O amor discreto e forte entre Gabriela Mistral e Doris Dana



A Gabriela Mistral que se apresenta no Chile é a mãe e professora, a poeta que prega: “Dá-me tua mão, e dançaremos; / dá-me tua mão, e me amarás”. Nas ruas – e até na nota de 5 mil pesos chilenos – ela é a mulher com os lábios cerrados, a testa franzida, vestindo um traje de duas peças simples e o cabelo recolhido num coque.

E, no âmbito literário, os leitores de Mistral tradicionais chegaram a chamá-la “a divina” ou “a santa”, alimentando esta imagem unidimensional e distante da escritora, diplomática e intelectual mais importante da história do Chile.

É certo que a autora nascida em 1889 na comunidade de Vicuña, ao noroeste do país, defendeu os direitos das crianças e a importância da educação, escreveu poesia sobre a infância, o amor materno e a natureza. Mas também criou textos de uma calorosa paixão, inclusive de alto teor erótico com mulheres. Na intimidade, em suas cartas, vídeos e áudios pessoais, Gabriela Mistral demonstra haver sido uma pessoa mais complexa do que indica o simples retrato oficial.

A primeira pessoa da América Latina a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura – e a única mulher da região que conseguiu esta distinção até o dia de hoje – viveu numa época muito conservadora. Mistral “reunia todas as condições para ser discriminada”, concorda María Elena Wood, quem estudou principalmente os últimos anos de vida da poeta, da recepção do grande galardão, em 1845 até a morte, em 1957.

Em primeiro lugar era mulher, um fator de discriminação socioeconômica até os dias de hoje. Para Wood, além disso, Mistral vinha de uma família pobre do interior do país, não tinha pai, era mais alta que o normal e de feições indígenas; tinha uma personalidade conflituosa e forte. E se isso tudo ainda for pouco, era lésbica.

Foi em 2010 que Wood apresentou Locas mujeres (Loucas mulheres, em tradução livre) sobre a relação amorosa entre Mistral e a estadunidense Doris Dana; um trabalho construído a partir dos 40 mil documentos pessoais da escritora chilena. A visita a esse acervo revelou o que até então era um segredo guardado a sete chaves e que nunca ganhou voz, ao menos publicamente: Dana não era sua assistente ou secretária, como se repetiu até ao cansaço as biografias da autora de Os sonetos da morte e Desolação. Dana era sua companheira.

A revelação mesmo noutro tempo causou um verdadeiro celeuma entre os estudiosos da obra de Mistral; “Prefeririam que fossem louca, não lésbica”, disse a diretora na época. E a teoria de que Mistral fora louca sempre teve muitos adeptos; surgiu da profunda tristeza e solidão que abateu a escritora depois do suicídio de seu sobrinho, Juan Miguel Godoy, quem ela criou como filho e chamava carinhosamente de Yin Yin.   


Doris Dana e Gabriela Mistral em Nova York, 1954.


Por suas tarefas com escritora, intelectual e cônsul, Mistral passava mais tempo fora de seu país. Em 1946, depois que ganhou o Prêmio Nobel, foi convidada para uma conferência na Universidade de Columbia, em Nova York. Dana estava entre o público.

“Minha querida professora”, diz a primeira carta (ver o final desta post) que ela escreveu a Mistral, dois anos depois do primeiro encontro naquela conferência. “Na profunda ternura contemplativa e força de suas obras, o mundo encontrou em você uma mestra de sentido e uma chama viva da arte mais pura”. Com o escritor Thomas Mann como principal ponto em comum, ambas mulheres começaram uma relação, primeiro profissional, mas logo sentimental, conforme demonstra o apaixonado intercâmbio de cartas entre as duas publicado em 2012 com o título de Niña errante (Menina errante, tradução livre).

Quando Dana escreveu pela primeira para Mistral tinha 28 anos e estava dando os primeiros passos como escritora. A chilena já era uma senhora de 60 anos, consagrada, que começava a ter problemas de saúde. “Tu não me conheces bem, meu amor. Tu ignoras a profundidade de meu vínculo contigo. Dá-me tempo, dá-me, para fazer-te um pouco feliz”, diz numa das cartas de Mistral a Dana.

