Literatura sem final

Por Guillermo Altares


Marguerite Yourcenar, quem revisou integralmente, sempre que pode, sua obra.


No célebre começo de seu romance Fim de caso, Graham Greene escreveu: “Uma história não tem nem princípio nem fim: alguém escolhe arbitrariamente o momento da experiência desde olhar para frente ou para trás”. Talvez os romancistas possam eleger o momento narrativo por onde começam seu relato, inclusive aquele com o qual o terminam. Mas, outra coisa muito diferente é quando terminam de escrever uma obra, porque muitos autores sentem que não o fazem nunca. “Borges dizia que o conceito de obra definitiva é apenas fruto da teologia do cansaço”, cita Alberto Manguel, autor de Uma história da leitura e leitor do autor para o escritor argentino quando este perdeu a visão. A relação dos escritores com suas obras é tão intensa como a relação com suas próprias vidas: alguns preferem não olhar para trás, outros não param de fazer isso; alguns são perfeccionistas até o infinito, outros preferem que as obras fiquem como estão. A maioria dos autores, confessando ou não, não pode evitar de olhar pela fechadura sua vida e, portanto, sua escrita. Desde Marguerite Yourcenar até Juan Ramón Jiménez, Milan Kundera, ou mesmo Ludwig Wittgenstein, quem negou a tese defendida na obra que o converteu em autor mundialmente reconhecido, o Tratado lógico-filosófico, ou Franz Kafka, quem pediu a destruição de todos os seus livros, a literatura universal está cheia de obras-primas que os leitores consideram perfeitas, mas que os autores nunca deram por acabadas.

“A reescrita sempre foi para mim uma norma de trabalho, um texto artístico pode ser corrigido interminavelmente”, explica o poeta e escritor José Manuel Caballero Bonald, Prêmio Cervantes em 2012, cuja obra poética completa está reunida em Somos o tempo que nos resta (tradução livre para Somos lo tempo que nos queda). O romancista Juan Goytisolo, que recebeu o prêmio máximo das letras espanholas, também é um inesgotável revisor: “Joguei fora páginas inteiras de Juan sin Tierra e noutras obras não mexi em nada, mas há alguma errata. Toco quando encontro que o que escrevo não corresponde com o que espero do livro. O autor é quem decide a obra que conta. Quem tenha uma edição antiga de Juan sin Tierra ou de La saga de los Marx deve saber que existe uma edição posterior. A última é a que vale”.

Javier Cercas


“Em todas mudei as coisas” – diz Javier Cercas, que publicou no final de 2014 O impostor e uma reedição de O ventre da baleia, seu terceiro romance no qual introduziu mudanças significativas. “Fiz uma autêntica lipoaspiração porque tinha a intuição de que o romance tinha celulites e que dentro do que já havia escrito havia um bom livro; creio que a intuição era verdadeira”, afirma o escritor, que antes havia feito sua primeira obra um livro com cinco contos e tornou-a um romance curto com apenas um deles. O escritor também releu Soldados de Salamina e corrigiu adjetivos, frases, períodos com sintaxe truncada, anacronismos. “Os poemas não findam, dizia Valéry, apenas se abandonam; com os livros acontece o mesmo”. Como Caballero Bonald e Goytisolo tem claro que “a última versão sempre é a boa”.

Os exemplos são infinitos. No caso da escritora Marta Sanz, reescreveu seu romance A lição de anatomia, publicado em 2008 e reeditada em 2014. “Não senti que traísse os leitores da primeira versão, ao contrário, estou muito agradecida porque me deram a oportunidade de reescrever meu livro”, explica. “Se o autor tem sentido de autocrítica, tende a melhorar as coisas. Desengordurei  o estilo. Na realidade é um livro novo porque inclui novos capítulos e dividi de outra forma toda a narrativa. O bom é o último porque refletimos o que aprendemos”. Rafael Chirbes, ganhador do Prêmio da Crítica com Crematorio e En la orilla, acredita que não se pode estabelecer regras definitivas. Depois de um período inesgotável de reescrita – “as vezes inclusive pedi ao editor que me devolvesse para seguir fazendo alterações” – se rende e finalmente entrega o livro. “Um romance sempre tem momentos de euforia para o autor: quando você o termina e o dia em que chega o primeiro exemplar. Mas logo você começa a ver as gralhas, os problemas, por isso escreve outro. A relação de plenitude com um livro dura muito pouco”, afirma. Tem obras que apenas tocou, como Mimoun, sobre outras pediu que não seja reeditada – a luta final porque lhe pareceu mal escrita – e outra, como La buena letra, deletou o último capítulo.

