Mario Vargas Llosa: vida e liberdade (parte 2)
Por Enrique Krauze
Mario Vargas Llosa com a prima Patricia Llosa com quem se casou depois do divórcio com Julia Urquidi |
A Revolução Cubana: ilusão e desencanto
Quem não
saudou com entusiasmo o triunfo desses valentes barbudos que lutavam contra a
ditadura, enfrentaram o Império e abririam uma era de dignidade e independência
para “Nuestra América?” No México não só a esquerda os aplaudiu mas um amplo
espectro que cobria o centro liberal e a direita: de Daniel Cosío Villegas a
Vasconcelos. Em 1958, Vargas Llosa havia escrito manifestos de apoio à
Revolução, cujo triunfo o surpreendeu em Paris. Junto com uma centena de entusiastas
saiu às ruas para as celebrações. Viu e viveu, por muito tempo, com uma
história de libertação:
“Cuba me
parecia realmente uma forma renovada, mais moderna, mais também mais flexível e
mais aberta, da revolução. Eu vivi isso como muitíssimo entusiasmo; além disso,
considerando Cuba como um modelo que poderia ser seguido pela América Latina.
Nunca antes disso, senti um entusiasmo e uma solidariedade tão poderosa por um
feito político”.
Em 1962,
Mario Vargas Llosa viajou pela primeira vez à Cuba. Encontrava-se no México
como correspondente da Radiofusión – Televisión Francesa quando estourou a
crise dos mísseis. A agência pediu-lhe que se mudasse para a ilha. Ali viu os
aviões estadunidenses voar quase rente ao solo. Doou sangue e sentiu o delírio
da imolação. De regresso à Paris, em poucos meses, recebeu a notícia de que seu
primeiro romance, A cidade e os cachorros,
inspirada em suas experiências em Leoncio Prado, havia obtido o Prêmio
Biblioteca Breve da Seix Barral. Dois anos mais tarde, em 1964, regressou por
alguns meses ao Peru, onde realizou uma breve e intensa viagem pela selva. Não
era a primeira vez que fazia isso. Essas visitas deixariam uma marca profunda
em sua literatura. A casa verde se
passa em Piura, onde está o bordel, mas também em Santa María de Nieva, na
selva. E na selva conhece pela primeira vez a lenda que anos mais tarde
cristalizaria em O falador. Por outro
lado, naquela estadia no Peru, Mario se divorciou de Julia Urquidi. Pouco
depois casaria com sua prima, Patricia Llosa, com quem regressaria sua vida
parisiense.
“A todos,
cedo ou tarde, chega-lhes a sua Kronstadt”, escreveu Daniel Bell, referindo-se
ao momento de desilusão com respeito à Revolução Soviética. O “Kronstadt” de
Vargas Llosa não foi uma mudança radical mas um processo lento. Num primeiro
momento, como tantos artistas e intelectuais do Ocidente, não só lhe cativaram
os atos de justiça social (reforma agrária, educação, saúde para todos etc.)
mas sobretudo o fervor cultural da Revolução. Figuras como Jean-Paul Sartre,
Simone de Beauvoir, Juan Goytisolo, Hans Magnus Enzensberger, Julio Cortázar,
Mario Benedetti, Ángel Rama, José de la Colina, Carlos Rangel, Ernesto Sábato,
Juan Rulfo, entre outros, chegaram à Cuba como hóspedes de honra para
testemunhar os prodígios de uma revolução com liberdade. Vargas Llosa viajou a
Cuba em cinco ocasiões. “Gradualmente fui vendo – a princípio o que não queria
ver, a princípio inclusive o que me molestava reconhecer – uma série de
manifestações que indicavam que na realidade, na prática, não era de nenhuma
maneira o que a imagem, a publicidade e a ilusão nos queriam fazer ver”.
