Contos de cães e maus lobos, de Valter Hugo Mãe
Por Pedro Belo Clara
O último livro editado por um
dos mais destacados vultos da literatura portuguesa (e até lusófona, dado o
crescente interesse de leitores brasileiros nos seus trabalhos), é uma obra que
compila onze contos propostos nos mesmos poéticos e emotivos modos com que
Valter Hugo já habituou os seus seguidores mais entusiastas – sem esquecer as
gravuras que abrilhantam as obras por graça de convites a artistas da sua
eleição ou amizade.
Serão mesmo esses os adjectivos
– poético e emotivo – que, de modo sumário, melhor caracterizarão o livro que
hoje apresentamos e propomos. Aliás, o prefaciador, Mia Couto, também deles faz
o ramo principal das linhas que esboça nas primeiras páginas da obra, referindo
que se trata de um «reencantamento de
infância», tornando-se o livro uma autêntica «máquina de fazer sentir». Mas,
sublinhe-se, isto acontece sem se perder de vista aquele que é o cerne da obra
erguida por Valter Hugo Mãe: «o questionar das nossas certezas mais fundas, uma
visita às profundezas da alma».
As palavras de Mia Couto não são
vagas de sentido, como veremos em breve. Não obstante o facto de apresentar uma
visão que sempre se diz pessoal, elaboraram-se de modo imparcial e justo para
com a percepção que dessas outras, as de Valter Hugo em seus contos, se tem. Torna-se
simples, portanto, compreender porque se fala de “poesia” ou “sensibilidade” de
palavra, ou de uma certa inclinação para um público mais jovem. Embora o autor
advirta, numa breve nota disposta no final do livro: «Não sei escrever para
crianças».
De facto, já
sabemos como Valter Hugo apresenta um desenvolto talento para se dirigir à
criança que habita em cada um de nós, o que naturalmente abre o leque de alvos,
em termos de público, dos seus trabalhos, em particular este de que agora
falamos. Mas também não podemos olvidar, em boa consciência, uma espécie de
missão que o autor chama para si a cada trabalho que edita, fruto daquilo que
é, por suas palavras, um excesso de romantismo: «quero melhorar o mundo». Há,
portanto, uma subtil forma de “educação” através da leitura, totalmente
desprovida de pretensiosismos, dadas as reservas que o próprio autor admite,
mas ainda focado em servir às crianças «uma ética e uma sensibilidade» capaz de
nelas despertar uma consciência elevada.
Valter Hugo
recusa escrever um texto sequer que “apenas divirta”. Portanto, o significado
de cada história é algo que importa descortinar e, posteriormente, reter como
um bom conselho. Tudo isto é concretizado numa liberdade de quem lança ao vento
as suas sementes na certeza de que, algures, encontrarão uma fértil terra onde
medrar.
A introdução
a esse universo dá-se, naturalmente, pelo conto de abertura: “A menina que
carregava bocadinhos”. Nele, viajaremos por uma história que remonta a tempos
idos, uma época de casas de abastados senhores e respectivos serventes. A
menina do conto é uma pobre órfã que chega à dita casa com apenas nove anos de
idade, aceitando trabalhar «em troca de sopa e de um colchão estreito». Mas o
seu carácter apaixonado de inveterada sonhadora causará, com o passar dos anos
e com o aflorar dos talentos, profunda mossa no seu estilo de vida até então
estável, apesar da serventia adjacente; piorando, claro, com o aparecimento de
um certo rapaz de entregas. Romance e fantasia são uma fórmula destrutiva para
muitos, mas igualmente um dos mais sadios modos para a vida encontrar o seu
meio de expansão.
«A moça, sem
querer, carregava aos bocadinhos o amor para dentro de cada gesto, como quem se
movia para um único objectivo. De tudo quanto alguma vez carregara, o amor era
o mais difícil de segurar.
O amor
nascia-lhe só de existir alguém. Era o mais genuíno e limpo dos sentimentos».
Mas um dos talvez mais
comoventes, pela sua beleza de sentido, seja o conto seguinte, também um dos
mais breves da obra: “O menino de água”, a que o autor faz referência no dito
capítulo final de notas, dedicando-o a «todas as pessoas que acreditam que as
crianças não se podem perder pela tragédia do mundo que os adultos criam».
