Baudelaire, um obcecado pela revisão

Detalhe da folha de rosto de uma das provas de As flores do mal.


Personagem de distraída modéstia, Charles Baudelaire sabia ser chamado à glória. “Rejeito tudo, o espírito de invenção e inclusive o conhecimento da língua francesa. Rio desses imbecis e sei que este volume, com suas qualidades e seus defeitos, encontrará um lugar na memória do público letrado, ao lado das melhores poesias de Victor Hugo, Théophile Gautier e talvez Byron”, escreveu para sua mãe em julho de 1857, depois de publicar As flores do mal, a antologia poética que revolucionaria as letras francesas. 

Se essa história é mais ou menos conhecida de todos, outra também não deixa de ser muito famosa: o poeta francês sempre soube que, antes de se inscrever na posteridade, devia construir uma obra sólida e irreparável. Por isso, passou quase uma década corrigindo suas provas para impressão, reescrevendo uma e outra vez seus 150 poemas com uma persistência quase patológica, a em que todo autêntico perfeccionista logrará reconhecer-se.

Essas provas foram publicadas em 2015 na França numa tiragem limitada a mil exemplares pela editora Les Saints Pères. É, antes de tudo, um documento: cada exemplar que saiu por 189 euros copia a edição anotada que a Biblioteca Nacional daquele país adquiriu num leilão no Drouot em 1998 por 3,2 milhões de francos.

Como a primeira edição de 1857 nunca foi encontrada, esta versão anotada é a única que conserva parte do conteúdo original. Até agora, este trabalho de inegável valor só estava ao alcance dos leitores através da consulta ao catálogo digital da BNF. 

A edição em papel trouxe ainda outra raridade: veio acompanhada de treze desenhos que Auguste Rodin esboçou três décadas depois em seu volume pessoal de As flores do mal, quando o livro já havia semeado o pânico na Paris do século XIX.

O editor, irritante

Durante os dez anos antes de sua publicação, Baudelaire, com seu olho crítico, seu perfeccionismo e rigor intelectual e artístico para com sua própria obra, se envolveu em múltiplas correções. Baudelaire, com fama de poeta maldito e aura de artista descuidado, se descobre aqui como um autor muito comprometido com o resultado final de sua obra. 

Lutou com as vírgulas mal colocadas e as acentuações não ajustadas ao uso gramatical, além de reescrever estrofes inteiras; escrupuloso até no mínimo detalhe, como deixa entrevê na defesa do uso da vírgula, da acentuação gráfica, risca o que lhe parece incorreto, pede que seja modificado o tipo de letra, questiona a ortografia de uma palavra. 

As incontáveis correções do poeta deram muita dor de cabeça ao seu editor toda vez que ele se dirigia com novas mudanças, adições e cortes ao livro. Na primeira página, o editor, Auguste Poulet-Malassis, se queixa: “Meu querido Baudelaire, levamos dois meses para imprimir cinco folhas de As flores do mal”.

Da mesma maneira, à margem de “Bênção”, um dos primeiros poemas do livro, Baudelaire se questiona sobre a palavra “blasfêmia” tal como está impressa nas provas. “Blasphême ou blasphème? Gare aux orthographes modernes! (Tenha cuidado com a ortografia moderna!)”, adverte. 

As estrofes são modificadas; assim acontece em “Uma viagem a Citera” e a saia de sua musa não se abre “às ligeiras brisas”, mas “às brisas passageiras”. Em seu célebre poema “Spleen”, em honra ao lúgubre sentimento que inspirava sua estética, o poeta riscou o sintagma “largo gemido”, preferindo “horrível grito” como saiu publicado. As duas últimas estrofes do mesmo poema foram integralmente reescritas o que deu uma versão totalmente diferente do original; não satisfeito, ainda deletou a metade dos versos da última estrofe refeita.

Depois, exige do seu editor, que na sua correspondência revela-se cansado dos caprichos de seu autor, que corte o subtítulo “Poesias”. “Contraria-me muito”, deixou escrito.

Dez anos de idas e vindas, o livro chegou às livrarias no dia 25 de junho de 1857. É a consagração para o poeta que, como testemunham seus contemporâneos, havia terminado a composição da maior parte de sua antologia começada havia muito anos.

Parte da recepção foi marcada pelo despertar da fúria da imprensa e das autoridades parisienses; a Segurança Pública o levou ante a justiça por ofensa à moral pública e religiosa. Depois dos incidentes, o autor dedicou-se a escrever apenas com uma clara vocação de sobrevivência; era consciente do valor da obra já publicada como deixou demonstrado na carta escrita para a mãe.

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