Em 1967, durante
sua terceira viagem a Havana, aceitou formar parte do Conselho de colaboradoras
da revista Casa de las Américas. O
convite vinha de Roberto Fernández Retamar, que havia substituído em 1964
Haydée Santamaría na direção dessa influente publicação. Outros menos eram
Ezequiel Martínez Estrada, Manuel Gaich, Julio Cortázar, Emmanuel Carballo,
Ángel Rama, Sebastián Salazar Bondy, Mario Benedetti, Roque Dalton, René
Depestre, David Viñas, Jorge Zalamea e os cubanos Edmundo Desnoes, Ambrosio
Fornet, Lisandro Otero e Graziella Pogolotti. Sua empatia era ainda imensa e se
entende: em 1965, um Guillermo Cabrera Infante (o diretor de Lunes de Revolución, suplemento cultural
de Revolución que havia sido
censurado pelo regime e a quem Vargas
Llosa havia visto em Paris nesse mesmo ano) se mostrava reticente em falar da
situação cubana, atuava todavia como um diplomático. Os problemas eram
conhecidos mas “se ocultavam” – recorda Llosa – “por trás de uma muralha
protetora”. Nessa ocasião, Mario participou de uma entrevista coletiva com
Fidel Castro em que o Comandante, encantador de serpentes, se mostrou
heterodoxo e prometeu que corrigiria de imediato os desvios mostrados por seus
amáveis críticos:
“Fidel, ao longo de sua conversa, se referiu muitas vezes a Marx, a Lênin, ao
materialismo histórico, à dialética. Sem dúvida, nunca vi um marxista menos
apegado ao emprego de fórmulas e esquemas cristalizados [...] Se de uma coisa
fiquei absolutamente convencido nessa noite branca, foi do amor de Fidel por
seu país e da sinceridade de sua convicção de atuar em benefício de seu povo” [Sabres e utopias, 2009].
Mas em 1967
ocorreu outro episódio que acabou o encanto. Sem que ele soubesse, seus
editores haviam apresentado seu segundo romance, A casa verde, como candidato ao Prêmio Rómulo Gallegos.
(O governo
democrático que outorgava o prêmio, encabeçado por Raúl Leoni, havia feito
frente a uma invasão guerrilheira induzida e apoiada ativamente pelo regime
cubano). Por seu estreito vínculo com a Revolução, Vargas Llosa comentou essa
indicação com Alejo Carpentier, então representante cultural de Cuba em Paris.
Carpentier viajou a Londres em segredo para entrevistar-se com ele e se propôs,
no caso de ser o ganhador do prêmio, fazer uma doação à luta de Che Guevara,
que nesse momento se encontrava em algum lugar da serra boliviana. Esse gesto,
segundo Carpentier, teria uma grande repercussão na América Latina. Em sua
entrevista, Carpentier leu uma carta de Haydée Santamaría, a mítica companheira
de Fidel Castro na tomada do Cuartel Moncada, nessa época então poderosíssima
funcionária do aparelho cultural cubano. “Naturalmente compreendemos que um
escritor tem necessidades – dizia na carta Haydée Santamaría –, o que não
significa que você tenha que prejudicar-se por essa ação; a revolução lhe
devolverá o dinheiro discretamente, sem que isso se saiba”. A Revolução
propunha a Vargas Llosa que montasse uma farsa. O escritor se indignou.
Finalmente, aceitou a receber o prêmio, pronunciou um discurso em que se
mostrou distanciar-se do governo da Venezuela e fez um incendiado elogio da
Revolução cubana:
“Dentro de
dez, vinte ou cinquenta anos, havia chegado a todos os nossos países, como
agora em Cuba, a hora da justiça social. A América Latina inteira terá se
emancipado do império que a saqueia, das castas que a exploram, das forças que
hoje ofendem e reprimem. Eu quero que essa hora chegue o quanto antes e que a
América Latine ingresse de uma vez por todas na dignidade e na vida moderna,
que o socialismo nos livre de nosso anacronismo e nosso horror”.
Semanas
depois, a funcionário cubana pareceu satisfeita e o felicitava pelo “grito de
Caracas”. Mas esse discurso de defesa à Revolução continha também uma passagem
premonitória, uma clara defesa da liberdade do escritor: “É necessário que saibam
que a literatura é como o fogo, significa dissidência e rebelião, que a razão
de ser do escritor é o protesto, a contradição, a crítica”.
O certo é
que intervenção de Carpentier havia criado um distanciamento com a Revolução.
