Imre Kertész, lembrar para não permitir o renascimento do horror
Por
Guillermo Altares
Imre
Kertész, sobrevivente de Auschwitz, morreu numa quinta-feira, 31 de março de
2016, em sua cidade natal, Budapeste. Sua obra, sobretudo seu romance Sem destino, que levou treze anos para escrevê-lo e publicou em 1975,
oferece tanto do ponto de vista literário como memorialístico uma janela única
para observar um acontecimento que define o século XX: o Holocausto. Kertész era
um menino de 15 anos quando foi deportado em 1944 pela polícia húngara para o
campo de extermínio alemão de Auschwitz, na Polônia. Quando voltou para a
Hungria, não só encontrou o apartamento de seus pais ocupado por estranhos como
se deu conta de que restava só no mundo – toda sua família havia sido engolida
pela máquina de assassinar nazista.
Essa
sensação de solidão ante o horror, de que cada decisão tomada por um
adolescente que não havia cumprido a maioridade pode determinar sua vida ou sua
morte, está no coração da obra de Kertész e foi um dos elementos favoráveis à
recepção do Prêmio Nobel de Literatura em 2002. Liquidação, Kadish por uma
criança não nascida ou os seus diários, últimas das publicações, formam
uma obra não muito extensa, mas cuja intensidade, sabedoria e lucidez a
convertem num dos monumentos literários do século XX. O romancista arrasta o
leitor aos lugares mais obscuros do sistema de extermínio nazi sem utilizar
apenas adjetivos, mas com suas descrições precisas que ficam gravadas na memória de
qualquer leitor. Seus textos se destacam por sua beleza literária e, ao mesmo
tempo, pelo descomunal mundo que descrevem, pela forma como nos obriga a
refletir sobre o mal absoluto.
Kertésk,
padecia de Parkinson e já havia dito, ao regressar a Hungria em 2013, depois de
viver durante anos na Alemanha, que deixava a literatura. Mas, não escusou
deixar de ser um dos mais ferrenhos críticos sobre o autoritarismo que grassava
seu país no governo de Viktor Orban. “Aí acoitam por seus foros os antissemitas
e a ultradireita”, soltou numa das últimas entrevistas, onde falou de alguns
dos acontecimentos que julgou transcendental para si como a desaparição da
experiência e a consciência de ser umas das últimas vozes que poderia contar em
primeira pessoa o Holocausto.
O escritor,
como Elie Wiesel, outro judeu húngaro deportado para Auschwitz, prêmio Nobel da
Paz, ou Primo Levi, o químico italiano que sobreviveu aos campos de
concentração mas acabou se suicidando, era consciente da importância que
representava sua literatura, uma literatura que vai além do exercício com a
linguagem para se ocupar de um papel essencial na sociedade.
“A essência
de minha obra é transformar o acontecido numa dimensão espiritual. Que
permaneça na consciência, embora agora o veja com menos otimismo que há alguns
anos. O Holocausto é a ruína universal de todos os valores da civilização e uma
sociedade não pode permitir que se repita, que volte a se apresentar uma
situação parecida. Mas a crise econômica, uma crise assim, deu pé à chegada de
Hitler ao poder. Portanto, deveriam soar todos os alarmes. Mas não soam. O que
quer dizer é que o Holocausto não está mais na consciência dos políticos
europeus”.
Sem destino relata sua vida com a
estrela amarela no peito em Budapeste, sua deportação para Auschwitz, o gigantesco campo de trabalho e de
extermínio onde foram assinados perto de 1,1 milhão de pessoas, sua
sobrevivência às perseguições e morte depois de fechado o campo ante o avance
soviético, sua mudança para Buchenwald e seu regresso a Hungria, onde em breve
teria de enfrentar um novo horror: a ditadura de Stálin. Algo próximo à metade
dos judeus que foram enviados a Auschwitz para extermínio em câmaras de gás ou
através do trabalho forçado eram húngaros – uns 450 mil – o que demonstra a
demência assassina do regime de Adolf Hitler; sublinhe-se que muitas dessas
deportações foram em 1944 quando a guerra já estava perdida. Esse cenário de
horror industrial no qual se passa o filme O
filho de Saul, que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2016, está
profundamente marcado na obra de Kertész.
Noutra de
suas últimas entrevistas, explicou que o momento crucial, em que tudo se
decidia, eram “os primeiros vinte minutos de chegada ao campo”. Por isso, em Sem destino descreve com tanta precisão
a chegada do jovem György Köves. Esse relato não é só uma das passagens altas de
sua obra, mas da literatura do último século: a confusão, as diferentes línguas
– Auschwitz era uma tremenda cacofonia linguística em que muitas vezes os
presos não se entendiam entre eles e tampouco aos guardas –, a presença dos
soldados da SS, que transitam aparentemente despreocupados, enquanto
supervisionam a seleção que decide a morte imediata nas câmaras de gás ou pelo trabalho forçado. Ao descer do vagão, um preso pergunta a Köves se fala
iídiche – o dialeto dos judeus da Europa do Leste, próximo do alemão – enquanto espera
poder entender-se com os outros em hebraico. Graças aos seus conhecimentos de alemão descobre
que os presos querem saber sua idade. Quando responde que tem 15 anos, rogam
que diga que são 16. Seguramente essa conversa em meio do caos numa língua que
nem sequer compreendia bem salvou sua vida.
