As lições de Arthur Rimbaud

Por Neiva Dutra



Mais de um século após a sua morte, Arthur Rimbaud é uma figura que dificilmente poderá vir a ser determinada com precisão. Contentemo-nos, portanto, em saudar sua prodigiosa velocidade, sua existência literária que comprovou, em pouco tempo, que a poesia é possível.

Depois de Rimbaud, nada novo, nada mais a dizer, nada além de um reinício, a partir da intensa energia e das agitadoras formas do poeta.

Se há algo que possa descrever a obra de Arthur Rimbaud é a demonstração de que a linguagem da poesia é uma linguagem da qual participam os significados infinitos da palavra, a figuração e a identidade. Sua obra é puro movimento, trabalhada com uma generosa distribuição de significados e de novos sons.

Através do seu discurso, alegre e rápido, passa uma força intensa, que pode ser lida literalmente e em todos os sentidos. Esta superabundância de encontros o poeta desvela em uma afirmativa:


Vendem-se corpos sem preço, de qualquer raça, de qualquer
mundo, de qualquer sexo, de qualquer descendência! Riquezas
brotando a cada passo! Saldo de diamantes sem controle!

Vende-se anarquia para as massas; satisfação irreprimível para
amadores superiores; morte atroz para os fiéis e os amantes!

Vendem-se casas e migrações, esportes, magias e confortos
perfeitos, e o ruído, o movimento e o futuro que eles fazem!

Vendem-se aplicações de cálculo e saltos inauditos de harmonia.
Achados e termos sem suspeita, entrega imediata, Impulso
insensato e infinito aos esplendores invisíveis, às delícias
insensíveis, – e seus segredos enlouquecedores para cada vício –
e uma alegria assustadora para a multidão.

Vendem-se corpos, vozes, a inquestionável opulência imensa,
que nunca será vendida. Os vendedores têm muitos estoques
para liquidar! Os viajantes não precisam ter pressa para entregar
as encomendas!


Esta liquidação entusiasta do poema "Saldo" mescla a energia do prodígio da escrita e seu desastre. Parece que o desastre, para Rimbaud, se encontra na própria natureza da poesia – continuar sendo “poesia” e não se converter em “literatura”, destruir e não sucumbir.

É essa a vocação do poeta: anular, inclusive a si mesmo e aos excessos da poesia e dessa natureza da poesia, para – e de onde – todas as águas fluem, é que ela própria se renova.

Outra das lições de Arthur Rimbaud é que escrever implica, antes de tudo, em permanecer atento e presente a tudo quanto existe. Isso significa ir “pela natureza, feliz como com uma mulher”, caminhar “sob as tílias verdes do passeio marítimo”, “olhar os ingênuos motivos de uma tapeçaria” e os olhos vivos da camareira do “Cabaret verde”, observar intensamente “Os sentados” que “fazem trança com seus assentos”, estar ali para desfrutar de tudo.

Porém, a escrita também vê muito mais do que o olho é capaz de compreender, ambiciona ir além:

No bosque há um pássaro, cujo canto te detém e te faz corar.
Há um relógio que não soa.
Há numa fronde um ninho de bichos brancos.
Há uma catedral que desce e um lago que sobe.
Há uma pequena viatura largada no mato ou que dispara
caminho baixo enfeitada de fitas.
Há uma trupe de pequenos comediantes vestidos a caráter que
se percebe na estrada através da orla do bosque.
Há enfim, quando dá fome e sede, alguém que te expulsa.

Na mesma poesia, o “eu sou” se rompe em múltiplas definições:

Sou o santo, orando no terraço, - como os animais mansos 
pastam até o mar da Palestina.

Sou o sábio na cátedra sombria. Os ramos e a chuva se arrojam
sobre a janela da biblioteca.

Sou o transeunte da grande estrada pelos bosques anões; o
rumor das represas abafa meus passos. Vejo, longamente, a
melancólica lixívia dourada do poente.

Eu bem seria a criança abandonada no cais que partir para o
alto-mar, o pequeno servo que segue a alameda cujo final toca o céu.

A multiplicidade do “ser” revela a existência de identidades inumeráveis, tão vastas quanto as realidades em torno e dentro do poeta, que é o que pode ser, tanto quanto as palavras possam defini-lo.

Para chegar a si mesmo, o poeta passa pelo mundo. A consciência que tem de si mesmo não pode ser separada da apreensão do mundo, tampouco da compreensão do que é e do que não é realmente. A identidade depende da designação.

A poesia de Rimbaud, de fato, é uma relação entre a figuração dos objetos do mundo e a sua identidade, em nome da “pureza central” expressa por Mallarmé. Multiplica as cordas, guirlandas ou correntes de ouro entre as torres, as janelas e as estrelas e entre elas se move.

Dedicado a dizer coisas únicas através do desvio da alteridade – da poesia, portanto –, sua linguagem é a da experiência mais próxima da distância, familiar e estranha, precisamente o que se estranha no outro, no mundo, o que se pergunta e o que se responde. A poesia é o espaço para ser, ao mesmo tempo, as perguntas e as respostas mais originais.

O enigma de Arthur Rimbaud nos remete ao nosso próprio enigma. O escritor é como uma figura da imaginação e a incerteza sobre ele é também um reconhecimento da incerteza sobre nossas próprias características. Sendo nada, íntimo, passa a ser todos. Sua obra nos convida a estabelecer nossa própria transitividade, nossa fragilidade, nossa finitude.

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