Em 1968, dois episódios o aceleraram: as notícias que chegavam da ilha sobre a
perseguição oficial a intelectuais cubanos e o apoio irrestrito de Castro à
invasão soviética da Tchecoslováquia, em agosto daquele ano. Um mês mais tarde
(26 de setembro) a revista peruana Caretas
publicou uma entrevista com Vargas Llosa em que ele falou do “socialismo
dos tanques”, condenando a postura pró-soviética de Fidel. Vargas Llosa havia
vivido por uns dias na Tchecoslováquia durante a Primavera de Praga e havia se
entusiasmado com o experimento de liberdade e democracia dentro do socialismo
que tentava o governo de Dubček (tão
diferente da atmosfera gris, de burocracia, tédio, corrupção e filas que Vargas
Llosa havia testemunhado em sua passagem pela URSS em 1966). Sua indignação
tinha uma base na experiência.
Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa: a esquerda os uniu e o liberalismo nascente de Llosa os separou. |
Por outro lado, em outubro do mesmo, Julio
Cortázar lhe escrevia comentando que Carlos Franqui, Carlos Fuentes, Juan e
José Agustín Goytisolo, Gabriel García Márquez, Jorge Semprún e ele mesmo
estavam preparando uma “carta a Fidel sobre os problemas dos intelectuais em
Cuba”. E Cortázar rematava: “Desde logo, estás incluído entre os assinantes”.
No dia 12 de novembro de 1968, García Márquez, ainda muito próximo de Vargas
Llosa, lhe faz saber que acarta estava já em mãos de Fidel Castro:
“Creio, sem dúvidas, que não servirá de
nada. Fidel contestará, com a maior finesa que lhe seja possível, que o que ele
faça com seus escritores e artistas é um assunto seu, e que portanto podemos ir
à merda. Sei de boa fonte que está desgostoso com nossa atitude a respeito da
Tchecoslováquia e agora tem boa oportunidade para desabafar”.
Ao assumir, em 1964, a direção da revista Casa das Américas, Roberto Fernández
Retamar havia substituído o conselho de redação original por um conselho de
colaboradores, à maneira da revista argentina Sur. Esta mudança implicava uma aproximação maior com a publicação
cubana, a assistência a números anuais onde não só se revisava o andamento da
revista mas se propunha formas de apoio efetivo para com a Revolução. A primeira
reunião aconteceu em 1967, a segunda em início de 1969. Vargas Llosa não pode
assistir a essa última e sua ausência foi interpretada como um afastamento. Por
esses dias Vargas Llosa escreve a Carlos Fuentes (quem, certamente, levava
tempo de padecer na própria pele as desconfianças e intolerância da burocracia
cultural cubana). Havia conversa – diz Llosa – com Fernández Retamar “para
tratar de confirmar se era certo que Edmundo Desnoes estava preso, acusado de ser
um agente da CIA, mas ao falar com ele não me atrevi a perguntá-lo”. E
acrescenta: “Estou extremamente inquieto, receoso e assustado com o que ocorre
em Cuba e te peço que me contes o que sabes. A última que me chegou às minhas
mãos foi o discurso de Lisandro Otero que produziu calafrios em mim”. Nesse
mesmo mês de janeiro, de Havana, o conselho de colaboradores da Casa de las Américas em vigor
(Benedetti, Carballo, Cortázar, Dalton, Depestre, Desnoes, Fernández Retamar,
Fornet, Galich, Otero, Rama e Viñas) enviou a Vargas Llosa uma carta em que reclamava
sua não assistência e o convocava para ir imediatamente a Havana para discutir
com o ele “sobre as atitudes e opiniões tuas”.
O clima ia aquecendo. Na mesma linha da carta coletiva, em 18 de janeiro,
Fernández Retamr escreve a Llosa: “Quando já foi evidente que não virias, não
nos restou outra coisa que falar de ti em tua ausência”. O cubano sublinha que
sua presença era importante, “mais, talvez, que a dos outros [...] porque
havias feito uma condenação pública da política externa da revolução; porque
havias enviado a Fidel uma cópia de um texto coletivo, cujo original Haydée
recebeu, em que intervias, com opiniões que devias defender, em delicadas
questões do país; e porque isso ocorria enquanto estavas no caminho de ser (ou
já eras) ‘escritor residente’ numa universidade estadunidense”. Vargas Llosa o
contesta:
“Minha relação com Cuba é muito profunda,
mas não é nem será a de um incondicional que faz suas de maneira automática
todas as posições adotadas em todos os assuntos pelo poder revolucionário.