“Eu me ponho no vento e na chuva terna, para que eles, vento e chuva, possam abraçar-te e beijar-te por mim”, responde a estadunidense, que logo se converteria na administradora dos bens materiais e intelectuais de Mistral. E foram nove anos de trocas de cartas que incluem fragmentos de amor e paixão como estes, mas também de dor, conselhos e pormenores sobre a vida cotidiana.

Mistral nunca teve interesse que se conhecessem sobre sua vida íntima. Era discreta, como pedia a etiqueta da época. Teve várias secretárias, mulheres educadas que a ajudavam com o serviço doméstico e a administração financeira, e também com o caos de seus poemas e textos escritos por qualquer parte em toda sorte de papéis.

É fato que foi a própria Mistral quem iniciou o rumor de que Dana era sua assistente. A estadunidense, em troca, negou diretamente qualquer vínculo romântico entre elas até a data de sua morte, em 2006. Mas, como escreveu no prefácio da edição de Niña errante, sua sobrinha Doris Atkinson, a estadunidense “não fez esforço algum por restringir o uso das cartas nem deixou nenhuma instrução a respeito”. Só havia indicado que todo o legado da poeta deveria ser entregue a instituições adequadas. Atkinson decidiu que as referidas instituições estavam no Chile de Mistral e por isso, em 2007, entregou ao estado 40 mil documentos entre manuscritos, cartas, fotografias e objetos pessoais, além de outros pertences.




No fim de 2015, o jornal de seu país “Chile em Chamas”, apresentou uma matéria cuja chamada dizia “Censura por razões de gênero”; a peça dedicava dez minutos sobre Mistral. Nela, o escritor Juan Pablo Sutherland conta que em 2002 tentou incluir três poemas da poeta na compilação A corazón abierto. Geografia literaria de la homosexualidad en Chile, livro publicado pela Sudamericana. Mas, a Fundação Prêmio Nobel Gabriela Mistral não o permitiu. “É uma censura ordenada por gente que quer dizer como ler os textos e isso o encontro com muita ferocidade”, diz Sutherland.

Uma década e meia depois, Jaime Quezada, escritor e diretor da Fundação, disse que não se atreveria a dizer enfaticamente que Mistral era lésbica. Na sua opinião a afirmativa é descabida, atrevida e denota certa irresponsabilidade. Em 2015, ele próprio criticou publicamente a presidenta do Chile, Michelle Bachelet, quando esta citou uma carta de Mistral a Dana no contexto de promulgação da lei do casamento gay no Chile.

“Nossa Gabriela Mistral escreveu à sua querida Doris Dana: ‘Há que cuidar isto Doris, é uma coisa delicada o amor’. E recordo-lhe hoje porque através desta lei o que fazemos é reconhecer a partir do Estado o cuidado dos casais e das famílias e dar suporte material e jurídico a esse vínculo nascido no amor”, disse na época a presidenta.

Já a Fundação Gabriela Mistral, cuja sede está em Nova York tem uma postura menos taxativa sobre esse dado biográfico, mas prefere deixá-lo pela tangente: “Como fundação nos dedicamos unicamente a seu legado”, diz Gloria Garafulich-Grabois, integrante da direção. “A importância que tem é por sua obra literária; respeitamos mas não tocamos nesse tema”.

Em 2012, Pedro Pablo Zegers, editor do livro Niña errante, disse ao apresentar a obra que sua intenção era retirar Mistral do pedestal a que foi alçada durante cinquenta anos, para aproximá-la da gente comum e incitar uma leitura menos reducionista de sua obra. Nesse sentido, Quezada reconhece que a obra de Mistral segue nas escolas e a ternura de sua poesia prevalece frente a amplitude plural de seu trabalho intelectual.

Wood, quem durante as filmagens de Locas mujeres, se perguntou se devia ou não dar a conhecer a vida íntima de Mistral, diz que o documentário não admite ficar na dúvida porque inclui uma gravação das duas, Mistral e Dana, dizendo que estão juntas e se amam. A falta de conhecimento da verdadeira artista foi a que levou seguir com o projeto audiovisual. “É impossível entender a paixão de sua poesia sem conhecer as forças internas que a moviam”. 

Ligações a esta post:

* Da BBC Mundo.


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