A imagologia de nosso contexto político
Por Rafael Kafka
Dos autores
que eu lia há dez anos e ainda hoje leio, Milan Kundera é o que mais é
revisitado por mim em meus pensamentos cotidianos. A insustentável leveza do ser, por exemplo, é um texto lido em 2006 e em 2007 por mim cujo fio central,
as relações amorosas em tempos líquidos narradas por um romance com pretensões
filosóficas até hoje são lembradas em momentos de reflexão e devaneio por minha
pessoa. Os outros livros de Kundera com que tive contato possuem uma mescla
interessante entre uma doçura existencialista a falar de temas complexos como
as relações humanas e essa permuta de papeis entre o escritor e o ensaísta que
se utiliza da literatura para iluminar as ideias que acometem a sua mente.
O autor
tcheco, nesse sentido, sempre me lembra demais José Saramago, pois o seu
narrador se confunde demais com a figura do autor. Há passagens em livros como
o acima citado em A imortalidade, por exemplo, nas quais o autor e coloca como
personagem de seus livros, tendo diálogos e relações com suas personagens. Se
Saramago usa um tom mais de fábula em seus textos, Kundera usa o tom do ensaio
em diversos pontos da narrativa, com capítulos inteiros servindo de explicação
a pontos interessantes de seu pensamento.
Dois temas
básicos são recorrentes em seus romances: o amor e a identidade. Os conflitos
amorosos são expostos sob o prisma da busca identitária de cada ser e é isso
que transforma as relações humanas em verdadeiros conflitos de consciências. As
identidades tentam a todo instante se definir e se afirmarem enquanto seres
conflitos, o que gera diversos embates dentro de uma relação a qual deveria ser
de puro romantismo. Ademais, a questão da tensão entre a liberdade e a entrega
ao outro também se mostram bem prudentes.
Ainda sobre
a identidade, interessante notar as críticas que o autor faz ao comunismo.
Nascido em uma região que fez parte do mundo socialista, Kundera tece uma
interessante visão crítica do fanatismo comunista que permeou diversas pessoas,
vendo nessa visão política a solução para os problemas de desigualdade social
presentes no mundo todo. Crimes cometidos contra a humanidade, por exemplo,
foram ignorados em nome da causa maior da ditadura do proletariado e é essa
paixão por uma teoria política, muitas vezes beirando um radicalismo que nega o
diálogo, que se mostra como foco da obra de Kundera em diversos momentos.
Em A insustentável leveza do ser, por exemplo, Franz brinca de ser comunista e perde
a vida por procurar desesperadamente uma forma de definição para a sua
identidade não encontrada. O comunismo aqui não tem o princípio libertador da
coletividade e sim um foco puramente egocêntrico. Essa crítica se liga, de
certa maneira, ao que é exposto sob o nome de imagologia em A imortalidade. Se
a ideologia é uma representação linguística de princípios que servem para dar
norte à existência do indivíduo, a imagologia seria a preocupação obtusa com a
própria imagem, a qual muitas vezes impede de reconhecermos nossos erros ou
mesmo de ouvirmos o outro.
Acabo de ver
um post do quadrinista Will Leite que de certa maneira ilustra bem isso.
Muitas vezes, diz Will, começamos um debate tão focados em defender nossas
posições que não prestamos atenção no que o outro diz. Ouvimos a primeira frase
e a partir de então já pensamos na resposta contrária. Todos somos sujeitos a
isso por fazermos parte de uma espécie animal preocupada em demasia com
defender a própria imagem e alimentar o próprio ego. Quando vamos para um
embate ideológico não estamos preocupados em defender nossas ideias e sim em
defender nossas imagens, o que nos leva a ver uma discussão como uma disputa,
como algo a ser vencido, pois queremos pousar de vencedores na arena da
inteligência.
As redes
sociais potencializaram isso. Se Umberto Eco disse que elas deram voz a uma
geração de imbecis, basta pensar que até pouco tempo atrás ninguém queria saber
de discutir política, mas desde as jornadas de junho de 2013, evento político
absorvido pelos setores reacionários de nosso país e pelas pessoas que iam aos
protestos para encherem seu Instagram de fotos engajadas, parece que o clima de
debate em forma de embate nas eleições, parecido com as provocações de torcidas
organizadas, não acabou. Em seções de comentários, o que mais vemos são pessoas
preocupadas em defender sua imagem vociferando de todas as formas possíveis
suas verdades, não preocupadas em fomentar pensamentos novos pelo debate e sim
em anular o adversário, fazer do silêncio prova de inferioridade e de derrota
alheia. As redes sociais criaram uma potencialização de nossa preocupação com a
imagem e por isso mesmo o clima quente por ali reina. Eu mesmo passei por
algumas crises nos últimos anos diante da quantidade de tempo perdido em sites
como Facebook e Twitter. Se hoje o tempo perdido não se justifica mais por
questões amorosas, ainda assim é considerável e deprimente se vejo a quantidade
de discussões tolas em que me meto, somente para provar que estou certo, quando
do outro lado está alguém que provavelmente também quer provar isso e nem se
detém a entender o que quero expressar.