A obra de
Kertész vai muito além da esperança. Na verdade é um imenso relato da capacidade
de sobrevivência dos seres humanos, da recomposição da moral baseada na
consciência de que qualquer horror é possível. Ainda em Sem destino escreve: “Tive de reconhecer: nunca poderia explicar certas coisas de uma maneira exata se me tivesse me apoiado apenas na esperança, na norma, na razão, isto é, na lógica das coisas e da vida, pelo menos segundo
minha experiência de vida”. Como Primo Levi, Kertész é autor de uma obra que
vai muito além da experiência inevitável que descreve, o Holocausto: seus
livros deixam a humanidade só ante um mundo em que a esperança não é suficiente
e, sem dúvida, estão cheios de vida e de sabedoria.
A linguagem
como destino
Por Cecilia
Dreymüller
“Desde sempre
o tema de Kertész cobriu em grande parte seu reconhecimento literário”. Assim resumiu
o romancista húngaro Peter Nadas o dilema que elevou Imre Kertész ao
reconhecimento internacional que resultou na recepção do Prêmio Nobel: estar
reduzido a ser um autor sobre o Holocausto. Daí que para entender a obra em
todas suas dimensões dialéticas, haveria que começar com Um minuto de silêncio diante do muro. O Holocausto como cultura,
onde Kerész sonda o tratamento falacioso com o que considera uma “questão existencial
da civilização europeia”. De toda maneira, no legado intelectual de Kertész, a
vivência do Holocausto é só um aspecto de uma interpretação do mundo a partir
da questão radical de todas as ideologias e crenças. O que ocupa Kertész é o
processo de construção de identidade – seja no campo de extermínio, desde a negação,
num entorno totalitário, impostor de identidades, ou seja na democracia capitalista,
com suas identidades neonacionalistas.
Kertész é um
escritor de marcado corte filosófico, aquele em que o pensamento domina a
narração. Mas o fato de que todas suas personagens debatam questões éticas de
peso não significa automaticamente que careçam de vida ou não comovam com suas vivências.
Isso demonstrou claramente em Sem destino,
seu primeiro romance, onde se apresenta ao leitor a experiência dos campos de extermínio
através perspectiva de um rapaz assustado. Kertész acompanha este garoto, que
toma o mundo que lhe rodeia como normal, passo a passo num limbo existencial
sem interpretação ética alguma. Esta simples ideia, prescindir da indignação
moral e da ilustração impossível dos horrores, eleva o livro acima da chamada
literatura do Holocausto, pois aporta um conhecimento mais além do fácil
consolo moral.
Sem destino constitui a primeira parte
de uma tetralogia de romances sobre o significado “da cifra Auschwitz” e seu
prolongamento na história europeia. Entre elas destaca-se O fiasco, com outra reflexão perturbadora sobre os abismos da alma
humana: vítima e carrasco só se distinguem pela sorte que permite a um soltar
seus instintos violentos. O romance encena num fascinante jogo de espelhos a humilhante
e grotesca vida de um intelectual na ditadura stalinista húngara. Admite a
experiência do fracasso (as autoridades haviam reprovado a publicação de seu
romance Sem destino) e alcança assim
dar-lhe volta a sua desesperada situação. Da marginalização intelectual imposta
pela ditadura, constrói uma obra sobre a marginalização intelectual nas ditaduras.
A Kertész
preocupava que a tarefa de decifrar o código de Auschwitz se fizera mais difícil,
à medida que sua espantosa realidade se afastava no tempo. Liquidação é o seu primeiro romance escrito depois do fim do
socialismo de estado, e descreve a derrocada moral de uma geração de
dissidentes húngaros que, com a mudança de sistema, perderam o rumo. O niilista
atormentado B e seus amigos não sabem
como afrontar o vazio existencial produzido pela desaparição do regime
comunista. Suas vidas, centradas na resistência, caíram surpreendidas pela
falta de um inimigo identificável. Liquidação
se distingue por sua leveza, seu humor e a combinação com a perspectiva lúdica.
Apesar da gravidade de seu pensamento, mantém uma tônica de afirmação vital. É o
livro mais “comercial” de Kertész e fundamental para entender o vazio
intelectual que deixam as ditaduras.
A prosa autobiográfica
ocupa um grande espaço na obra, onde Kertész reflete – com este característico
gesto dialético-paradoxo – sobre o abismo entre criação literária e realidade
vivida. Nos diários e notas, especialmente em Diário de bordo, impressiona a nudez do olhar, a capacidade de autoindagação,
no instante em que comove a vontade de auto-humilhação. Na verdade, todos os textos
de Kertész se nutrem da contradição entre uma forma de vida e sua formulação. E,
segundo o narrador de A bandeira inglesa,
só o testemunho pode superar essa fratura, uma vida que em si mesma é formulação.
Durante quarenta anos de escrita solitária – anos documentados em seu Diário de bordo – num espaço de 28m²,
Imre Kertész tratou de penetrar “a tela fronteiriça entre a formulação e a
experiência” resistindo-se à negação do indivíduos.
Ligações a esta post:
* A primeira parte do texto é uma tradução livre para o texto de obituário do jornal El País e a segunda para "El lenguaje como destino" no mesmo periódico.
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