Bent, de Sean Mathias
Por Pedro Fernandes
O filme não é
novo. Data de 1997. É baseado numa peça de teatro de 1979 de Martin Sherman e
que tem adaptação inicialmente em Londres e depois na Broadway com ninguém
menos que Richard Gere no papel principal: o da personagem Max, quem depois de viver
na clandestinidade sua promiscuidade com outros homens, é preso pelo nazismo
num campo de concentração. A obra, quando no teatro foi, além do sucesso da crítica –
algo que certamente influenciou ser levada para a grande tela – um celeuma
entre os espectadores. Havia poucos anos que a Inglaterra invalidava o crime de
ser homossexual e até então pouco ou quase nada se sabia do que o regime de Adolf
Hitler havia cometido contra a comunidade LGBTT e o texto de Sherman se não deu início
foi um dos precursores e provocadores ao interesse dos pesquisadores pelo tema tratado por ele nos palcos.
A apresentação
desse fato é totalmente necessária não apenas para que o leitor saiba quais
foram as bases para a construção do enredo cinematográfico proposto por Sean
Mathias, mas para compreender quais são as bases de criação estrutural do drama.
Muito da estética teatral – como o foco definitivo sobre a personagem principal
da narrativa ou o andamento das cenas e o desenvolvimento da ação – são reproduzidos
pelo diretor. Este é, evidentemente o erro mais grave por ele cometido, uma vez
que dá ao filme certo caráter monótono e à história certa abstração ou deslocamento, que faz o espectador não se entregar completamente às situações conforme são
narradas.
Também a peça quis, na época em que foi apresentada, ser uma alegoria
sobre as identidades negadas – pela sociedade e pelo próprio indivíduo – e isso
parece não caber numa obra cinematográfica. Nenhuma alegoria, aliás, sobrevive
à narrativa do cinema porque os principais elementos que a sustentam – a maneira
como a narrativa é construída e as implicações da voz que narra – são refeitos
pelo cineasta cuja preocupação deve ser somente a de realizar uma história. Isto
é, o conteúdo alegórico pode até surgir depois da história apresentada, mas a
força motriz do diretor é por hora esquecer o poder de significação e produzir
uma obra que não seja levada em falso pelo espectador. Um exemplo muito claro
sobre isso é o filme Ensaio sobre a
cegueira, do Fernando Meireles. Ante um texto de forte penetração alegórica
como é o de José Saramago, o cineasta preferiu reinventar alguns aspectos da
composição cinematográfica a fim de fazer palpável o extenso universo imaginado
pelo escritor; a alegoria ficou em segundo plano e não é alcançada em sua forma
plena como é alcançada no romance. Mas ao menos o cineasta esteve ciente dessa
incapacidade e firmou-se em produzir uma narrativa que é nada mais que uma
ficção quase científica em que um grupo de humanos perde a visão e necessita
conviver com isso. Sean Mathias terá preferido preservar a estética teatral a fim de preservar esse sentido tal como fundou o dramaturgo. Vã inocência!
Além disso, ou
porque o texto teatral sempre requer uma elaboração muitas vezes performática a
fim de criar no espectador a ideia de contexto onde se darão as cenas da
narrativa ou porque (no caso de Bent)
o criador preocupado com o viés alegórico do seu texto carrega na imaginação de
um universo suspenso cuja única base histórica da qual se beneficia é o auge do
regime de Hitler, a transposição da performance e dessa bolha suspensa do
contexto com o qual dialoga produz no espectador a compreensão grosseira de que
mesmo durante os anos primeiros do nazismo, Berlim se confundia com uma espécie
de Babilônia onde LGBTT mantinham mesmo distante dos olhos do poder uma plena
realização quanto aos seus modos de vida. A história, no entanto, nos diz outra coisa totalmente diferente e o próprio filme enfrentará essa falsa ideia. Uma provocação? Pode ser. Mas isso para o teatro tem um efeito e para o
cinema tem outro – e no cinema o efeito é desastroso. Na linha da transposição do teatro para a tela, que afinal é o que prevalece imediatamente ao espectador, eis então um efeito que recai na incongruência com o elemento histórico.
Isto é que, o que aqui
apontamos é a falta de autonomia do diretor em reinventar a maneira como
Sherman pensou o drama de Max e a ousadia em querer transpor como se fosse
possível reproduzir – nessa situação – a história para a tela com a mesma
força. Depois disso, não é possível deixar de citar outro erro grosseiro que é a construção de uma imagem asséptica – coisa comum do cinema mas que é sempre outro elemento desfavorável ao andamento da verossimilhança.
Bent é a história de Max, um homem que preenche
as características do sedutor barato; separado da família porque não se vê encaixada
nos padrões hipócritas sustentados pela riqueza vive com outro homem e, numa
das saídas a noite, leva consigo um soldado da milícia paramilitar do regime
nazista. Depois de descobrir uma extensa quantidade de homossexuais infiltrados
na corporação, Hitler decide acabar com a SA e dar pulso a corporação da SS. É
quando, na caça desse soldado com o qual Max se envolve, inicia a perseguição a
Max que consegue, por pequeno tempo, viver na clandestinidade com o companheiro
Rudy. O desfecho poderia ser outro se o tio de Max ao invés de adquirir
identidades falsas apenas para o sobrinho tivesse atendido ao desejo de fazer o
mesmo para Rudy. É aqui que os dois são pegos e levados para um campo de
concentração.
A nova vida
pautada apenas no exercício de cumprir os mandos absurdos dos soldados nazistas cerca-se
de uma grande culpa porque Max se beneficia antes, para sobreviver, da
possibilidade de se passar como judeu e não como um “pervertido”. O encontro do
rapaz com um gay que não guarda remorsos por se manter firme naquilo que ele é o
levará ao enfrentamento do dilema da aceitação. Max é uma figura que está no limiar de dois universos clandestinos de seu tempo: aquele que é sustentado pela posse e aquele que mantido pela posição social e é deste último que retira o maior estrato que representará sua tomada de posição no final da trama. Antes, esse universo pautado na hipocrisia e o impasse vivido pela personagem são perfeitamente bem construídos pelo filme de Mathias bem como se preserva o traço sádico que alimentava o ego
de grande parte dos da corporação de Hitler, além do riso quase explícito sobre
sua hipocrisia, como, em certa altura as personagens de Max e seu amigo comentam
se entre os soldados haveriam gays enrustidos.
O texto é
muito bem construído e se há um acerto da parte do diretor com o filme foi
mantê-lo. Num drama eivado do traço trágico, vigora uma história de aceitação,
de amor na sua dimensão mais sublime, de denúncia sobre a intolerância, de revisão
do dado oficial acrescentando mais uma linha na extensa lista dos horrores do
regime de Adolf Hitler. Essas qualidades superam as falhas estéticas ou as
ingenuidades da direção, porque se referem a um bem maior de toda obra de arte:
descobrir o velado pelos discursos do poder.
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