Mal-entendido em Moscou, de Simone de Beauvoir
Simone de
Beauvoir escreveu Mal-entendido em Moscou entre 1966 e 1967. O texto deveria formar parte da compilação de A mulher desiludida, mas foi a própria autora
quem acabou discordando depois da ideia a ponto de não publicar esse material;
ele ficou inédito até 1992, quando a revista Roman trouxe como um título póstumo. No Brasil, o livro vem a lume
pela Editora Record, com tradução original de Stella Maria da Silva Bertaux, em
2015.
Protagonizam
o relato Nicole e André, um casal de professores parisienses que, já aposentados
e na década de 1960 – década considerada no texto como antessala da decrepitude
–, realizam uma viagem a Moscou para encontrar-se com Masha, a filha de André. O
périplo realizado pelas três personagens é identificado pelos biógrafos de Jean-Paul
Sartre e Simone de Beauvoir com a viagem que os dois fizeram pela União
Soviética no verão de 1966, acompanhados de Zonina, tradutora para o russo da
obra do filósofo e uma de suas possíveis amantes.
O núcleo
temático da obra é constituído, sem dúvidas, pela velhice, inevitavelmente
projetada a qualquer outra face da vida: o desgaste do amor de longa duração, o
declínio físico, o espanto do indivíduo ante a rapidez da passagem do tempo, a
decepção ante um mundo que não muda, ou muda de forma diferente a como pensávamos
que seria. Isto é, a velhice como feito supressivo e incontestável e como lente
através da qual se filtra todas as coisas; a velhice como epílogo vital em que
tudo parece tornar-se repetido e trabalhoso.
Mas,
é preciso voltar mais uma vez ao chamado efeito biográfico dessa obra. Há já um tempo que, qualquer novo
dado relacionado com as existências de Sartre e de Beauvoir suscita no público
a mesma curiosidade mórbida de quem escondido por detrás de um confessionário
escuta as revelações de um pecador. O interesse de Mal-entendido em Moscou não se furta que se desentranhem intricados
enigmas eróticos dos dois intelectuais. Do contrário, recorda a união como
coisa mais próxima à vida comum de um casal comum que a estrutura
diferenciada levantada por eles próprios, com seus famosos amores contingentes
e necessários. E essa constatação, é claro, se dá pela interseção entre a
viagem ficcional e a histórica realizada no verão de 1966.
Do ponto de
vista político, esta é uma história de um desengano gradual ante a contemplação
das realidades do regime soviético. Mas é, também, como dizíamos, a confissão sutil
do eclipse de uma paixão, sua desintegração que se confunde a própria
desintegração das utopias e da condição histórica almejada. Isto é, trata-se de
uma narrativa espelhar, em que os vários temas aí suscitados exercem uma
relação dialética.
A enredo é construído
a partir da intimidade das duas personagens principais por um narrador onisciente
que, recorrendo à técnica do estilo indireto livre, às vezes entra na
consciência ferida da mulher, e outras, nos pensamentos críticos do homem. É curioso
que a escritora acaba renegando parte deste texto e modificando, suprimindo a
perspectiva masculina, para convertê-la na primeira parte de A mulher desiludida, no texto “A idade
da discrição”. O que restou para esse livro é a consolidação sobre a
deterioração de um amor maduro explorado na sua profundidade, embora os
sentimentos da protagonista não se apresentem tão descarnados.
Uma das
maiores virtudes do texto está nos momentos em que a palavra da personagem
masculina, que se mete sem prévio aviso e que, salvo alguns momentos, aparece
bem diferenciada do restante do texto. As suturas que a autora terá feito no
texto não se deixa mostrar abertas; os instantes que poderiam melhor se
aprofundar na aguda consciência de André é soterrado por certo ensimesmar-se da
perspectiva feminina sobre as coisas, de modo que mesmo Natalie invade e o
suplanta em várias ocasiões a voz de seu companheiro com reflexões que
desconstroem o ponto de vista masculino e torna-o expressão notadamente
feminina.
Não é
heresia perguntar-se se Simone de Beauvoir faz uma autocensura na versão original de Mal-entendido em Moscou por haver sido
sincera demais ao capturar suas debilidades, ao mostrar nu ante o espelho um afeto
que no fim da vida tornou-se pedra. Talvez mais tarde quis destroçar suas
vivências, salvar para a eternidade um amor já esboroado com o tempo e o caos
afetivo e intelectualizar a efervescência de um ciúme humano, demasiadamente humano.
E essa transpiração de sinceridade é parte do encanto deste livro não muito
extenso, em que imaginação com certa exatidão as feridas suturadas nas entranhas
daquele desconcertante e perdurável amor entre a escritora e Jean-Paul Sartre.
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