Todo mundo tem direito a um segredo, de Lia Sanders
Por Pedro Fernandes
Desde a
ruptura com a narrativa clássica ou o padrão fixo de composição da forma de
narração, que os escritores têm, depois de passar por uma febre da imitação da
realidade, exercido outro trabalho com a linguagem. Grosseiramente, este texto
prefere chamar esse lado de criação. Claro, o termo bebe da decomposição da
ideia de que, apenas na lírica, o escritor é um criador. Isto é, cada vez mais
o romancista tem buscado fundir a poesia à prosa. Essa observação não diz
respeito, evidentemente, a Todo mundo tem
direito a um segredo, ao menos no sentido direto com que ela é aqui
apresentada, mas é para sublinhar outra questão (e esta, sim, diz respeito ao
livro de Lia Sanders): mesmo livre, o ato de criação literária permanece ligado
a alguns lugares que, uma vez o escritor não os observe, corre o risco de
desandar o tom que faz com que uma narrativa seja vista como bem construída.
Não é o caso
de Todo mundo tem direito a um segredo se
encaixar no rol do que comumente se chama, no caso das narrativas de forte
aproximação com o tônus lírico, por romance inventivo; não, o livro de Lia
Sanders tem uma relação muito estreita com a realidade externa ao texto e traço
fracamente objetivo mesmo que seja uma narrativa marcada pela primeira pessoa
com a pequena variação em alguns capítulos que cerzem outro plano da narração. E
isso não é um problema. Além disso, este não é, na acepção comum do designado
pelo estudo do texto literário, um romance e sim uma novela, visto que o leitor
tem uma concatenação de várias ações individualizadas e protagonizadas pela
mesma personagem. Numa novela, o fio condutor pode (e deve) sofrer uma
diversidade de idas e vindas no intuito da boa realização do narrado. E isso, o
livro em questão consegue, a seu modo, de bom grado.
Além disso,
Lia Sanders, pela ciência de uma novela, prefere o uso de uma linguagem
simples, do encadeamento linear das ações; organizada, sempre fecha todo o conjunto
das ações de traço contínuo como quem prefere fechar todas as portas que
encontra abertas pelo caminho. Isso faz com que – além de tornar o texto funcional
e se mostrar com o zelo de quem aprendeu a dirigir e respeita todos os comandos
para colocar um carro em marcha – mesmo se o leitor for iniciante, conseguir
lê-la em qualquer lugar numa sentada. Leve e breve. Se a tensão do fio
narrativo se avistasse não em vários pontos e sim no fim do percurso teríamos bem
um conto. E talvez como um conto a obra ganhasse a força que se dilui no enredo
da novela.
O texto de
Lia Sanders só poderá deixar o leitor perdido quando a narradora, sem qualquer
sossego de explorar melhor o imbróglio da narração, logo se apresenta com o que
pode ser uma possível solução completa para a intriga e, todos os meandros de
tornar plausível a realização do narrado, acaba por desaguar algumas vezes uma
quantidade diversa e intricada de informações. Mas, nada impede que esse mesmo
leitor faça um retorno e consiga alinhavar os desfechos e situações e tornar ao
prumo da narrativa. Isso, portanto, também não é nenhum problema: é uma
característica do gênero e a escritora executa como deve.
Todo mundo tem direito a um segredo é um
convite. O leitor tende à espreita porque se identifica com a sentença; afinal,
quem não tem seus segredos ou quem não os revela para os de sua confiança, ou
se for forte em suas convicções, morre com eles e nunca ninguém tem acesso ao
que esconde? E, ao contrário do que o título da novela anuncia, não é só um
segredo o que guarda as personagens com as quais a narradora se relaciona,
aliás, as personagens não, a personagem: sua avó Rebeca. Que o segredo de todos
os do universo da narradora parece pertencer a um ou poucos guardiões. Claro,
há ainda a série de invenções criadas para proteger a face da personagem
ausente ou para subverter determinadas verdades por ela elididas. E é essa
pluralidade de segredos a responsável pela diversidade de desenlaces que marca
pelo menos três momentos da narrativa; ela demonstra que a escritora terá
elaborado bem a história.
Mas, mesmo
reafirmando sua liberdade para construção da maneira que lhe for conveniente à
narração, falta algo que não consegue atingir o objetivo traçado. Ficará sempre
devendo um trabalho de maior maturação das ações, de maior exploração dos
dramas, de maior autenticidade na composição, ainda que o seu objetivo não fosse
o de escrever um romance. A novela exige menos porque é uma narrativa fundada
mais na externalização do acontecido. No caso de Todo mundo tem direito a um segredo é bem verdade que a trama
novelesca sugere, ao mesmo tempo, que essa condição de falta que impregna os
sentidos do leitor ante a narrativa é produto da impossibilidade de plena
realização da escrita quando, no correr do narrado o leitor descobre que este
livro (que é um livro que carrega outro livro dentro dele) era para ser a
biografia ou a história de vida da avó da narradora, quem a contrata para
escrever suas memórias e torna-se então uma espécie de registro das agruras
desse período de tempo em que a obrigação desse texto mais lhe foge. Talvez perceba,
num jogo de pura audácia, que sua vida – ao menos nesse instante – tem mais
serventia ao enredo que a da avó, o mesmo seja uma espécie de prato frio da
vingança contra quem é, de fato, essa senhora Rebeca. Essa saída, aliás,
responde pelo não escoamento total da riqueza tramada para a realização da novela
e só alcançada em parte pela escritora.
