Roth libertado, de Claudia Roth Pierpont
Por Anna
Caballé
Sempre foi
dito que Jonathan Swift, talvez o mais importante escritor em língua inglesa de
seu tempo (com a licença de James Boswell), foi um escritor que unia à sua
grande inteligência uma absoluta incapacidade para a ilusão. Um oculto
desespero o levava ser crítico de todos os valores dominantes a fim de ameaçar
as próprias raízes da existência humana como faz em As viagens de Gulliver. E agradeço a autora de Roth libertado. O escritor e
seus livros, Claudia Roth Pierpont, que sugere as relações apreciáveis quanto
ao talento e a sensibilidade dos dois romancistas. Porque, de fato, mesmo com séculos
de distância, os dois têm relações em comum: recorrem à sátira como principal instrumento de sua
literatura, e há também neles o desejo de renovar a prosa de seu tempo,
dotando-a de uma nova e pulsante vitalidade. E não só isso: os dois se caracterizam
por um componente obsessivo e amargo de sua personalidade que ocasionalmente o
conduzem ao lugar da depressão.
O título
deste iluminador ensaio com traço biográfico joga com o conhecido Zuckerman acorrentado de Philip Roth,
como se sugerisse a liberação das
chaves indispensáveis de acesso ao universo de um escritor contido (no caso
aqui como pessoa, não como romancista). Não há nenhum laço de parentesco entre
eles – escritor e jornalista –, ainda que o sobrenome seja idêntico. Claudia Roth trabalhou para o The New Yorker até 2004, quando saiu
para se dedicar à sua própria escrita. O livro que agora falamos segue sua
metodologia característica: justapor vida e obra a fim de que ambas se
enriqueçam mutuamente e permitam reconstruir as verdadeiras dimensões de uma
trajetória literária. Agiu dessa maneira com Hannah Arendt, Gertrude Stein,
Anaïs Nin e Margaret Mitchell. Isto é, quase sempre foram elas – “mentes
apaixonantes” – as de seu interesse.
Sua última contribuição
é também em torno de uma mente apaixonante; Philip Roth é o escritor vivo mais
importante da narrativa estadunidense contemporânea. Mas um romancista que teve
seus problemas com a crítica feminista acusando-lhe quase sempre de misógino e
inclusive de mal tratamento emocional nas raízes da publicação das memórias de
sua segunda companheira, Claire Bloom, em Leaving
a Doll’s House. Um livro que lhe
valeu a inimizade de John Updike, quem deu crédito absoluto às acusações, e uma
infinita quantidade de comentários e piadas que o deixaram particularmente
indefeso.
Para amortecer o golpe, Roth abandonou Nova York e se refugiou em sua
casa em Connecticut, mas aquela experiência trabalharia em seu interior e dela
sairiam Casei com um comunista e A marca humana, uma obra excepcional em
que o romancista desconstrói a forma como a desonra moral e a fofoca o hão
convertido num entretenimento público, causando um dano irreparável. Em todo
caso, havia ficado marcado por seu primeiro
casamento com Maggie Martinson, uma mulher instável e de quem se vingaria em Minha vida de homem.
Roth libertado se lê com fluidez e está
escrito com inteligência e perspicácia; oferece ao leitor uma interpretação
coerente de sua carreira literária. Mas não espere uma biografia convencional
da personagem, pois o livro conta com sua estreita colaboração: parte de uma
amizade imprecisa entre os dois – “na saúde e na doença” – e por isso oferece
algumas limitações. A mais grave é que não se analisa a psicologia de Roth nem
se menciona sua evidente neurose e passeia panoramicamente sobre o contexto
judeu de Newark, de onde saem os primeiros e importantes livros, como O complexo de Portnoy.
A escritora, consciente
de seu antifreudismo, evita aprofundar-se na vida familiar de Roth e traça uma
diagonal até o primeiro livro, Adeus, Columbus.
Aí é onde Claudia Roth começa a pisar firme, proporcionando uma visão filosófica
de sua obra que inclui a tensa relação do autor com a crítica. É óbvio que o livro
deve lutar com tudo o que Roth escreveu e disse de si mesmo – Os fatos de um romanista, Patrimônio, O ofício: um escritor, seus
colegas e suas obras e especialmente através do seu “heterônimo”, Nathan Zuckerman – mas sai muito bem do
empenho. A biografia, entretanto, virá algum dia.
Ligações a esta post:
>>> No Tumblr do Letras um conjunto de fotografias raras de Philip Roth
* Este texto é uma versão livre "El pequeño Swfit" publicado no El País
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