Esse gênero de adesão, que inclusive num funcionário me parece lastimosa, é
inconcebível para um escritor, porque, como sabes, um escritor que renuncia a
pensar por conta própria, a dissidiar e opinar em voz alta já não é um escritor
mas um ventríloquo. Com o enorme respeito que sinto por Fidel e pelo que
representa, sigo desgosto seu apoio por sua intervenção soviética na
Tchecoslováquia, porque creio que essa intervenção não suprimiu uma
contrarrevolução mas um movimento de democratização interna do socialismo num
país que aspirava fazer de si mesmo algo semelhante ao que, precisamente, já
foi feito em Cuba”.
Uma das últimas reuniões da Casa de las Américas com participação de Llosa: o escritor está ao lado de Julio Cortázar |
O assunto não terminou aí. Julio Cortázar,
quem foi à reunião em Havana onde se criticou severamente a Vargas Llosa pela
ausência, reclama “o descuido” de não haver ido a Havana para defender sua
posição. E em meados de 1969 acrescenta: “A radicalização em Cuba é muito
forte, há uma espécie de exasperação que por uma parte dá esplêndidos
resultados no setor econômico, mas que situa os escritores num maniqueísmo cada
vez mais simplificador do que não pode sair nada de bom...”
A respeito dos “esplêndidos resultados do
setor econômico”, era obvio que muitos escritores viam o que queriam ver, o que
eram induzidos a ver. Se repetia uma velha história de autoegano e ingenuidade
no Ocidente, como a de muitos intelectuais conceberam ao visitar o “mundo do
futuro” nos anos trinta, anos de repressão, coletivização e escassez. Vargas
Llosa não suspeitava então da realidade sob a aparência. O caminho percorrido
por sua Kronstadt pessoal não foi política, econômica ou social: foi cultural.
Em 1971, a raiz da detenção de Herberto Padilla (e de vários intelectuais) e de
sua “confissão” (processo que imitava os Processos de Moscou), Vargas Llosa
decide renunciar ao comitê da revista Casa
de las Américas, o mais importante órgão cultural cubano, o que já se
cooptava entre vários intelectuais latino-americanos. Dirigiu a carta a Haydée
Santamaría:
“Compreenderá que és o único que pode fazer
logo do discurso de Fidel fustigando aos ‘escritores latino-americanos que
vivem na Europa’, a quem nos proibiu a entrada em Cuba ‘por tempo indefinido e
infinito’.
Irritou-lhe tanto nossa carta pedindo que
esclarecesse a situação de Herberto Padilla?”
Nessa mesma carta abundava os motivos de seu
distanciamento com a Revolução:
“Obrigar alguns companheiros com métodos que
repugnam a dignidade humana, acusá-los de traições imaginárias e assinar cartas
onde até a sintaxe parece policial, é a negação que me fez abraçar desde o primeiro
dia a causa da Revolução cubana: sua decisão de lutar por justiça sem perder o
respeito aos indivíduos”.
Haydée Santamaría (que uma década depois
deixaria a vida num rapto de desilusão histórica e pessoal) contestou Llosa de
maneira taxativa no dia 14 de maio de 1971: “Você não teve a menor falta de
firmeza em somar sua voz – uma voz que nós contribuímos para que fosse escutada
– ao coro dos ferozes inimigos da Revolução cubana”. Reclamava sobre suas
“opiniões ridículas” sobre a Tchecoslováquia e acrescentava que a carta de
renúncia o representava “de corpo inteiro” como “a viva imagem do escritor
colonizado, depreciador de nosso povo, vaidoso, confiante de que a boa escrita
não apenas perdoa um mal mas permite emitir juízo sobre todo um processo grandioso
como a Revolução cubana”.
