As grandes ondas, de António Barahona (Parte I)
Por Pedro Belo Clara
Apresenta-se hoje
aos nossos estimados leitores o título escolhido para a reunião da obra poética
do autor citado em epígrafe. O nome do mesmo, sabemo-lo graças às breves notas
que em anexo a este livro clarificam diversos pormenores passíveis de ser
encontrados através de um natural movimento de leitura, nasce a partir de “As
grandes fontes”, sugestão do também escritor Alexandre Vargas, e merece melhor
clarificação no poema de abertura, intitulado “Prefácio”:
As Grandes Ondas: ígneo mar revôlto
do coração, a fluctuar no som,
a lume do tumulto.
Um excelente modo
de iniciar esta viagem pelo universo poético de Barahona, sem dúvida, dado o
aprumo da súmula que se fez poema. Embora, sublinhamos, em momento algum do
livro se identifique uma menção ao facto de termos em mãos uma antologia
pessoal. Muito pelo contrário: leríamos o livro como se se tratasse de um novo
trabalho do autor. Somente chegando ao seu término poderemos ver a referência
temporal feita no fim do poema “Epílogo” (a que mais adiante nos referiremos),
remetendo então os poemas para o seu período de concepção: 1967 – 2013.
Retomando o rumo
do nosso texto, diremos que ter-se-á destacado, para os mais atentos, na
leitura do excerto antes exposto, o modo curioso com que algumas palavras
surgiram impressas. Mas o “fenómeno” tem a sua explicação.
Logo nas primeiras páginas deste livro, editado pela Averno em março de
2013 numa só tiragem de 250 exemplares, entretanto esgotados, uma brevíssima
nota elucida aqueles que não se encontram habituados a tão peculiares edições:
«A beleza da língua portuguesa provém das suas raízes (latina, grega, árabe),
da dicção do povo e da invenção dos poetas (…)». Guiada, assim, por aquilo a
que chama «o critério biológico e estético de Teixeira de Pascoaes», surgem em
seus livros palavras em formas entretanto caídas em desuso; portanto, cuja
actualização por meio de reformas ortográficas não é reconhecida. São disso
exemplo as seguintes: “hontem” (ontem), “etymologia” (etimologia), “syllaba”
(sílaba), “rhythmo” (ritmo) ou “hymnos” (hinos). Em todo o caso, não se recusa
o facto de tal escolha, cuja determinação na sua defesa se aplaude para além de
qualquer hipótese (ou não) de discórdia, imprimir em cada poema uma harmonia
visual ímpar, resultando numa peculiar experiência de leitura e sentimento.
Natural de Lisboa, onde nasceu no princípio do ano de 1938, António
Barahona dir-se-á um poeta de aura algo mística. Não só pelo conteúdo de muitos
dos seus poemas, como em breve veremos, como pelas raríssimas aparições
públicas ou entrevistas concedidas a órgãos do meio literário. A respeito desta
escolha, se não for simplesmente uma manifestação de carácter, dirá em verso o
seguinte: «Cada vez prezo mais a soledade e o recolhimento, no meio dos meus
livros e da minha caligrafia» (“Verificações”, II). Poderá, por isso, surgir
como um completo desconhecido a muitos leitores que não permanecem tão atentos
às movimentações no espaço das letras, sequer aos nomes que mereceram a sua
afirmação ou às novidades de obras ou autores que vão rejuvenescendo a
área.
Talvez, lidas estas linhas, se cole a imagem que delas sobeja àquela
legada por Herberto Helder, poeta de quem Barahona foi amigo e a quem, curiosamente,
a par de outras figuras, dedicou este seu livro. Ambos estudaram na mesma
escola, apesar das diferenças de idade, ambos integraram o famoso Grupo do Café
do Gelo, ambos tiveram uma fase onde permitiram a influência do surrealismo na
sua poesia e ambos colaboraram no lançamento dos primeiros números dos cadernos
de Poesia Experimental (Herberto organizou o primeiro, Barahona colaborou nos
dois – entre 1964 e 1966).
