian Gray, mas direta e destemida de abordar a relação entre homens
num contexto de extensa censura e perseguição como é o remetido por essa
narrativa, que mesmo aparecida num contexto de rupturas, significa, quando
olhamos para o período em que foi escrita, um rasgo muito anterior com os padrões
e as determinações culturais e sociais.
Basta dizer que
a vivência da personagem Maurice, o que não se rende ao dogmatismo social ou ao
policiamento desagradável da gente burguesa sobre sua vida particular tal como
se rende seu primeiro amor, Clive, e tenta, mais pela força carnal e não pela
sublimação platônica, experimentar seu desejo de ser não mais um preso às
circunstâncias que o delegam, é um tapa na hipocrisia da sociedade de seu tempo;
e porque contemporaneamente tais forças hipócritas ainda imperam em comunidades diversas, essa
obra, uma vez aí instalada, é uma clareira, uma lufada de ar fresco na extensa vida
abafada dos que se escondem na escuridão e deixam-se dominar pelo medo, pelo
preconceito, pelas ligações (essas maldosas) com o ambiente comunitário.
Isto é, Maurice não é apenas um desvelamento
sobre um tempo dos mais sombrios às formas diversas de amar; é, pelo que
representou no amplo processo de respeito civil pelas identidades individuais,
um adendo sobre a necessidade de se rever com a máxima urgência o que se designou
como conveniente cultural e social. É assim, o registro sobre a possibilidade
das felicidades individuais e sobre o desfazimento dos lugares pré-determinados.
Sobre essa última revisão, é decisivo a realização desse amor entre alguém de
uma classe social e outra, como se dissesse, não há escolhas quando o assunto é
da esfera da realização amorosa.
E porque
tanto se falou aqui sobre o amor, Forster também revisa esse conceito até então
(e ainda) tornado ora designação substantiva da mulher – pela maneira delicada
ou trágica com que o sentimento foi moldado pela cultura – ora moeda de troca para
a manutenção de certo status quo. Em substituição
ao amor sacralizado, prefere, como foi dito acima, a carne; porque o homem é,
sobretudo instinto e não espírito, razão e não idealização, sexo e não sublimação.
E o amor é nisso tudo pulsão entre dois corpos que se desejam.
Há ainda,
uma diversidade variada de questões que o leitor atento não tardará reconhecer a
partir do contato com a obra – essa, aliás, é marca de todo trabalho artístico.
Independente do distanciamento de contextos, os temas aí tratados serão sempre
atuais e provocadores. No caso de Maurice,
o amor é só deles. Talvez porque seu autor note, entre as peças da engrenagem
social que se dedicou observar, o quanto ele é uma força ativa e definidora das
individualidades e da comunidade humana.
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