Cinco dias depois, Vargas Llosa publicou uma
declaração. Sua renúncia, provocada por um episódio que considerava lamentável,
não implicava hostilidade contra a Revolução cubana, em cujas realizações,
todavia acreditava. Sua renúncia era um ato de protesto e uma afirmação da
liberdade como condição essencial do socialismo: “O direito à crítica e à
discrepância não é um ‘privilégio burguês’. Ao contrário, só o socialismo pode,
ao sentar as bases de uma verdadeira justiça social, dar expressões como
‘liberdade de opinião’ e ‘liberdade de criação’ seu verdadeiro sentido”.
Dias depois, redigida por Vargas Llosa e
assinada por um amplo conjunto de intelectuais, entre eles Carlos Fuentes,
Italo Calvino, Juan Goytisolo, Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Carlos
Franqui, Pier Paolo Pasolini, Jorge Semprún, Susan Sontag, Carlos Monsivás,
Alberto Moravia, José Emílio Pacheco, José Revueltas, Juan Rulfo, Jean-Paul
Sartre e duas dezenas a mais de escritores, publica-se uma carta dirigida a
Fidel Castro em que comunicam sua “vingança e cólera” pelo caso Padilla. Anos
depois, Vargas Llosa refletiria sobre o incidente:
“O caso Padilla serviu habilissimamente para
que Cuba se separasse de certo tipo de aliados e somente tivesse os incondicionais,
esses aliados que iam estar com a revolução houvesse o que houvesse, ou porque
eram sectários, eram stalinistas e funcionavam como os cachorros de Pavlov, por
reflexos condicionados, ou porque eram compráveis, baratos, que se compravam
com uma passagem de avião, com um convite a um congresso [...] No dia seguinte
depois de romper com Cuba, comecei a receber uma chuva de injúrias, o que para
mim foi muito instrutivo. Passei, depois de haver sido uma figura muito popular
nos meios da esquerda e nos meios rebeldes, a ser um marginal. As mesmas
pessoas que me aplaudiam com muito entusiasmo quando ia dar uma conferência, se
eu aparecia por ali, me insultavam e me lançavam injúrias” [Diálogo com Vargas Llosa]
O caso Padilla, admiravelmente recolhido em Persona non grata de Jorge Edwards,
marcou o fim do idílio (o Kronstadt) de um setor da intelectualidade
latino-americana e ocidental com a Revolução cubana. Vargas Llosa não tinha
dúvida de que se tratava de uma “cópia má e inútil das piores máscaras stalinistas”.
Mas em muitos grandes escritores, críticos do Estado soviético e cubano, como
Octávio Paz, o ideal socialista seguia vivo. Em Vargas Llosa, por breve tempo,
estaria também da mesma maneira.
De
Sartre a Camus
Desde 1966, Vargas Llosa havia fixado sua residência em Londres. Nesses
anos, nasceram seus filhos Álvaro (1966) e Gonzalo (1967). Sua filha Morgana
nasceria em 1974, em Barcelona. Em 1971, termina seu doutorado em Literatura
com uma tese sobre Cem anos de solidão,
o célebre romance de Gabriel García Márquez; a tese seria publicada nesse mesmo
ano com o título Gabriel García Márquez / História de um deicídio. Os
intelectuais pró-castristas o tiveram na mira. O crítico literário Ángel Rama,
diretor da prestigiada revista Marcha,
publicou uma áspera resenha sobre esse livro, que derivaria numa polêmica com
Vargas Llosa. Rama o acusava de fazer uma leitura romântica e individualista do
romance de García Márquez, uma interpretação contrária à “ideia da arte como trabalho
humano e social, que aborta o marxismo” (“A propósito de História de um deicídio. Va de retro”, Marcha, 5 de maio de 1972). A resposta de Vargas Llosa revela seu
distanciamento das concepções ditadas pelo crítico marxista György Lukács sobre
o papel da literatura na sociedade. Quase ao mesmo tempo, Casa de las Américas publicou um texto em que Carlos Rincón fazia
uma crítica dogmática do “discurso teórico” de Vargas Llosa e tentava tirar sua
legitimidade do caso Padilla.