Não há uma
determinação sobre o tempo no qual se desenvolvem os acontecimentos, embora o
leitor possa compreendê-lo pela presença de alguns elementos que retomam a
contemporaneidade: o computador, o telefone celular etc. Mas, Lia peca nesse
aspecto porque rompe o pacto de verdade que toda obra deve construir com o
leitor, mesmo que ela seja de fantasia ou ficção científica. Isso é marcado por
uma personagem criada órfã, por uma avó suposta, e que não teve qualquer tipo
de educação escolar, com formação autodidata pelos livros indicados por Rebeca,
além, é claro, da série de coincidências que se apresentam na trajetória da
narradora a fim de resolver um sempre iminente desfecho trágico para ela; o
problema é que isso se dá num tempo em que essa realidade se apresenta
quase-alheia, sobretudo quando se sabe que não estamos numa família
desfavorecida e nem num reduto social de periferia, e depois pela extensa
dimensão do universo social em que se desenvolve os acontecimentos. A família
da narradora é dona de um importante jornal em Fortaleza, cidade que serve de
cenário para a narrativa. O deslize poderia ter sido desfeito se, numa leitura
atenta, Lia trabalhasse melhor o distanciamento temporal – elemento fundamental
para que essas implicâncias conseguissem alcançar esse efeito de verdade buscado
pelo leitor – e a criação de um espaço onde se dá as ações da narrativa menor,
afinal, o núcleo da narração é bastante pequeno. E aqui, nada adianta, reforçar
esse pacto natural de verdade do narrado com a inserção de ações de outro plano
narrativo, misto de terreno e divino, como se estivéssemos não ante uma
revisitação do clássico, como quer nos sugerir, mas sim ante uma narrativa
barata de espiritismo, dessas que ganhou sucesso nas telenovelas brasileiras.
Nessa mesma
linha, não é possível deixar de citar, a flacidez do tom com o qual constrói a
voz da narrativa: a narradora tem meados dos vinte e tantos anos, mas
comporta-se, vezes ou outra, como se uma dessas adolescentes saídas de uma
narrativa infanto-juvenil, outras, como se uma figura adulta com linguagem mais
rebuscada. É lógico que a primeira
condição pode ser respondida pela natureza rude de uma figura urbana matuta e a
segunda por essa figura autodidata que escreve para jornal. Mas há um impasse
entre uma e outra voz que a narrativa não soluciona. Novamente o zelo com a
realização do narrado perde muito com isso. Não há irreverência que sustente
essa discrepância de tom; nem seriedade. Toda narrativa tem um quê de musical e
é preciso que o escritor tenha segurança sobre a melodia que ouve enquanto enforma
ao narrado. A condição autodidata da narradora – de exímia leitora como é
apresentada – não permite que o leitor a aceite como uma simples bonachona
interessada em contar uma história que não se realiza, ao menos da maneira como
se apresenta. Vale o princípio de Italo Calvino colhido de Seis propostas para o próximo milênio da leveza e do peso da
linguagem; é necessário que o escritor consiga o equilíbrio entre um e outro
extremo, ainda que a novela não tenha para sua realização a necessidade de revelar
o peso insustentável da vida, mas a espessura da existência não deve nunca
deixar de se toldar numa bateia na qual se aviste os minerais do exterior e do
interior ao narrado.
Agora, as estratégias das quais a escritora faz uso para a consolidação de sua história e não deixar escapar frestas pelas quais se possa questionar sobre determinada característica (mesmo que se trate de recriação de aspectos da vida e "A vida tem muitas pontas soltas", para citar uma das passagens da narrativa) são de um todo bem realizadas. Nesse mesmo ínterim, são muito bem-vindos o interesse de fazer uma obra em diálogo não reconstrutor seja do tema clássico seja do próprio modelo narrativo mais tradicional e a introdução na narrativa novelesca de elementos pertencentes ao roteiro. E aqui, o leitor não ousaria pensar esse elemento um produto das influências com as telenovelas? Talvez. Mas, o esperado é que não. Seria raso demais saber que foi isso. O esperado é que Todo mundo tem direito a um segredo esteve pensado para ser um texto grandioso e por circunstâncias que só caberá ao desenvolvimento de uma maturidade literária não alcançou sua plena realização. Ficou pelo caminho. Como se o motorista mesmo conhecedor do que coloca o carro em movimento deixasse escapar um dos comandos. Mas, é um exercício que todo escritor não pode se furtar a fazê-lo. E Lia Sanders largou bem, sobretudo, quando o leitor descobrir nessa novela um retrato do comezinho humano.
Agora, as estratégias das quais a escritora faz uso para a consolidação de sua história e não deixar escapar frestas pelas quais se possa questionar sobre determinada característica (mesmo que se trate de recriação de aspectos da vida e "A vida tem muitas pontas soltas", para citar uma das passagens da narrativa) são de um todo bem realizadas. Nesse mesmo ínterim, são muito bem-vindos o interesse de fazer uma obra em diálogo não reconstrutor seja do tema clássico seja do próprio modelo narrativo mais tradicional e a introdução na narrativa novelesca de elementos pertencentes ao roteiro. E aqui, o leitor não ousaria pensar esse elemento um produto das influências com as telenovelas? Talvez. Mas, o esperado é que não. Seria raso demais saber que foi isso. O esperado é que Todo mundo tem direito a um segredo esteve pensado para ser um texto grandioso e por circunstâncias que só caberá ao desenvolvimento de uma maturidade literária não alcançou sua plena realização. Ficou pelo caminho. Como se o motorista mesmo conhecedor do que coloca o carro em movimento deixasse escapar um dos comandos. Mas, é um exercício que todo escritor não pode se furtar a fazê-lo. E Lia Sanders largou bem, sobretudo, quando o leitor descobrir nessa novela um retrato do comezinho humano.
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