F. Scott Fitzgerald, poeta

Por Antonio Lucas



O mundo era feliz e Francis Scott Fitzgerald quis contá-lo como se ele o houvesse feito levantar do contágio dos sorrisos e das circunstâncias de excesso que entravam pela varanda de seu quarto. Era um jovem ungido pelo talento. Sedutor. Atrativo. Calçado com uns sapatos bicolores. Gravata fina. Com o cotovelo apoiado na porta dianteira de um conversível com apliques cromados. Ninguém podia alterar, de vez, esse instante perpétuo de fumar cigarros com piteira e levar pelo braço uma noiva de chapéu ornado com laço de seda.

Aquele jovem tocado pela graça dos seres ímpares estava disposto a imolar-se em qualquer festa de destaque, mas não cedia por completo à frivolidade porque manejava as palavras com a combustão precisa para destacar num enxame de ricos herdeiros entre os que se moviam com virtude aerodinâmica. Scott Fitzgerald estava na Universidade de Princeton, não tinha ainda vinte anos e no instante que se mostrava o respeitável com modos de pícaro ia domando por dentro o fogo de sua ansiedade literária. Escrevia poemas de apetite pagão enquanto buscava lugar na literatura. Como acontece com outros grandes escritores, a poesia foi seu primeiro instinto.

Nela fixou, antes da prosa, a intimidade de uma vida que se dispunha servir de combustível para sua escrita. E colocou à sua época o nome que chegou até nós, Era do Jazz. E ao redor dessa certeza levantou o conjunto diverso e colorido das peças de seu primeiro e único livro de poesia, Poemas da Era do Jazz, que não chegou a publicar, e é, portanto, a sua vocação mais desconhecida entre os seus leitores.  

Nos anos em que foi construindo seus primeiros poemas queria ser também jogador de futebol americano. Foi sua primeira paixão. Ou sua paixão paralela. Tentou, mas não foi aceito na equipe e o efeito psicológico desse fracasso transcenderia com o tempo do plano emocional e biográfico ao literário. É neste livro de poemas que está “Futebol”, texto de abertura dos Poemas e quase um apanhado sobre sua trajetória poética. Escreveu aos quinze anos e o publicaram numa revista do prestigiado internato onde estudava, o Newman School de Nova Jersey.

Há naquele rapaz perfumado algo de homem apaixonado de sua própria condição de juventude. E a poesia tem parte na culpa. Havia uma fascinação incessante por fixar na escrita como se um molde o que via, o que ia bebendo, como que o presente se manifestava. Tudo estava ligado, menos a poesia. Na carta datada de 3 de agosto de 1940, Francis Scott Fitzgerald escrever à sua filha Frances que “A poesia é como um fogo que vive em seu interior, o mesmo que a música é para o músico ou o marxismo é para o comunista, do contrário não é mais que um absurdo formado por vazio e o qual os pedantes não deixam de cantar descuidadamente em suas anotações e comentários”.  

Mas manteve a poesia sempre por perto. Também nos anos de seu esplendor literário como romancista, época que começou em 1920 com a publicação de Este lado do paraíso (título subtraído dos versos de Rupert Brooke), de onde saíram os primeiros acordes da trilha sonora da felicidade que rematou com O grande Gatsby. Nunca deixou de escrever versos e muitos foram inseridos nas narrativas ou publicados em revistas e jornais. “Não creio que ninguém possa escrever uma prosa sucinta se não houver tentado escrever antes um bom soneto e lido os curtos poemas dramáticos de Browning”, dizia.

Mas o farol do outro lado da margem de sua paixão lírica era o poeta romântico inglês John Keats, tão doce e infeliz, tão belo e tuberculoso. “’A ode a um vaso grego’” é  irresistivelmente bela em cada uma de suas sílabas do mesmo modo que são as notas da ‘Nona sinfonia’ de Beethoven. Creio que terei lido umas cem vezes. O mesmo ocorre com a ‘Ode a um rouxinol’, que nunca pude ler sem lágrimas nos olhos. Ou ‘A vigília de Santa Inês’, que tem as mais sensuais e belas metáforas da poesia inglesa, sem desmerecer Shakespeare” – isso foi o que também disse à jovem Frances, numa das últimas confissões sobre suas misérias e suas derrotas.

Mas a poesia de Fitzgerald não aposta numa dimensão transcendental, mas como um filme do cotidiano. Também a paródia, a ironia e a crítica sem piedade já se tecia. Aí está o poema “A grande cena da Academia”, que evidencia seu absoluto desencontro e distanciamento da falsa moral que envolve as estrelas e os produtores do universo de Hollywood. Toda a ambição e loucura que teve em abundância durante a vida encontra-se nesta outra parte principal de sua vocação o necessário pavilhão de repouso. Nos 51 textos do livro cabem além disso os poemas de amor para sua amante Sheila Graham – “A uma querida infiel” e “Para que não esquecemos” –, onde o escritor se fixa como o professor de Sheila e reflete uma desatada relação na qual se viu como Pigmalião.  

Alguns destes poemas não apresentam plenamente o homem excitado pelos excessos, o que substituiu uma alquimia muito louca seus glóbulos brancos por rios de álcool. Tampouco é o sujeito atravessado por mil desenganos. Tampouco ainda o do luxo, dos bailes de gala, dos baús de viagem para a expedição do êxito. Tudo estava por fazer e tudo por explodir. Ainda não queimava a vida e estava longe a tentação de fazer-se mito.  

Nos dias anteriores a esse tempo bizarro Scott Fitzgerald acumulou alguns de seus primeiros poemas. Foi antes de abandonar a universidade e envolver-se com a Primeira Guerra Mundial. “No fim de sua carreira, começou a refletir sobre aquela cedo (e já distante) vocação poética da juventude. E volta a lembrar seus primeiros passos literários impulsionados pela convicção de ser um poeta. Mas não um poeta qualquer, mas um Rupert Brooke estadunidense que aos 21 anos já devia ter seu primeiro livro de poemas publicado”, reflete o escritor. Num artigo de 1936 na revista Esquire escreve: “Restava-me um ano. Além disso, a guerra era iminente. Tinha que trazer à luz um fabuloso livro de poesia antes de embarcar na guerra”. Mas aquele sonho virou vapor de água.

Na chegada dos anos 1920 do século passado soava a música de Jazz e ainda eram celebradas as criaturas vãs. Nas cadeiras cor de creme um homem acima do triunfo consumia coquetéis com a pressa de quem sabe chamado ao vestígio da queda e ao vai e vem da paranoia. O roteiro da derrota se cumpriu com requintada precisão. Santificar-se no delírio e ser belo ao mesmo tempo é uma condição reservada a poucos. F. Scott Fitzgerald bebeu de todas as garrafas da literatura, mas só de uma viveu sem perecer. E foi a da poesia.

Ligações a esta post:
>>> Dois poemas manuscritos de F. Scott Fitzgerald

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