Mas apesar deste aparente recato, Barahona não oculta o cariz
contestatário que colora o seu ser mais íntimo – não se vá julgar a reserva de
carácter por uma ausência de voz firme e diáfana. Prova disso, por exemplo, são
as cartas abertas sobre “o crime do aborto” e a “Laicidade e pluralismo
religioso na Europa”, de 1998, ou o folheto em edição de autor “Igreja
Suicida”, datado de 2004. Antes, em 1997, com a publicação do seu “Alicerces
dos Telhados de Cristal”, assumiria uma posição crítica e de aberta contestação
ao escritor Salman Rushdie e ao seu livro “Os versículos satânicos”, obra essa
que granjeou diversos e profundos ódios no centro do mundo islâmico. Apenas
para ilustrar o caso, recorde-se o facto de certos líderes religiosos,
partidários da crença muçulmana, terem chegado a oferecer uma recompensa de
seis milhões (!) de dólares a quem conseguisse assassinar Rushdie.
O primeiro livro de António Barahona, de poesia, lançado em edição de
autor (como muitos dos seus futuros livros, aliás), data de 1961, situando por
isso o seu aparecimento no panorama literário português, com maior ou menor
destaque e divulgação, na profícua década que assistiu ao nascimento ou
afirmação de nomes como Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Herberto
Helder, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz e Ruy Belo (ainda que os dois
primeiros sejam de uma geração um pouco mais tardia, daí a anterior referência
à “afirmação” da obra poética). E até aos dias de hoje contam-se, além da
poesia, diversos trabalhos de ensaio e de tradução, os folhetos daquilo a que
categoriza como “polémica”, a organização de obras poéticas (Camilo Pessanha e
Cesário Verde) e um trabalho de transcrição aljamiada1.
A ligação ao mundo árabe, com os seus singulares traços culturais e
religiosos, não é de todo inocente. Pois Barahona, em 1975, decide converter-se
à religião islâmica2, o que invariavelmente influenciou o teor
temático de muitos dos poemas depois dessa data compostos, ao ponto de tornar
esta vertente uma das mais fulcrais da sua obra poética. E embora mantenha em
capa o seu nome de baptismo, nas páginas interiores de cada livro não esquece o
nome islâmico adoptado aquando da sua conversão religiosa: Muhammad Abdur
Rashid Ashraf. Não se estranhe, por isso, o destaque da referida nomenclatura,
completa ou encurtada, em certos trabalhos por sua mão assinados, pois tratar-se-á,
em qualquer dos casos, da mesma pessoa.
Eis um dos talvez mais flagrantes poemas onde a influência antes
referida se espelha, graças à exposição dos hipotéticos segredos íntimos da decisão
religiosa do autor: “Se não fosse o santíssimo profeta”. Vejamos alguns
excertos:
Se não fosse o Santíssimo Profeta
Muhammad (que a paz e as bênçãos de Deus estejam com ele)
revelar o divino Livro, eu não seguia
plo caminho direito da prosódia.
Se não fosse o Santíssimo Profeta
Muhammad (que a paz e as bênçãos de Deus estejam com ele)
que iluminou a minha alma, eu não veria
o espírito nocturno à luz do dia.
É curiosa, sem
dúvida, a sua arte de imbuir no poema traçados de teor religioso, lembrando
outros excelentes trabalhos que até nós chegaram oriundos de séculos passados,
poemas ou excertos de poemas de origem persa ou árabe em sua generalidade. Num
panorama poético moderno, dir-se-ia que um retorno a tais práticas, embora
recebam a devida actualização para o século onde foram aplicadas, merece um
distinto louvor. Mas, na verdade, é possível que para Barahona tal seja
simplesmente o modo mais natural e certo de criar poesia3: «Não há
verdadeira poesia sem esoterismo» - lemos na primeira parte do poema
“Verificações”.
A própria “religiosidade da poesia”, ou a aceitação da poesia como um
modo de louvar o Divino, já que o mesmo poema nos avisa que «Deus não reside em
nenhum livro», é algo que sobressai destas leituras. Assim, é compreensível que
o som seja uma das principais virtudes anexadas ao acto, associado que está ao
cântico – essa tão ancestral forma de celebrar forças que o Homem a si julga
superiores. O poema “Uma ilha” é disso exemplo, ao embalar no âmago uma
metáfora facilmente aplicável ao ser humano:
Uma ilha vulcânica
rodeada de morte
por todos os lados menos por um:
o lado do som
o que faz dela um continente
aberto ao coração.
No fundo,
confrontamo-nos com os mesmíssimos parâmetros que um outro poema, de nome mais
óbvio (“Acústica”), revela em seu corpo poético, provavelmente envolto num
perfume mais místico ou filosófico, se o leitor assim o preferir designar:
No som está o sentido do que digo
e também do que não digo, ao dizer.