Proposto num estilo vertiginosamente poético, inicia-se com o prenúncio do
entendimento geral do conto e seu desenlace:
«O menino
nadou para depois de uma onda grande e não voltou. A mãe estendeu as mãos na
água buscando o seu corpo diluído».
Observamos um misto de tragédia,
aceitação e catarse, onde o contraste de tamanhos sentimentos certamente se
eleva para assumir o destaque principal deste conto. A sua breve dimensão
auxilia ao caso, já que condensa-os ao ponto de querer colocar todo um arco-íris
num estreito frasco transparente. De qualquer o modo, trata-se daqueles textos
capazes que escavar um trilho profundo até ao coração dos seus leitores, de
forma tal que tão cedo não conseguem eles olvidar cada linha, cada sentido que
compõe a história triste desse menino que no mar encontrou a sua imortalidade.
«Uma vez, a
mãe encheu de água um enorme jarro que levou para casa sem entornar. (…)
Cuidadosamente, abraçou o jarro e longamente o acarinhou. Era então um lugar do
seu filho».
Um pouco dentro da mesma óptica
do conto anterior, embora se retire o elemento trágico à história, encontramos
“A princesa com alma de galinha”. Mesmo não se privando do carácter poético
transversal ao conto antes referido, e até a muitos outros que fazem desta obra
aquilo que é, nota-se a subtil introdução de um humor de situação, imagem e
sentido deveras aprazível. Algo que as suas primeiras linhas ajudarão a
esclarecer:
«Um dia, a
princesa disse que queria ser enfermeira e imediatamente correu pelo reino a
notícia de que a moça estava maluca».
A pobre princesa, muito pouco
dada aos assuntos do palácio e suas rotinas diárias, sabe-se dotada de uma
compassiva inclinação para os demais, seja Homem ou bicho, algo que
necessariamente irá entrar em conflito directo com aquilo que dela mais se
espera. Contudo, entre avanços e recuos de pai, o rei, e filha, a nobre
princesa, entre cedências e obrigações, ameaças e benesses, lá a história se
vai criando sem que as extraordinárias incidências da vida (ou será destino?)
não permitam uma folga àqueles que nunca abdicam de ser o que são. Curiosa é,
como em casos idênticos tende a verificar-se, a forma como o povo a trata, ele
que também espera dela um comportamento digno de princesa, e não os modos de alguém
que aparenta em figura e em desejo ser não mais do que eles são. O julgamento,
contudo, será implacável: «a princesa é burra». Também por aí se vê como o
próprio povo parece feliz no cárcere que lhe é imposto.
Trata-se, em
suma, de um texto que explora o confronto entre as vocações de uma vida e as
imposições sociais que surgem sob o disfarce do destino, fazendo-o o autor por
elegantes e descontraídas linhas que em ritmo pausado urdirão o esplendor da
imagem final que ao leitor será oferecida. Uma vez mais, assim fala Valter Hugo
Mãe à criança que dorme no interior de cada Homem, na tentativa de despertá-la
e fazê-la recordar daquilo que de tão simples e essencial um dia esqueceu.
Outros
textos se antecipam e sucedem até ao condão da sentimental comoção ser
novamente aplicado em moldes poéticos, embora com pouca ficção, num outro que
em breve iremos anunciar. Até lá, destacaremos “O mau lobo”, uma
interessantíssima inversão de uma das mais conhecidas histórias de todos os
tempos, “O capuchinho vermelho” (os leitores brasileiros conhecê-la-ão por
“Chapeuzinho vermelho”).
Nele, a
famosa menina da história, indo de passeio até à casa da sua avó, e perseguida,
neste caso, por uma imensa matilha de lobos, encontra um deles, bem pequeno,
ferido e necessitado de cuidados. A compaixão que exibe diante da delicada
situação da frágil criatura, dir-se-á o gatilho capaz de atear nos restantes
lobos uma compaixão de animal perante um outro que intenta a salvação da vida
daquele que lhe é igual. Assim a menina, com tão nobre gesto, e sempre
ignorando o plano principal das feras vorazes, amansa e doma pela virtude do
amor sem condição a matilha de lobos esfaimados, sem que ninguém devore o que
quer que seja. Eis o triunfo da mais pura das inocências.
«Eram lobos calados,
deitados sobre as patas como fazem os cães mais sensíveis. A menina (…) disse:
a minha avó vai curar o vosso lobito, não fiquem tristes. A minha avó traz um
milagre de cada gesto».