Vargas Llosa se dedicou a cultivar uma zona
literária mais lúcida e erótica. Em 1973, publica seu quarto romance, Pantaleão e as visitadoras (que, com tom
picaresco, aborda o tema da prostituição tolerada e fomentada pelo Exército na
selva peruana) e dois anos mais tarde A
orgia perpétua / Flaubert e Madame Bovary, livro que foi, ao mesmo tempo,
defesa sobre a literatura e resposta ao célebre ensaio de Jean-Paul Sartre O idiota da família. Em 1976, foi eleito
presidente do Pen Clube Internacional, organismo em que desenvolveu uma intensa
atividade literária e fez frente à repressão militar na Argentina. No ano
seguinte daria a luz a Tia Júlia e o
escrevinhador, em que narrava em forma de romance sua relação e casamento
com sua tia, Julia Urquidi.
Distanciado definitivamente da Revolução
cubana, Vargas Llosa começou a por em causa de juízo seus heróis intelectuais.
Significativamente, como um primeiro parricídio criativo, desceu do pedestal
Jean-Paul Sartre:
“Com a perspectiva que dá ao tempo, alguém
descobre que a obra criativa do próprio Sartre é uma reprovação sistemática do
‘compromisso’ que ele exige ao escritor de seu tempo. Nem seus contos de tema
rebuscado, perverso e erótico, nem seus romances de artificiosa construção
influenciada por Dos Passos, nem sequer suas obras de teatro – parábolas
filosóficas e morais, pastiches ideológicos – constituem um exemplo de
literatura que quer romper o círculo de leitores da burguesia e chegar a um
auditório de trabalhadores, nem há nada neles que, por suas anedotas, técnicas
ou símbolos, transcenda o exemplo dos escritores do passado remoto ou recente e
funde o que ele chama a literatura da
práxis. [“Sartre veinte años después”, dezembro de 1978]
Ao mesmo tempo, revalidou Albert Camus. Em
1965, a propósito da aparição dos Cadernos,
havia sustentado que os textos de Camus valiam “não por sua significação
social, histórica, metafísica ou moral, mas (e em todos os casos) por sua
excepcionalidade pitoresca” (“Camus y la literatura”, janeiro de 1965). Para o
Vargas Llosa dos anos sessenta, Camus havia sofrido um “envelhecimento precoce”.
Dez anos depois, a propósito de um atentado terrorista registrado em Lima,
voltou às páginas de O homem revoltado
e declarou: “Sem engar a dimensão histórica do homem, Camus sempre susteve que
uma interpretação puramente econômica, sociológica, ideológica da condição
humana era curta e, sempre, perigosa” (“Albert Camus y la moral de los
límites”). Vargas Llosa recordava a conferência de Camus em 1948: “E quanto o
famoso otimismo marxista! Ninguém foi tão longe na desconfiança, respeito ao homem
como os marxistas; por acaso as fatalidades econômicas deste universo não resultam
todavia mais terríveis que os caprichos divinos?” Nesta crucial releitura,
publicada na revista Plural e
dedicada à Octávio Paz, Vargas Llosa reivindicou o individualismo, mostrou sua
desconfiança pela interpretação mecânica do marxismo, festejou o pluralismo e,
seguindo o Camus de Calígula,
abominou o totalitarismo. O que lhe incomodava era o maniqueísmo que percebia
em muitos intelectuais e a propensão a adotar a ideologia como uma religião,
mas se sentia “num limbo”: tinha que haver uma “terceira posição” distante da
direita e da esquerda, dos sabres e das utopias. Um Vargas Llosa novo parecia
estar nascendo nessas páginas:
“Creio que em nossos dias, aqui na América
Latina, aqui em nosso próprio país, esta é a função difícil mais imperiosa para
todo aquele que, por seu próprio ofício, sabe que a liberdade é a condição
primeira da existência: conservar sua independência e recordar o poder a cada
instante, e por todos os meios ao seu alcance, a moral dos limites”.
Em termos estritamente políticos, Vargas
Llosa havia simpatizado até certo ponto com as reformas de Velasco Alvarado no
Peru (semelhante às de Lázaro Cárdenas, no México) mas não duvidou enfrentá-lo
quando o regime censurou à imprensa e os meios de comunicação e prendeu a
revista Caretas onde publicava.