Dizer ou não dizer, eis a questão
que equivale a ser o próprio som
do que se diz silente em oração.
Naturalmente, onde
o som existe a palavra não poderá andar longe. Ambos, assim, tornam-se veículos
de louvor, mas também meios de divulgação (a famigerada “boa-nova”, afirmada ao
bom estilo evangelista) – se não de busca, quando a sua necessidade é sentida
de modo mais íntimo. Isto se afirma em consideração ao poema “Proposição”, que
nos oferece uma ideia de redenção do Homem ao Divino, atestando uma vez mais a
faceta religiosa de cariz islâmico que Barahona traz para o campo poético,
embora aqui e ali se consiga denotar um traçado transversal a muitas outras
práticas e crenças, nomeadamente o cristianismo e hinduísmo4:
O Poeta tem que devolver a sua voz a Deus
Não deve continuar a falar em seu próprio nome
mas sim em nome de Deus
com a voz refeita em liturgia
Mas não se pense
somente em termos de fieldade absoluta, já que essa corre sérios riscos de
cegar o seu humano amparo. Apesar de tudo o que até agora abordámos, existe em
relação a este tema um espaço para a dúvida e para a contestação. Filhos do
carácter rebelde do autor, não obstante a sua personalidade reservada? Só o
próprio o poderá esclarecer. Mas quando a implacabilidade das coisas reais
aperta, quando as cortinas da fé de súbito se descerram, o caminho parece
repentinamente semeado de espinhos. Será provavelmente nesses momentos em que
poemas como o seguinte, “Poema de desencanto e de combate”, surgem cintilantes
do âmago da revolta e da desilusão: «Não há esperança / e…, ainda bem. // (…) O
real impõe-se com tanta realeza». Mas a direcção, mesmo com o desabar da
tempestade, não se dá por perdida: «Voar custe o que custar. / Quero o amor
mais perto de mim / do que a minha veia jugular». Será sem dúvida uma
reincarnação do mítico fio de Ariadne, guiando o intrépido caminhante pelos
labirintos da existência, uma cintilante estrela bordada nos negros veludos que
vestem a noite da alma: «De Deus, já não há verosimilhança, / mas, sim,
ausência e indiferença».
Importa frisar que
o poema no anterior parágrafo referido data de 2012, pelo que o contraste em si
contido, especialmente se colocado ao lado de muitos outros presentes nesta
obra que lhe ganham em termos de idade, encerrará uma considerável
significância.
Notas:
1 Ou seja, um trabalho realizado com a grafia do
alfabeto árabe num processo de transcrição de línguas europeias de teor
românico, ou latino, como o Português. A Aljamia nasce numa época em que os muçulmanos haviam sido expulsos da
península Ibérica, o seu território de Al-Andalus.
Os que ficaram, porém, forçados à conversão de fé e modos de vida,
inevitavelmente adoptaram a língua latina da região, conservando ao mesmo tempo
o uso do alfabeto árabe por motivos culturais e religiosos. Diversas
transcrições foram então feitas em clandestinidade, bem como novas obras em
poesia e prosa, circulando somente entre a população mourisca. Só no princípio
do século XIX os historiadores descobriram este tipo de literatura.
2 Nas “Notas na margem de um rio”, datadas de 2002, o texto em prosa
que encerrará a obra propriamente dita, encontramos uma anotação que, a
respeito do que se escreve, ilustra o seguinte: «Uma concepção demasiado
romântica de poeta maldito, uma sensibilidade desordenadamente dolorosa e,
sobretudo, o amor louco pelas mulheres…, fizeram-me perder muito tempo de
estudo, mas não a experiência, que não me serve de nada».
3 O sexto ponto do texto em consideração esclarece: «Poesia não é
apenas uma espécie de música composta por syllabas, mas também, e
principalmente, o esforço silencioso no caminho de Deus».
4 Partilhamos, a respeito deste assunto de carácter poético, o sétimo
ponto destas “Notas”: «Quando medito nos anos volvidos em vertigens de amor,
viagens e versos, embora religioso, aprisionam-me o absurdo, a melancolia e a
dúvida: e só me libertam as vozes de Krixna, Buda, Moisés, Jesus e Muhammad».
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