O conto que antes antecipámos
apenas por breve alusão tem a sua vez logo a seguir ao término deste que
acabámos de explorar, ainda que superficialmente. De nome “As mais belas coisas
do mundo”, é-nos proposto na primeira pessoa e pela voz, claro, de uma criança,
tendo quase sempre o seu avô por referência. Um relato que se assumirá
enternecedor, comovente de igual modo, esperançoso e tão poético quão poéticas
sabem ser as mais simples e belas coisas que povoam a existência humana, seja
através das suas experiências de jornada como pelo desfrutar de relações
profundamente afectivas.
A riqueza do conto é notável.
Mesmo que desejando destacar toda a nuance, toda a implicação, todo o sentido
da reflexão elaborada mediante o caso sucedido, escassas páginas não se
comprovariam à altura do desafio. Mas poderemos revelar como forte é esta
ligação entre avô e neto, como se dá a transferência de conhecimentos e,
principalmente, o apelo a que por si o elemento mais jovem forme a sua visão
das coisas que o rodeiam: «O meu avô sempre dizia que o melhor da vida haveria
de ser ainda um mistério e que o importante era seguir procurando». Pois, mesmo
que não se exclua a eterna busca de cada ser pelos caminhos da existência, o
principal deste conto encontra-se na herança sentimental que recebemos dos
outros, prelúdio da sua imortalidade em nós. Algo que, convenhamos, só em
certas passagens da vida poderemos compreender melhor:
«Aprendi que
a minha avó ficou doente e precisou de morrer.
Por causa de
estar muito doente, a avó precisara de morrer para ficar sossegada. Não lhe
poderíamos falar, mas ela seria um património dentro de nós (…)».
A conclusão da análise da dura
experiência é tão sobejamente revolucionária como dotada de uma profunda e
amorosa visão. A aprendizagem faz-se tantas vezes por trilhos de pedras e
espinhos, mas no final da mesma estará, ínclita e reluzente, a mais fina das
rubras flores. Por palavras, o seu perfume é assim descrito: «Se esperarmos, um
dia a tristeza dá lugar à celebração». Quão extraordinário é encarar a morte de
um ente querido não como uma inevitável partida, mas como a celebração de toda
uma vivência e seus elementos mais verdejantes…
Seguindo a
ordem biológica da vida, também a vez de seu avô chegará. E sê-lo-á de um modo
tão natural como as folhas que despem a árvore no outono da vida. Então, como se
cada linha anterior preparasse o êxtase final no texto, dá-se a serena explosão
como o culminar de uma qualquer melodia de sóbrios acordes, dotada da mais
refinada beleza, plena de harmónicas ondulações.
«Eu entendi
que o meu avô era como todas as mais belas coisas do mundo juntas numa só. E
entendi que fazer-lhe justiça era acreditar que, um dia, alguém poderia
reconhecer a sua influência em mim (…).
À noite,
deito-me como uma semente na almofada húmida do coração. Fico aninhado com a
esperança de crescer esplendorosamente por dentro do amor. No verdadeiro amor
tudo é para sempre vivo».
Muitos mais contos poderíamos
aqui abordar, mas preferimos deixar a si, estimado leitor, o prazer de mais
tarde os descobrir.
Sempre num
estilo inovador e fresco, fortemente criativo, e com a certa dose de poesia
para encantar os mais duros sentidos, apresenta-se a obra uma sólida
confirmação, se tal fosse ainda necessário, do génio literário de Valter Hugo
Mãe, justamente um dos nomes mais badalados do actual panorama português. A
autenticidade da relação entre autor e obra é tal que, findada a leitura, com
alguma clareza até se conseguirá extrair a imagem de um homem em busca da sua
própria infância, do seu recordar de vivência e, como tal, do preservar de suas
peripécias – tudo pela constância do alvo final de cada história proposta.
Quem escreve
para crianças, mesmo afirmando que não o faz directamente, escreve não só para
a criança que há em cada adulto, se quisermos seguir a ideia antes lançada,
como também dirige a palavra àquela que o habita, àquela que um dia o autor
foi, por modo a conservar uma jovialidade de carácter e visão tão ímpares. Mas
não só, já se que trata igualmente de um método de manter o Homem adulto vivo na
sua eterna juventude de espírito. Talvez por esse motivo estes contos exibam ainda
a glória substancial desses outros que povoaram os fabulários de outrora…
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