Em Cuba ou no Peru, a liberdade de expressão
era, para Vargas Llosa, a liberdade cardeal, e essa convicção absoluta
(presente ainda em seus tempos de adesão à Revolução cubana) foi ampliada até à
forma do liberalismo mais amplo. Em fins de 1977, dá um passo adiante:
entrevista Rómulo Betancourt e reafirma o apoio ao seu governo democrático. Um
ano depois, sua ruptura ideológica com o socialismo é definitiva: “Estas utopias
absolutas – o cristianismo com o passado, o socialismo com o presente –
derramaram tanto sangue como o queriam lavar. O ocorrido com o socialismo é,
sem dúvida, um desengano que não tem precedente na história” (em “Ganar
batallas, no la guerra”, conferência lida em Lima em outubro de 1978 e
compilada em Sabres e utopias). Mas
não é muito clara, ainda, sua adesão ao liberalismo:
“Não se trata de meter todas as ideologias
no mesmo saco. Algumas delas, como o liberalismo democrático, expulsaram a
liberdade e outras, como fascismo, o nazismo e o marxismo staliniano,
retrocederam. Mas nenhuma basta para assinalar de modo inequívoco como
erradicar de maneira durável a injustiça, que acompanha o ser humano como sua
sombra desde o despontar da história”.
A
conversão em liberal
Faltava um passo para tornar-se liberal. Quando
o deu? Muitos anos atrás, a reaparição do pai o havia lançado subitamente ao
inferno da tirania. Toda sua vida havia sido remar contra essa corrente. Em 1979,
aos 42 anos de idade, outro feito relacionado com o pai o precipitaria a uma revisão
definitiva de seus valores. As agressões de seu pai haviam cessado tempo atrás “e,
embora procurei sempre mostrar-se educado como ele, jamais demonstrei mais
carinho do que tinha (isto é, nenhum). O terrível rancor, o ódio petrificado de
minha meninice com ele, foram desaparecendo ao longo dos anos”. Mas o
distanciamento se sustentou até o final, até janeiro de 1979, quando morreu o
único tirano a quem havia querido bem. “Meu pai, estava almoçando em sua casa,
havia perdido o conhecimento. Chamamos uma ambulância e o levamos à Clínica
Americana, onde chegou sem vida” (Peixe
na água).
Poucos meses depois, Vargas Llosa assiste em Lima um simpósio
internacional organizado por Hernando de Soto em que escuta economistas e
pensadores como Friedrich Hayeck, Milton Friedman e Jean-François Revel (cuja
obra A tentação totalitária o impressionou).
Para então havia lido os ensaios filosóficos
e históricos de Isaiah Berlin sobre “dois
conceitos de liberdade” e os famosos perfis de socialistas libertários como
Alexander Herzen em Against the current.
Com o tempo leria Karl Popper, outro grande clássico do pensamento liberal, em
particular A sociedade aberta e seus
inimigos. Outro fator importante foi sua amizade com Octávio paz e o seguimento
pontual da defesa do liberalismo democrático tanto na obra do escritor mexicano
como na como na revista Vuelta, onde
colaborava com frequência. Mas diferentemente de Paz – outro convertido do
socialismo pela democracia liberal – sua crítica ao socialismo real não só foi
de ordem estética, ideológica e política como também econômica. Para abordá-la
necessitava de uma emenda intelectual e uma aprendizagem:
“A fascinação dos intelectuais com o
entusiasmo deriva tanto de sua vocação de posse [...] como de sua incultura econômica.
Desde então tratei, ainda de maneira indisciplinada, corrigir minha ignorância
nesse domínio. Em 1980, a raiz de um fellowship
de um ano no The Wilson Center, em Washington, o fiz com melhor ordem e com
interesse crescente”.
Era o limiar dos anos oitenta. Havia vivido
e superado sua Kronstadt, mas não permaneceu no limbo, vazio de crenças. Encontrou
uma fé sem grandes promessas nem voos utópicos, um método de convivência: o
liberalismo democrático. Esse encontro foi um despertar: abriu-lhe horizontes,
deu-lhe uma nova e peculiar claridade sobre o caráter opressivo dos diversos
fanatismos da identidade (nacional, indígena, hispânica, religiosa, ideológica,
política) que fizeram o século XX e que, com a cumplicidade dos demagogos e o
apoio de muitos governos, hão sacrificado povos e indivíduos.