Isaac Rosa, ganhador do Prêmio Rómulo Gallegos por El vano ayer e o da Fundação José Manuel Lara por El país del miedo, chegou inclusive a dialogar e ironizar com o escritor que foi quando propuseram reeditar seu primeiro romance, La malamemoria, oito anos depois de sua publicação. “Descartei de imediato reeditá-lo tal e qual, me parecia um passo atrás. Mas vi outra possibilidade: enfrentar-me com o escritor que fui, e fazer isso diante do leitor. Reler-me do lugar do escritor que havia chegado a ser com toda a dureza que aquela estreia merecia”, sublinha. Rosa explica que seu livro era um relato sobre a Guerra Civil e o franquismo, “romances que provocam cansaço não em poucos leitores, que exclamam ante o enésimo título: ‘Outro maldito romance sobre a Guerra Civil!’, que foi o nome com o qual batizou a obra. “Recordo que houve leitores daquela primeira La malamemoria que se ofenderam quando o converti em outro maldito romance... Impugnar um romance é também uma impugnação aos leitores que a apreciaram”.

Também estão os escritores que, uma vez terminado o livro, quando este começou a sua própria vida, se dão conta de que existem histórias que, como ramificações, surgem de suas páginas. O escritor colombiano Héctor Abad Faciolince, autor de La Oculta, explica como surgiu uma nova obra de seu romance mais célebre, El olvido que seremos: “Às vezes do que se escreve fica um fio solto, sem que o cortemos, sem querer. Ao final de El Olvido eu mencionava um poema que meu pai levava no bolso quando o mataram e dizia que esse poema era de Borges. Quando o livro teve êxito (o êxito é sempre muito duvidoso), meus mal-me-queres disseram que era duplamente mentiroso: que eu havia inventado a história desse poema no bolso e que além disso não era de Borges. O soneto, de fato, não aparecia em nenhum dos livros publicados por Borges. Mas não era mentira que meu pai o levava no bolso. Assim, aproveitei uma bolsa que me deram em Berlim para buscar onde diabos meu pai havia pegado esse poema. Depois de uma pesquisa detetivesca, creio que pude desenvolver a história: se em El olvido quis saber, por indícios, quem havia matado meu pai, em Traiciones de la memoria quis averiguar, com testemunhas e documentos filológicos, quem era o autor do poema”.

Do lado contrário, Abad Faciolince não é partidário de voltar ao escrito. “Acredito que um livro é uma espécie de espelho do que alguém era no momento que o escreveu. Como alguém deixa de ser o que era, já há muitas coisas dos velhos livros que soam estranhas, alheias, inclusive más, então alguém tem a tentação luciferina de mudá-las. Mas ao mudá-las o livro se torna um híbrido que não funciona, pois o escritor de hoje é diferente do que há 20 anos, e os livros corrigidos pelo mesmo autor tornam-se como se escritos a duas mãos”, explica.

Juan Rulfo, quem teria modificado uma simples palavra do início de seu Pedro Páramo e dado o grande toque que sua obra merecia.


