Por Alfredo Monte
Nove, novena, publicado
em 1966, foi o primeiro livro excepcional de Osman Lins, um dos nossos
escritores fundamentais, e que anda injustamente esquecido — depois viriam os
romances
Avalovara e
A rainha dos cárceres da Grécia.
Reeditado pela última vez em 1994, reúne-se nesta antologia nove contos de
forte teor experimental e vertigem temática, com poucos rivais à altura como
Corpo
de baile, de Guimarães Rosa, ou
Papéis avulsos, de
Machado de Assis.
Por exemplo “Os confundidos”, mostra a questão da incomunicabilidade
entre casais, um dos temas dominantes, de uma forma inovadora, ainda que seja o
mais “fácil” de Nove, novena: um casal discute seus problemas num
diálogo aparentemente simples, mas no qual as vozes acabam por se confundir.
Como afirmou Sandra Nitrini: “há
alternância entre oito segmentos de diálogos e sete trechos
descritivo-narrativos, expondo a organização geométrica e equilibrada do texto.
Esse aspecto fica mais evidente, quando se percebe o jogo entre a transparência
do discurso do diálogo e o registro inusitado das marcações teatrais, que
oscila entre os polos da definição e indefinição”. O texto não permite muitas
vezes saber quem faz uma ação: “Um de nós levantou-se, ou irá ainda
levantar-se, entreabrir a cortina, olhar a noite”.
A cada conto, a experimentação se
radicaliza: em “Conto barroco”, há três possibilidades narrativas para a
situação do matador que vem executar um “serviço” e se envolve com a
amante do homem que deve executar, uma das quais mostra como ela acaba sendo a
vítima; em “O pássaro transparente”, a alternância entre a primeira e a
terceira pessoa compõe uma trajetória de frustração do protagonista, que assume
o destino do pai como patriarca da família, quando imaginava que seria aquele
que romperia o círculo (ironicamente, quem faz isso é a sua amada da juventude,
ao se tornar uma artista, que pinta justamente o quadro que dá título à
narrativa).
Nos 20 fragmentos de “Pastoral”,
o narrador, Baltasar, mostra sua condição de pária no sítio do pai até mostrar
sua própria morte (e o seu velório: “estirado na mesa, sem velas, dedos
cruzados, a pele de raposa cobrindo-me as virilhas. Sentados e mudos, nos
lugares de sempre, meu pai, Joaquim e meus irmãos, rodeiam-me… Talvez com
remorso, talvez com alívio, pois nunca mais verá este seu filho, que em nada se
parece com ele e que, todos os dias, fazia-o recordar a mulher que foi capaz de
deixá-lo, meu pai contempla-me”), ao tentar impedir que sua égua acasale com um
garanhão, numa tentativa patética de negar o atavismo reiterado pelo universo
patriarcal.
Os grandes destaques são os
dois textos desafiadores, onde as personagens ganham símbolos identificadores,
ao invés de nomes, para marcar sua intervenção: “Pentágono Hahn” e “Retábulo de
Santa Joana Carolina”. No primeiro, uma elefanta de circo (a Hahn do título)
serve de convergência para cinco personagens, os quais representam fases
diferentes da existência. E no segundo, quase que unanimemente considerado o
mais perfeito entre os textos de Osman Lins, o leitor descobre o que é, de
fato, a morte e vida Severina na trajetória da professorinha primária viúva que
tenta sobreviver com seus diversos filhos em meio à miséria nordestina, e nessa
luta inglória toca a transcendência e a santidade, em meio à “impregnação
das coisas”.
Joana Carolina diz, no oitavo
“mistério” (entre os 12 que compõem a narrativa), que é uma lei sua “agir
sempre como se o impossível não fosse”. Ao que parece, era a lei de Osman Lins
como escritor.
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