O que torna
autores como Kundera grandes é que suas críticas se voltam contra um
determinado aspecto da realidade, mas podem ser aplicados a outros. A
imagologia que leva à paixão comunista é a mesma presente em comentários de pessoas
pobres as quais vociferam em redes sociais contra o pensamento de esquerda,
defendendo empedernidamente uma visão de direita, ao mesmo tempo reclamando do
sucateamento de universidades federais e demais serviços públicos e do fato de
empresas de telefonia agora quererem limitar o acesso à internet para
recuperarem o poder de seus planos de TV a cabo. Assim como Orwell teceu belas
críticas ao totalitarismo de esquerda em seu 1984, Kundera tece análises
profundas acerca do comportamento apaixonado que leva ao comunismo fanática as
quais podem ser perfeitamente usadas para analisar o atual cenário político
nacional, com pessoas desesperadas diante de um sistema político corrupto
financiado por elas com suas práticas eleitorais tacanhas e que não sabem como
redefinir o atual cenário, acreditando em soluções divinas como a queda de uma
presidenta ou mesmo a volta dos militares ao poder.
Em seu A brincadeira, romance dele que estou a ler atualmente, Kundera narra a vida de
uma personagem de nome Ludvik que foi expulso do partido comunista de seu país
por citar Trotski em uma carta em tom de piada a uma antiga namorada. Chamado a
depor em uma série de comitês, Ludvik é expulso do partido e proibido de
estudar, restando-lhe apenas o direito à carreira como soldado negro,
responsável por realizar obras no país, uma espécie de pária social. O
interessante no relato de Ludvik é que a simples menção do nome de Trotski é
vista como crime, inclusive pela ex namorada, o que remonta ao que diz Terry
Eagleton em seu Marxismo e Crítica Literária: o significante, a palavra em si,
já tem significado. E se levamos essa máxima de Eagleton para o campo
semiótico, veremos que Ludvik poderia facilmente escrever um relato similar
sobre si mesmo sendo espancado na rua por usar uma camisa vermelha.
O que
Kundera expressou no relato de Ludvik lido por mim até agora é o mesmo expresso
por diversos outros autores, de esquerda ou de direita: a demonização do
pensamento contrário a si. É o mesmo que ocorre em páginas do Facebook o tempo
inteiro. As pessoas não procuram ler os pontos de vistas alheios e entendê-los.
Possuindo uma visão acabada desses pontos de vista, geralmente passadas adiante
por discursos com autoridade em determinado contexto (a velha máxima do
comunista que come criancinhas, tão popularizada pela versão nacional do
macarthismo) e se negam a ouvir algo que desconstrua suas visões, agindo com
violência verbal e física, se necessário, para defenderem suas visões, suas
imagens. Tais pessoas não param para ler e ouvir pelo simples fato de elas não
quererem se assumir enquanto ignorantes, da mesma forma que os nobre do conto
de Andersen não querem assumir para si mesmos que não estão vendo roupa nenhuma
no rei, pois mais fácil do que a assunção de estarem sendo ludibriados é a eles
ficarem preocupados em serem vistos como burros pelos outros por não verem a
nova roupa do rei.
Kundera
nasceu em um ponto de totalitarismo com motivo socialista, ao passo que nós
vivemos resquícios bem vivos do totalitarismo de uma ditadura militar financiada
por empresas privadas, muitas ligadas ao ramo da comunicação. A anistia dada a
esses militares por eles mesmos não mudou de forma significativa a mentalidade
do povo brasileiro e nesse sentido conceitos antigos seguem vivos no consciente
e inconsciente coletivo. O principal deles é de que política é algo sujo por
natureza e é preciso mão de ferro para resolver os problemas. Esse conceito
geralmente se liga ao outro que considera conversa demais e prática de menos
desperdício de tempo, o que gera terrível preocupação às ciências humanas e da
linguagem, as quais possuem imensas contribuições para entendermos o contexto
social e humano complexo no qual vivemos.
Tudo o que
Kundera cita de despersonalização existente em uma fé cega no comunismo vejo diariamente
em redes sociais, na mente de pessoas que defendem de maneira fanática medidas
drásticas de soluções para nossos problemas. Mais do que o socialismo real ou o
capitalismo neoliberal o que cega as pessoas é a imensa preocupação tida por
elas em focarem somente em si mesmas, em suas vidas limitadas pelo nascimento e
pela morte. Creio ter sido esse poder de descompressão da leitura já focado por
mim em outros textos como a primeira forma de salvação do texto, em especial o
literário: sair de nós pela leitura para ouvirmos o que se passa com outros
seres é o primeiro passo para, de repente, mudar o mundo, abandonarmos a
imagologia e entendermos melhor as ideologias as quais nos movem e movem os
outros.
Fecharmos em
nós mesmos é perigoso, pois estaremos a nos prender em algo frágil como nosso
ego. Na defesa empedernida de algo tão frágil e sensível, agiremos como o
animal selvagem acuado a se atirar contra seu matador na esperança de pelo
menos sair vivo de uma batalha injusta e absurda. Em um contexto desse, os
ânimos ficam acirrados demais e defender uma ideia se torna extremamente
perigoso, pois usando o discurso racional mesmo quem concorda conosco pode nos
ver como inimigo, por não usarmos da violência no trato político. Em um
contexto egocêntrico e imagológico, até mesmo a ironia socrática se torna
perigosa demais.
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