Outros cantos, de Maria Valéria Rezende
Por Pedro Fernandes
Certa vez
contei em duas linhas sobre meu encontro com o nome e a figura Maria Valéria
Rezende em 2010 num evento realizado na Universidade Federal de Campina Grande (ver o final desta post).
Esse contato não terá produzido qualquer reação de maior esboço porque, notem,
minha relação com esse território da literatura brasileira contemporânea era
muito incipiente – condição que tem pelo menos dois motivos. Primeiro,
raramente se lê ou se sabe sobre o que se passa na literatura dos nossos dias
através dos cursos de Letras, ainda em grande parte centrados na leitura e
discussão dos nomes considerados essenciais da história literária. Segundo, justamente
por isso, essa tarefa de saber sobre os contemporâneos passa a ser determinada
como uma responsabilidade individual do estudante e esta, convenhamos, é peça
rara mesmo entre os mais abastados de curiosidade; ela poderá ser despertada
se, entre os professores de literatura, houver o hábito de ler os
contemporâneos e, ainda que as obras não sejam lidas ou discutidas, sejam
indicadas.
Se não me
aproximei desde então da obra de Maria Valéria Rezende foram por esses motivos
e porque faltaram-me esses professores; mas o registro publicado sobre esse
encontro ficou como uma raiz na terra capaz de brotar no primeiro cheiro de
água. Mais tarde, numa das constantes visitas às livrarias – e quando eu
deixava o meu faro descobrir outros nomes além dos clássicos se guiar com maior
liberdade – encontrei com um romance que futuramente poderia ter sido a
primeira leitura, uma entrada na obra dessa escritora. Está na estante: O voo da guará vermelha. Muito depois veio Quarenta dias, que, pela atenção do passado e a leitura cuidadosa
de Alfredo Monte, também o livro foi repousar ao lado do primeiro que adquiri.
Nesse tempo,
vieram outros livros e o Prêmio Jabuti em 2015. E não foram esses motivos o que
me fizeram reencontrar, agora da maneira mais necessária possível quando o
assunto é a relação leitor-escritor, com a literatura de Maria Valéria Rezende.
Foi – e por isso recobrar todo esse itinerário de seis anos – uma série de
acontecimentos cujos afluentes eram um só: ir além de manter o livro na estante
ou o desejo de leitura. Ler. A coincidência maior, ou a obra favorável a esse
encontro veio com o seu mais recente romance, Outros cantos, escrito em 2014 e publicado no início de 2016.
A linguagem
simples e a convivência com o material narrado, todo ele como se o produto da
minha infância no sertão, vivendo e acompanhando de perto o esforço pela
sobrevivência, levou-me a alguns lugares transitados pela memória quando li A cabeça do santo, de Socorro Acioli.
Nasce com o romance de Maria Valéria Rezende uma relação de afeto com essa obra
tal como se deu na leitura de Vidas secas,
de Graciliano Ramos, O quinze, de
Rachel de Queiroz, ou Fogo morto, de
José Lins do Rego – para citar alguns dos grandes romances da nossa literatura
aos quais posso, pela liberdade concedida ao leitor, filiar o texto de Maria
Valéria Rezende, seja pelos temas e situações aí evocados, seja pela retomada
de uma linhagem literária, ouso dizer, das mais profícuas no Brasil.
Espécie de road novel, Outros cantos combina o rico trabalho da descrição e do relato, o
apagamento da ação pela manifestação da atividade psicológica, e constrói uma
narrativa só possível de ser determinada através do uso de uma metáfora
oferecida pelo próprio romance: a de fabrico, tessitura e tintura dos tecidos
usados na feitura de redes. Isso porque há duas linhas principais, os punhos: a
da viagem de retorno da personagem narradora Maria ao interior do Nordeste para
uma conferência patrocinada pelo sindicato dos trabalhadores rurais sobre a
influência da televisão na vida das pessoas desde sua chegada à
contemporaneidade e a da memória de quando fez esse mesmo percurso há quarenta
anos para servir como professora do Mobral, um programa do governo lançado como
um facilitador na árdua tarefa de desfazer os altos índices de analfabetismo no
Brasil.
Como toda
atividade mantida pelo fluxo da memória, as duas trajetórias de Maria são
tomadas por uma série de outras vivências suas ao redor do mundo, o que dá ao
tecido construído outras colorações. Outros
cantos constrói-se pela tessitura contínua de temporalidades, além de recuperar
a necessária experiência do vivido como matéria para a narrativa num trabalho
que sustém a invenção não como atividade final mas ordenação do narrado. Maria
Valéria Rezende lida, assim, com ferramentas raras na literatura contemporânea,
seja o tema, seja as peças utilizadas na construção do narrado.
Sua
narradora, espécie de alter-ego da escritora, mantém ouvidos e olhos muito
atentos ao que se passa e é sempre tomada de uma forte opinião crítica acerca das
situações vividas; não é uma observadora passiva, mas alguém que se questiona
acerca da maneira como a humanidade é adestrada para acomodar-se às situações
nem sempre o melhor da vida: é assim que denuncia as atividades da política na
manutenção de um status quo social
favorável sempre às mesmas linhagens, a violência contra mulher, a ordem do
manda quem pode e obedece quem tem juízo.
