William Shakespeare, a invenção do mito

Por Jon Viar Apricio



Durante as últimas semanas li vários artigos na imprensa sobre Miguel de Cervantes e William Shakespeare, em torno dos quatrocentos anos da morte dos dois. Sobre o maneta de Lepanto continuo descobrindo novidades e curiosidades. Mas sobre o bardo de Stratford só encontrei tópicos com muito pouco ou quase nenhum rigor. Quando nos referimos a Shakespeare convém indagar além do mito e do negócio criado depois da fama em torno de seu nome. É chamativo o fato de que nesses artigos não se mencione a controvérsia sobre a autoria das obras tendo em conta que desde que Delia Bacon publicou The philosophy of Shakespeare’s plays unfoles em 1857, a polêmica não findou nos meios acadêmicos e artísticos. Os chamados stratfordianos são todos aqueles defensores da versão oficial segundo a qual Shakespeare seria o autor de todas as obras a ele atribuídas. Mas há outras teorias.

Li em algum jornal afirmações tão categóricas como a de que William Shakespeare aprendeu latim na Grammar Scholl de Stratford-Upon-Avon, dado pouco verossímil tendo em vista que os stratfordianos mais ferrenhos como Jonathan Bate, Stephen Greenblatt, Anthony Holden ou o incansável Harold Bloom reconhecem que não há nenhuma prova de que um tal de William Shakespeare tenha estudado numa dessas escolas primárias. O que sabemos é que Christopher Marlowe aprendeu grego e latim na Universidade de Cambridge e que foi ele quem traduziu Ovídio e Lucano, familiarizando-se assim com o gênero épico. Com a Farsália de Lucano, Marlowe estudou a fundo o decassílabo branco e logo se converteu no máximo expoente do decassílabo jâmbico sem rima, o mesmo estilo que supostamente empregaria alguns anos mais tarde William Shakespeare. Quando os jornalistas citam essa famosa frase de Ben Johnson que afirma que Shakespeare “sabia pouco latim e menos grego” não parecem entender que Johnson ironizava sobre as qualidades poéticas deste. Desde 1925 sabemos graças ao pesquisador canadense John Leslie Hotson que Christopher Marlowe não era apenas um brilhante estudante de Teologia da Universidade de Cambridge. Hotson descobriu no arquivo municipal de Londres a informação sobre a morte e a identidade de Ingram Frizer, suposto assassino de Marlowe. Os documentos ali encontrados revelaram que tanto Marlowe como Frizer trabalharam como espiões da rainha Isabel, mas isto não parece interessar a quase ninguém.

Afastando-se por um momento de toda a sorte de especulações, poderíamos perguntamo-nos sem maldade por que sabemos muito mais sobre o próprio Bem Johnson, Marlowe, Thomas Nashe ou Thomas Kyd que sobre o grande Shakespeare. As dúvidas razoáveis sobre o suposto bardo de Stratford começaram em 1785, mas essa é uma longa história. O que ninguém pode ignorar a esta altura é a Declaração de Dúvida Conveniente assinada por acadêmicos como William Leahy e por atores tão relevantes como Derek Jacobi, Mark Rylance ou Jeremy Irons. Os assinantes não se colocam de acordo sobre a autoria das obras atribuídas a Shakespeare mas coincidem no fundamental: nada faz pensar que este escreveu Hamlet. De todas as afirmações que se descobriu sobre o tema, talvez a mais interessante de todas é a de Giles Milton, quem afirma que não existe nenhum poema, nenhuma obra, nenhuma carta escrita de próprio punho por Shakespeare. Como sabemos, só temos seis assinaturas de traço pouco firme, todas com grafia diferente, escritas de próprio punho com “Shaks-speare”. Nelas aparecem quatro grafias distintas e nenhuma delas inclui o “e” em “Shake”. Seu nome tampouco figura nas primeiras seis de suas obras impressas. Paul Edmonson – quem também é stratfordiano – afirma que há somente três documentos que provam a existência de William Shakespeare: a certidão de que foi batizado em 26 de abril de 1564 em Stratford-Upon-Avon, Warwickshire, e morreu aí mesmo em 23 de abril de 1616, segundo indica seu atestado de óbito. O outro documento que temos ciência faz referência ao seu casamento com uma mulher mais velha que ele, chamada Anne Hattaway, em 1582.  

Surpreende que nos artigos encontrados durante estas semanas, os jornalistas citem somente os estudiosos stratfordianos como Bate ou Bloom mas só parcialmente, ignorando os partidários da teoria marlowiana como Calvin Hoffman, Daryl Pinksen ou Isabel Gortázar. Jonathan Bate aceita que Calvin Hoffman está certo quando adverte uma coincidência entre o suposto homicídio de Marlowe e a entrada na Satationer’s Register de Vênus e Adônis, que segundo Bate foi produzida em 18 de abril de 1593, semanas antes da desaparição de Marlowe. Para Bate essa data colocaria por terra as teorias de Hoffman, quem sem dúvida assegura que o citado poema foi publicado de forma anônima. O nome de William Shakespeare só apareceu no fim com uma dedicatória não autorizada para o conde de Southampton que não saiu impressa na capa do livro.

Todos esses stratfordianos depreciam Marlowe com autor mas reconhecem uma e outra vez que sem o poeta de Canterbury não existiriam os textos atribuídos a Shakespeare. Concretamente, Stephen Greenblatt afirma que se Marlowe não houvesse existido, as obras de Shakespeare não haveriam sido muito diferentes. E Shakespeare plagiava passagens de Marlowe constantemente e a assinatura de Shaks-peare mais parece um pseudônimo. Isabel Gortázar se perguntava como pode Shakespeare criar um vocabulário de mais de mil palavras a menos que sabousse grego, latim, espanhol, francês, italiano, provavelmente hebraico, além do inglês.

Curiosamente, quando falamos dos “anos perdidos” de Shakespeare – período que vai de fevereiro de 1585 até a sua suposta chegada a Londres em setembro de 1593 e, portanto, pouco depois da morte oficial de Marlowe – ninguém se pergunte sobre o que fez durante esses anos. Aceitamos que, embora não saibamos absolutamente nada de nenhum William Shakespeare durante esses oito anos e meio, o chamado bardo de Stratford esteve dando voltas pelo mundo sem escrever uma só palavra.

Cronologicamente, Shakespeare pode copiar Marlowe, tal e como sugerem os detratores da teoria marlowiana. Sem dúvida, há outro dado relevante que poucas vezes se menciona: nenhuma das obras atribuídas a Christopher Marlowe foram impressas antes de 1621, quando William Shakespeare já havia morrido há cinco anos.


* Este texto é uma versão livre de "Shakespeare, la invención del mito", publicado no jornal El País.


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