O horror sem adjetivos de um testemunho inédito de Primo Levi
Por
Guillermo Altares
Como
acontece com outros grandes escritores que relatam sua experiência como
sobreviventes do Holocausto, como Elie Wiesel ou Imre Kertèsz, o valor da obra
do italiano Primo Levi vai muito além do literário (embora neste terreno seja
imenso). A era dos testemunhos da Shoah está a ponto de acabar; os últimos
sobreviventes e também os últimos verdugos vão se apagando pouco a pouco e a
memória desaparece com eles. Por isso, obras com a trilogia de Auschwitz* são mais
importantes que nunca: só através da leitura dos relatos dos que estiveram aí é
possível entender, ainda que remotamente, o horror incompressível do nazismo e
do Holocausto.
Primo Levi
(1919-1987) escreveu também uma série de informes para diferentes instituições ou
para prestar testemunho em processos penais contra crimes de guerra nos quais
descreve sua passagem pelos campos de concentração; esses textos foram resgatados
no volume Assim foi Auschwitz (Companhia das Letras, Federico Carotti). Objetivos,
sem adjetivações, carregados de horror, esses textos são uma leitura que
resulta difícil de esquecer.
Químico de
formação, o escritor nascido em Turim chegou a integrar a resistência italiana.
Num obscuro episódio resgatado recentemente por Sergio Luzzato em seu livro Partisans,
o grupo de Levi executou dois homens tidos como saqueadores; tudo indica que o
escritor italiano não tenha participado diretamente. Em setembro de 1943 foi
detido pela polícia fascista e, mesmo se declarando judeu, ao invés de ser
executado imediatamente com aconteceu a outros do grupo de partisans foi
deportado para o campo de concentração de Auschwitz. Sobreviveu graças ao seu
trabalho como químico e a grandes doses de força de vontade e alguma sorte no
campo satélite de Monowitz (uma extensão de Auschwitz). Para aí iam todos aqueles
que, como relata o próprio Levi, estavam condenados a ser exterminados ao longo
de vários meses com o trabalho escravo, não imediatamente nas câmaras de gás.
No seu retorno
dos campos de concentração escreveu É isto um homem?, um dos livros mais
importantes do século XX que, mesmo assim, tardou muito tempo em encontrar
editor – talvez porque fosse muito cedo para que a sociedade enfrentasse a magnitude
dos horrores acontecidos do dia para a noite vida com a subida da névoa do terror
nazista. A trilogia de Auschwitz se completa com A trégua e os afogados
e os sobreviventes, mas Levi também escreveu livros muito diferentes como A
tabela periódica e Se não agora, quando? sobre um grupo de partisans.
Em 11 de abril de 1987 suicidou-se jogando-se pela escada do prédio onde vivia em
Turim.
A obra de
Levi alcançou um gigantesco impacto e é possível dizer que forma parte da
memória negra da humanidade. Nunca deixou de ser traduzido, reeditado e, principalmente,
lido. Suas obras completas foram publicadas em inglês muito recentemente com um
ensaio introdutório da escritora Prêmio Nobel de Literatura Toni Morrison. Numa
das resenhas publicadas pelo The New York Review of Books, o tradutor,
romancista e especialista em literatura italiana Tim Parks escreve que “Levi
sempre quis fazer com que o leitor enfrente o Holocausto com toda crueldade,
sem proporcionar-lhe nunca um refúgio numa zona de conforto”. Este princípio se
aplica especialmente nos documentos reunidos em Assim foi Auschwitz,
vários deles escritos em parceria com seu amigo, o médico Leonardo De Benedetti,
com quem conviveu no cativeiro.
“Relatório
sobre a organização higiênico-sanitária do campo de concentração para judeus de
Monowitz (Auschwitz – Alta Silésia) é o texto principal do volume; foi escrito a
pedido do Exército Vermelho e é um dos primeiros relatos que descrevem o
sistema de funcionamento de Auschwitz, dos Sonderkommando, os internos
obrigados a se ocuparem das câmaras de gás e dos crematórios, personagens centrais
no impactante filme O filho de Saul, até a anulação da vontade dos
deportados que se convertiam em zumbis à espera apenas da morte, da fome e dos
castigos. Também é arrepiante quando descreve a procedência dos presos com os
quais partilhou aquele campo satélite de Auschwitz: judeus de todas as partes
da Europa, de todas as profissões e classes sociais arrastados pelos nazistas
até os confins da Polônia para serem assassinados.
Resultam ainda
muito interessantes seus testemunhos sobre diferentes processos, entre eles o
de Adolf Eichmann, sobre o qual Hannah Arendt escreveu sua famosa teoria sobre
a banalidade do mal. Nesses textos, alguns muito precoces, tanto De Benedetti
como Levi já consideravam que a responsabilidade do horror “recai de forma
coletiva sobre todos os soldados, suboficiais e oficiais das SS para aí destinados”.
Nos últimos anos têm sido processados na Alemanha vários membros da guarda de
Auschwitz baseando-se nesse mesmo princípio: o fato de haver trabalhado num
campo de extermínio, não importa a posição nem a missão, é já um crime em si.
Levi também denuncia
um assunto crucial: o papel da indústria alemã no trabalho escravo. “Os campos,
portanto, não eram um fenômeno marginal: a indústria alemã se fundava sobre
eles; eram uma instituição fundamental da Europa fascistizada, e do lado
nazista não se fazia mistério que o sistema seria mantido, aliás, ampliado e
aperfeiçoado, caso o Eixo vencesse. Teria sido a realização plena do fascismo:
a consagração do privilégio, da não igualdade e da não liberdade.” Estes são
textos que carecem da intensidade literária de É isto um homem?, mas
que colocam o leitor ante o horror, sem concessões nem filtros, apenas com a
memória de um testemunho.
Notas:
* Designa-se
assim o conjunto de textos formado por É isto um homem?, A trégua,
Os afogados e os sobreviventes. A estes é possível acrescentar ainda, o que constituiria uma tetralogia. Bom, em língua espanhola,
os três primeiros livros foram publicados numa só edição em 2016 com tradução
de Pilar Gómez Bedate.
Este texto
é uma tradução livre de “El horror sin adjetivos de un testemonio inédito de
Primo Levi” publicdo aqui, no jornal El País. As traduções de passagens
de Assim foi Auschwitz são as de Federico Carotti (Companhia das Letras,
2015).
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