Soma-se a
essa visão desassossegada da realidade, sua opinião crítica de como uma parte
escusa do povo brasileiro alcançou outra perspectiva de vida pela série de
transformações possibilitadas por uma pequena mudança no curso da ordem
política do país e muito daquilo que é sua fala para a conferência irrompe toda
vez que se vê confrontada, no atual contexto, pela presença massiva da
parafernália digital comum em todos os lugares do Brasil. Quer dizer ampliou-se
acessos, mas é preciso não se deixar levar pela amnésia sobre o passado e
atentar que existir é uma contínua busca e inquietação, nunca uma acomodação
gratuita ante o vivido.
Por essa
perspectiva, é muito visível a releitura que Maria Valéria Rezende faz sobre a
relação, marcadamente lida como um dos aspectos da modernidade enquanto
estética literária, entre o tradicional e o moderno. Sua narradora não se
decide pelo tempo do passado porque reconhece noutra margem o ganho de qualidade
de vida recebido por essa gente que sobe no ônibus vez ou outra ou pelo contato
com as casas na beira da estrada. Mas se coloca sempre em suspeita ao pensar
que o uso desenfreado da tecnologia da comunicação é o grande mal desse novo
tempo e um dos responsáveis pela carência do espírito crítico, reflexivo, bem como
um elemento favorável ao achatamento da cultura pelo apagamento de toda a
diversidade que experimentou de quando esteve pela primeira vez no interior do
Nordeste.
Dessas
observações sobre Outros cantos, além
da leitura que problematiza a lugar da modernidade pela marca da tradição, é
possível visualizar a leitura política que a escritora imprime pelo olhar da
narradora sobre a transformação do sertão marcado pela exploração, o trabalho
árduo da gente simples para os senhores, e pela pobreza num lugar tomado por outra
via da qual toda civilização parece não se deixar contaminar: a do consumo.
Quando se
refere ao sertão do passado, Maria é embalada pela capacidade do sertanejo de
convívio com o exíguo, e ao reavivar as linhas da política do favor e da
submissão, não deixa de compreender esse lugar multifacetado pela riqueza
cultural e a integração comunitária nos ritos de celebração da vida. Nesse
último aspecto a ideia de cantos – que nesse caso tanto pode se referir a
outros lugares, sobretudo estes sempre escondidos aos olhos das outras gentes –
para, no sentido estrito da palavra, dizer outras vozes sobre um lugar
geralmente definido pela visão única da miséria e do vale dos desvalidos. Isto
é, a narradora interessa-se ainda em desconstruir a imagem monolítica de um
passado pintado principalmente pela mídia sulista sobre o interior do Nordeste
e destacar a força, a beleza e a riqueza da cultura popular como possibilidade
de reafirmação de um povo ante o horror e a opressão.
Além desse
interesse crítico – já suficiente para fazer desse romance uma leitura
obrigatória recomendada principalmente aos néscios sobre determinadas
perspectivas que hoje se levantam escancaradamente pelas redes sociais e pela
imprensa marcadamente elitista e interessada em preservar seus interesses
individuais, aos néscios da renovação do olhar sobre uma parte do Brasil ainda
hoje erroneamente interpretada – é preciso sublinhar outro elemento aí em relevo:
a linguagem. Ao combinar, algumas vezes o traço do popular, com o da forma mais
elaborada, Maria Valéria Resende convence o leitor sobre a diversidade dos
núcleos que dão forma ao romance.
No âmbito do
segundo traço é encantadora a maneira como dá à palavra uma condição luminosa
ou como transmite através da linguagem verbal a tessitura sugestivamente colorida,
quase fotográfica, das imagens recuperadas pela memória. Do primeiro traço,
atenção para a presença constante das histórias vividas pelo povo e as do seu
imaginário narradas com a mesma força com que era possível ouvir dos mais
antigos confirmando que veio desse registro a diversidade de vozes assumida
pela literatura latino-americana, como a conceituada de fantástica ou de realismo
mágico; ou não isso é a história aí lembrada do bebê nascido homem pela metade
e regado com água de chuva até brotar a outra metade como fêmea?
Outros cantos é um painel significativo
de um Brasil representado escassamente pela literatura e por isso mesmo
reveste-se da mesma condição do que foi a literatura da chamada Geração de 1930:
dar a ver sobre esse retrato pouco falado ou expresso apenas de maneira caricatural
por setores que não vivenciam / vivenciaram o lugar e as situações sociais e
culturais a fim de melhor compreender sobre as transformações ainda que mínimas
passadas por um país que costumou-se ser, numa parte, a cópia fiel da
civilização, e noutra, a da barbárie, muito embora, essa divisão seja mais uma
situação imposta que a realidade em si, toda ela, múltipla e multifacetada. É essa
condição caleidoscópica de um país em plena efervescência, mantido pela resistência
de um povo que nunca ousou se redimir ante a realidade mas fazê-la de outra maneira
o que testemunha esse romance. Uma leitura fundamental para reencontrar a face
oculta de um país e compreender que as lutas e as utopias não podem morrer, que
elas precisam se ressignificar a fim de afirmar outros impulsos rumo a uma condição
melhor de existir.
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