As obras literárias, o pensamento filosófico, são corpos vivos que respiram através da relação que estabelecem com os seus leitores, mas também porque nunca acabam de separar-se totalmente de seus autores. “O livro tem uma autoridade sobre você que você não tem sobre ele”, assegura Rafael Chirbes. Os processos de escrita podem prolongar-se ao infinito. Um dos casos mais extremos é o da escritora belga Marguerite Yourcenar: Opus Nigrum, um de seus grandes romances, foi primeiro um livro de contos; publicado em 1934 com o La mort conduit l’atterlage (A morte conduz a carroça) e transformado num romance publicado em 1968. Juan Ramon Jiménez fazia tantas alterações em sua obra que no fim é impossível saber se é só uma obra ou se são várias: o livro / poema Espacio tenue, por exemplo, tem uma versão em prosa e outra em verso. Também pode haver transformações pequenas mas cruciais. Alberto Manguel explica que “W. H. Auden mudou seus versos e eliminou vários, porque dizia que se dava conta de repente que não eram mais certos. Por exemplo, o célebre verso ‘We love one another or die’ foi riscado nas revisões posteriores porque pensou que embora nos amemos ou não, a morte é inevitável”. O romancista e ensaísta mexicano Álvaro Enrigue, ganhador do Prêmio Herralde de romance com Muerte súbita, explica outra sutil mas imensa diferença entre versões: “Diz-se que no último manuscrito de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, a primeira frase era: ‘Fui a Comala’ e que o ‘Fui’ está riscado e por cima lê-se ‘Vim’. Se for certa a lenda, seria o tipo de correção que muda a história”. Ele registra ainda outras histórias de escritores obsessivos com a perfeição: “José Emilio Pacheco não permita que fossem reimpressos seus livros porque pareciam cheios de gralhas, embora sejam de uma precisão estilística admirável. Deixava os editores loucos retendo as reimpressões para ler e reler seus livros. Os exemplares de seus livros na biblioteca da Universidade de Maryland, onde deu aulas, estão corrigidos a lápis por ele mesmo. Alguns têm correções sobre as correções”. Mas ele mesmo tampouco é alheio ao veneno da reescrita como romancista: de seu romance La muerte de un instalador existem quatro edições. “A última, reescrevi do começo ao fim, palavra por palavra”, assegura Enrigue. Só afirma que nunca pode voltar a Hipotermia, porque nele relata uma depressão e é um tempo ao qual não pode e nem quer voltar. 

Philip Roth, quem deixou de escrever depois de reler integralmente sua obra e compreendê-la por concluída.
  

Carlos Giménez, ao contrário, voltou aos momentos mais dolorosos de sua vida para desenhar uma a das obras-mestras da HQ europeia, Paracuellos, em que relata sua infância num Refúgio Social do pós-guerra. A obra e quase toda sua produção tem sido reeditada. E aqui o trabalho é ainda maior: um quadrinista tem a necessidade de mudar também as imagens. “Cada vez que se reedita um trabalho meu, obrigo-me a lê-lo para comprovar que está completo, que não são estão cortados os quadrinhos e que não há falhas de impressão”, diz. A vontade de mudar, de reviver o texto, é algo que remonta quase ao princípio da criação literária. O professor da Complutense Carlos García Gual, um dos mais respeitáveis helenistas espanhóis, recorda que “Hipólito, de Eurípides, e As nuvens, de Aristófanes, que lemos hoje são versões corrigidas por eles de obras anteriores que não tiveram êxito em sua primeira representação teatral”. “Podemos ver nAs leis, de Platão, uma versão corrigida da utopia da República? Nesse longo diálogo da velhice, onde já não deixa Sócrates, Platão postula um ‘conselho noturno que em seu afã inquisitorial haveria condenado à morte seu cético professor. O velho e castigado Platão desconfiava já do livre exame e dos ideias políticos de então?”

Nestas mudanças sobre mudanças, versões, buscas infinitas de palavras e de frases, avanços e retornos, fazem mais difícil o trabalho dos filólogos, mas sem dúvidas mais apaixonante. O professor de Língua Espanhola da Universidade Autónoma de Madri Pedro Álvarez de Miranda, membro da Real Academia Espanhola assegura: “Essas modificações são muito importantes para o filólogo, as modificações que o autor introduz num texto sempre cumpre um interesse. No terreno da lexicografia, e em particular, para a elaboração de um dicionário histórico, é fundamental precisar a data de cada texto”.

Quando Philip Roth decidiu deixar de escrever e se dedicou a reler os 31 romances que havia publicado entre 1959 e 2010, “Queria saber se não havia perdido o tempo”, conforme disse em 2014 ao The New York Times. “Minha conclusão, depois de terminar, se parece a umas palavras ditas por uma de minhas personagens, o boxeador Joe Luis. Foi campeão do mundo dos pesos pesados. Havia nascido no Velho Sul, foi um menino negro sem educação, pobre em palavras. Quando se aposentou disse para resumir sua carreira: ‘Fiz o melhor que podia com o que tinha”. O combate dos grandes escritores com as palavras não acaba nunca. Só o tempo é capaz de derrotar as inesgotáveis mudanças impostas pela imaginação.

* Esta é uma versão livre para "La Literatura sin final", publicado no El País.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual