Ó, Shakespeare, por quem és? Sobre o único manuscrito do bardo inglês agora online
Data de 22
de outubro de 1685, a revogação do édito de Nantes por Luís XIV. O ato
desencadearia, depois de quase três decênios de supressões de cargos públicos,
destruições de templos e conversões forçadas, uma ampliação do círculo de
horrores em nome da extinção do protestantismo na França. Viveria
razoavelmente em paz quem abjurasse da religião protestante ou dissimulasse seus cultos.
Mas, milhares não
tomaram essa iniciativa e em nome dos seus dogmas seguiram o arriscado e
incerto caminho do exílio; iam sobretudo para Holanda, Suíça, Alemanha e Inglaterra. Esse extenso grupo não tinha como suficiente o abandono e nem a dissimulação
da sua crença em um ambiente de intolerância e tinha o interesse de encontrar um lugar onde pudessem dispor de plena liberdade religiosa.
Thomas
Morus, pode-se dizer, foi um dos que lutaram à sua maneira para o estabelecimento
da convivência entre católicos e protestantes sobretudo no que diz respeito ao
lugar do refugiado. As bases para a construção do seu livro mais conhecido, Utopia,
recorrem mesmo às bases dessa defesa. É esse o ponto de partida
para uma das peças de William Shakespeare.
“E se os vão
desterrar, onde iríeis? / Que país, por natureza de vossa condição errante, os
daria abrigo? / Irias à França ou a Flandres? / Ou a uma província alemã, ou à
Espanha ou Portugal? / Não, a nenhum país que não esteja aliado à Inglaterra /
Por que tereis que se estrangeiros?”
Os versos
que parecem saídos de uma peça escrita para esses tempos de crise de imigração
na Europa aparecem escritos pela mão de William Shakespeare. São os únicos
registros manuscritos. O texto imagina Thomas Morus – o autor de Utopia e
conselheiro de Enrique VIII – na redação de uma apaixonada petição sobre um
tratamento humanitário para os refugiados. São os franceses
protestantes que, durante as guerras religiosas em seu país, isto é, ainda muito antes do ato do rei Luís XIV, buscavam asilo em Londres.
A peça foi
escrita, portanto, numa época de grandes tensões; a Inglaterra passava pelo dilema de como
responder pelo apelo internacional de salvação dos perseguidos religiosos. É
uma peça retórica; um pedido emocionante e humanitário de empatia. Thomas Morus
tenta convencer a todos a necessidade de recebê-los; que imaginem o que seria
deles próprios os “estrangeiros” se partissem forçados para outras regiões da
Europa, como seriam tratados. Provavelmente com meros desconhecidos, escórias.
Pede que os ingleses estejam contra o que chama de “gigantesca inumanidade”.
A Londres do
período a que se refere esta peça estava tomada de protestos de rua que pediam
a expulsão dos “refugiados religiosos” do país – um caos social que, nem as
autoridades e nem a população tinham as saídas de sua solução. E foi com base
nessa condição histórica que a peça foi redigida para o O livro de Sir
Thomas Morus; sua origem é creditada a Anthony Munday e Henry Chette, mas seu
texto foi corrigido e reescrito décadas mais tarde por vários autores, entre
eles, o bardo inglês.
Manuscrito de William Shakespeare sobre peça acerca dos huguenotes franceses (detalhe). Biblioteca Britânica |
“Sufocareis
os estrangeiros / os matareis, cortareis suas gargantas, apropriareis de suas
casas”. A oratória do católico Thomas Morus, denunciado primeiro a intolerância
e depois pedindo um tratamento humanitário para os franceses adquire, no atual
contexto, mais de quatrocentos anos depois, uma dupla dimensão histórica;
afinal é a França, por exemplo, um dos cenários principais da atual crise
vivida na Europa do século XXI.
No fim de
tudo, sabe-se que William Shakespeare, acusado de ser propagandista da casa Tudor,
exalta a figura do Lorde Canciller que foi condenado por alta traição e
decapitado por não reconhecer a Ata de Supremacia, que declarava Enrique VIII como
cabeça da Igreja Anglicana. Essa e outra série de evidências concluem que o texto
foi escrito pelo dramaturgo, o que faz da peça um documento de alto valor: além
dele só restam seis assinaturas que confirmam a caligrafia de Shakespeare.
A ocasião em
que a obra foi reescrita e as diferenças que o texto guarda com as primeiras versões
reafirma ainda algumas entradas para se pensar acerca da prática de criação do bardo
inglês; ele não teria passado a limpo o texto original mas reescrito enquanto preparava
sua adaptação para o palco. Era 1600. Dado o teor da obra, seu incendiário conteúdo social, e porque se temia o levante de novos protestos, a peça foi censurada e ela não foi encenada em seu tempo.
O documento integra a grande exposição pelos 400 anos da morte de Shakespeare (Shakespeare em dez atos) e fará parte de uma galeria de digitalizações preparadas pela Biblioteca Nacional britânica sobre um novo espaço online dedicado ao bardo.
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