Liberal empedernido, Llosa recebe o Prêmio Nobel de Literatura. Sua obra nunca mais foi a mesma. |
A
rebeldia perpétua
A liberação potenciou sua obra, que a partir
de então adquiriu uma nova dimensão: passou da esfera predominantemente íntima
à universal. Mas o empenho central foi sempre “exorcizar” aqueles fantasmas que
haviam sido também seus e que impediram o progresso material e moral de seu
país e da América Latina. Esse impulso vital de liberdade frente aos fanatismos
deu alento tolstoiano a essa inicial profecia do fundamentalismo moderno que é A guerra do fim do mundo, obra-mestra
que não só critica o fanatismo dos milenaristas brasileiros mas a insensata
resposta da República. Esse impulso inspirou também a caracterização trágica (e
patética) do redenção guerrilheira em História
de Mayta cujo protagonista é – como havia sido Vargas Llosa – um aluno
lasallista e cujo tema é a guerrilha de corte castrista-guevarista. Sua radiografia
da guerrilha continuou em Lituma nos
Andes, onde adentra no mundo brutal de Sendero Luminoso. O mesmo impulso
presidiu, enfim, a rigorosa crítica histórica e antropológica do indigenismo em
A utopia arcaica.
Por um momento, a conjuntura histórica o
distraiu com a tentação de chegar à presidência para enfrentar os males
atávicos de seu país. Não triunfou por várias razões, entre outros, pelo ódio
acumulado dos fantasmas coletivos que teve de experimentar de maneira
descarnada. Com sua derrota, o Peru perdeu
um possível presidente, mas o idioma espanhol e a literatura recobraram um
grande romancista. Depois de saldar contas com sua própria vida (em muitos
sentidos, vida de romance) em Peixe na água,
seguiram várias obras libertadoras: romances cômicos, amorosos e malévolos;
romances evocadores de pintores excêntricos e mulheres utopias; obras de
teatro; estudos pontuais sobre seus clássicos literários (Os miseráveis, Juan Carlos
Onetti) e, desde então, A festa do bode,
romance supremo do ditador latino-americano. “Se há algo que eu odeio – disse Vargas
Llosa –, algo que me repugna profundamente, que me indigna, é a ditadura. Não é
somente uma convicção política, um princípio moral: é um movimento das
entranhas, uma atitude visceral, talvez porque padeci muitas ditaduras em meu
próprio país, talvez porque desde pequeno vivi em carne própria essa autoridade
que se impõe com brutalidade”. Seu livro cumpriu com o exorcismo maior: não há melhor
reivindicação literária da liberdade no seu idioma. Plena não só de indignação moral,
contida e lúcida, contra as infinitas possibilidades, personificações e aberrações
do mal, o romance é um modelo de elegância formal. Em cada página o leitor encontra
detalhes psicológicos – aterradores, convincentes – que o comovem e permanecem
para sempre em sua memória.
A rebeldia liberal, por sua própria
natureza, não se sacia. Está em seus olhares sobre o mundo atual, nos ensaios
que brincam de um tema a outro, de um país a outro, e o levam a embarcar-se em
polêmicas, a defender causas impopulares, a visitar lugares escusos da terra. Esse
compromisso intelectual – paradoxalmente sartriano, no sentido que Sartre vislumbrou
e não praticou – o levou a presidir uma Fundação Internacional para a Liberdade
que respondeu grandes batalhas pela democracia latino-americana.
Em 2010, Vargas Llosa ganhou o Prêmio Nobel
de Literatura. Na esfera pública sua opção pela liberdade não deixará outro
caminho que seguir batendo contra o que considera injusto, opressivo e ditatorial.
Na esfera íntima, além da admiração de milhões de leitores, está a lealdade
pelos amigos e pela família que construiu com Patricia Llosa. O filho de
Ernesto Vargas e Dorita Llosa reverteu a história e reescreveu. E ao fazer
isso, reconstruiu os anos do Éden. Mas agora o pai não é o fantasma nem o
atormentam ódios petrificados. É como o avô Pedro, uma boa árvore debaixo da
qual crescem filhos e netos. É hora talvez em que feliz.
Ligações a esta post:
Comentários