A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen
Por Maria Vaz
Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu a seis de Novembro de 1919, na
cidade do Porto. A sua família paterna tinha ascendência dinamarquesa, motivo
que talvez tenha dado asas à criação da sua obra “O cavaleiro da Dinamarca”, um conto infantil publicado pelo ano de 1964. A família materna, por seu turno,
tinha as suas origens intimamente relacionadas com a aristocracia portuguesa.
Não obstante o fato de ter tido uma educação puramente conservadora e católica
– o que seria de esperar devido às tradições do seu meio familiar –, Sophia
teve a coragem de se assumir defensora de políticas liberais, criticando duramente
o regime salazarista. O lado humanitário da poetisa fez com que se distinguisse
além do mundo das letras: foi sócia fundadora da “Comissão Nacional de Apoio
aos Presos Políticos” e foi, após o 25 de Abril de 1974, representante do
Partido Socialista na Assembleia Constituinte.
Matriculou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em
1936, onde cursara Filologia Clássica e onde começara a publicar os seus
primeiros versos, em revistas como os Cadernos de Poesia, por volta do ano de 1940. A partir de então
desenvolvera proximidade com autores e poetas que se viriam a tornar figuras
incontornáveis da poesia portuguesa, como Jorge de Sena, Eugénio de Andrade,
António Ramos Rosa, David Mourão-Ferreira ou Miguel Torga.
Casou com o advogado e jornalista Francisco de Sousa Tavares, corria o
ano de 1946, altura em que mudou para a cidade Lisboa. Do seu casamento
nasceram cinco filhos, o que acabou por incentivar a sua dedicação à escrita de
contos infantis, como “A menina do Mar” (1958), “A Fada Oriana” (1958) ou “A
Floresta” (1968). Além dos contos infantis, escreveu Contos Exemplares (1962)
e Histórias da Terra e o Mar (1984).Traduziu grandes clássicos para o
português e para outras línguas, como a obra Hamlet, de Shakespeare, e dedicou-se, ainda, aos ensaios – dos quais
destacamos “Hölderlin ou o lugar do poeta” (1967) – e, mais tarde, ao teatro. Foi
distinguida nacional e internacionalmente pela sua obra literária, tornando-se,
inclusivamente, na primeira mulher da ser galardoada com o Prémio Camões, em
1999.
Não obstante a variedade e a riqueza do seu legado, centrar-nos-emos na
sua poesia e nas mensagens que, através dela, procurou transmitir ou deixou
transparecer nas subtilezas que circundam toda a objectividade das palavras
geradoras de voos subjectivos, na liberdade interpretativa, de cada leitor. E a verdade é que os temas que marcam a sua
poesia acabam por ser os temas em que canalizara maior energia mental ao longo
da vida: aqueles tópicos além do eu, mas que o tocam (porque talvez a realidade
não seja mais do que uma percepção subjectivamente mutável, entre o que nos
ensinaram a ver nela, as emoções que a transformam ou aquilo que, através da
imaginação, gostaríamos de ver nela). A poesia é um depósito criativo do ‘eu’
com o ‘mundo’: uma espécie de canalização do ser em um qualquer ‘quid’ que o
transcenda e que, por esse motivo, será sempre algo místico ou, no mínimo,
imaterial.
A poesia de Sophia de Mello Breyner é carregada do idealismo de uma
alma em busca do belo além de juízos estéticos materiais: atenda-se à sua
preocupação com a ‘justiça’, com o ‘amor’, com a ‘humanidade’, com a ‘natureza’,
o ‘mar’, as emoções ou a transparência.
Sobre o Mar, esse turbilhão neptuniano que transcende o ‘eu’ em uma
espécie de fusão com o todo, Sophia escreveu alguns poemas em que funde o já
mencionado com o valor da liberdade: a liberdade de ser tudo e qualquer coisa;
a liberdade puramente impensada da natureza; a liberdade além da razão, que
tudo enegrece. Veja-se, esse sentido, o seguinte poema da sua obra No Mar
Novo:
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente,
Encontra a própria liberdade.
Ou ainda, da sua obra, Poesia, de 1944:
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Contudo, não podemos deixar de tocar as preocupações sociais da poetisa
e as críticas que dirigiu à classe política pelo fato de não atenderem aos
gritos de necessidade daqueles que nada
têm além de uma vida em torno da procriação e da subsistência. A poetisa
escreveu que “o nosso tempo é/ pecado organizado” foi mesma que rodeou alguns
dos seus versos de esperança e de
transcendência, envolta em uma espécie de misticismo naturalista, e na crença
de que poderá existir um mundo melhor. Como prova desse idealismo brotante da
sua essência além do banal, leia-se o seguinte poema da sua obra O Nome das
Coisas:
Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
Não obstante, todo o idealismo acaba por se encontrar com as antíteses
humanamente imperfeitas que a vida quotidiana se encarrega de nos enviar.
Talvez por esse motivo, Sophia de Mello Breyner Andresen tenha erigido a
transparência a um dos temas da sua existência poética, o que revela uma mulher
sensível mas corajosa o suficiente para escrever sobre temas além da beleza
ideal do seu mundo interior ou das percepções puras emanadas pela natureza.
Sobre a desonestidade, os problemas do ‘capital’ e da ‘corrupção’, o carácter
e, sobretudo, pela sua rejeição através da oposição, leia-se o poema ‘Porque’:
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
A verdade é que nos parece que a percepção de uma realidade cinzenta,
para uma mulher corajosa e sensível – na elegância clássica da pessoa de Sophia
–, fez com que adoptasse o idealismo enquanto ritual de fuga para um universo
paralelo de paz e beleza, de transparência e emoções puras. Se nos parece que
isso denota uma liberdade e beleza espiritual além do seu tempo, por outro
lado, não deixa de nos parecer que a poetisa tenha sofrido com a sensibilidade
que a tornou a figura incontornável da poesia portuguesa. Isto que afirmamos é
visível quando aborda temáticas emocionalmente carregadas de intensidade, ao
mesmo tempo em que a razão parece relativizar, em um jeito quase estóico de
evitar o prazer para fugir a uma espécie de dor inevitável. Assim, deixo-vos um
poema em que versa sobre o amor, da sua obra Coral, de 1950:
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeições
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
Haveria um mar a analisar na poesia de Sophia de Mello Breyner, tanto
nos conteúdos expressos de forma inequívoca quanto naqueles que residem em
pequenas subtilezas da sua obra. Todavia, a vastidão e a profundidade das suas
palavras aglomeradas em versos, de forma tão natural e pura como a natureza que
invoca, faz com que tenhamos de terminar este texto perdidos no seu idealismo,
calma poética, imaginação, coragem, crítica e beleza anímica.
Deste modo, em jeito de conclusão – e dado que estamos ainda perto da
data que celebra a evolução da existencial condição feminina – , não poderia
deixar de vos revelar que Sophia é sempre uma fonte de inspiração,
sensibilidade, força e de humanidade. Por esse motivo, deixo-vos um poema da
poetisa que, no nosso entendimento, a retrata na sua força e sensibilidade e,
também, na incapacidade de uma qualquer outra retractação: afinal, Sophia de
Mello Breyner Andresen era um espírito livre, amplo e indefinido, como a
própria afirmou quando escreveu “Pudesse eu não ter laços nem limites”. Fica,
então, em jeito de despedida, o poema “O Mar dos teus olhos”:
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
... Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes
e calma.
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