Reflexões sobre arte popular e arte erudita em Tia Julia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa
Por Rafael Kafka
Tia Julia e o escrevinhador é mais um
daqueles livros que se propõem a realizar várias narrativas ao mesmo tempo e por isso se
torna de difícil classificação. Mesmo com uma prosa simples quando comparada
com a de outros textos de Mario Vargas Llosa, como clássicos do quilate de A cidade e os cachorros, este romance
pode ser considerado da boa safra de Prêmio Nobel peruano e uma boa introdução
a recursos muito caros a ele em seus livros mais famosos, como as narrativas
entrecruzadas que se unem em uma unidade em certo ponto do enredo e a presença feminina
impactante na forma de alguma mulher dona de si e por isso vista como cruel
pelos homens.
Em Tia Julia... temos o romance
autobiográfico em que o autor fala de seus anos de juventude, quando estava na
faixa dos dezoito anos e era aluno de Direito ao mesmo tempo que jornalista
responsável pelos noticiosos de uma grande rádio do país e aspirante a
escritor, na fase em que a nossa criatividade e pressa só nos deixam escrever
contos de poucas páginas sobre fatos triviais. Nessa rotina, o jovem Vargas toma
conhecimento da existência de Julia, uma mulher de humor ferino, similar ao da
menina má de outro grande livro de Llosa, irmã da esposa de Lucho, seu tio. A
princípio, Varguinhas se sente nutrindo antipatia pela “tia”, mas aos poucos se
pega apaixonado por ela e a convence a viver um pequeno romance secreto pelas
ruas de Lima.
Enquanto
narra suas aventuras e desventuras com a tia Julia, Mario Vargas Llosa fala de
seu cotidiano na rádio e na amplitude de um fenômeno cultural extremamente
relevante do ponto de vista do entendimento social de uma população: as
radionovelas. Antes do advento da
televisão, tal gênero de texto não verbal era o ponto central no entretenimento
de muitas pessoas. As famílias se reuniam ao redor do rádio para ouvirem as
tramas cheias de dramas melodramáticos e efeitos especiais com o intuito de
reforçar o realismo daquelas histórias. As radionovelas representavam a sede da
massa popular por entretenimento, por arte, como uma forma de fuga de seu
cotidiano complicado e cheio de problemas das mais diversas ordens.
É nesse
momento que o diretor da rádio em que Vargas trabalhava convida para
trabalhar ali Pedro Camacho, que já tinha uma considerável fama como escritor e
diretor dos roteiros das novelas. O autor o retrata como uma pessoa cheia de
exotismos, manias e preconceitos contra o povo argentino, os quais ele faz
questão de expor em seus textos. Llosa cria por Pedro uma admiração profunda,
mesmo ele sendo produtor de um gênero de certa forma inferior em importância na
mente do então jovem escritor.
Mesmo
com todas as estranhezas de seu modo de ser, Pedro se torna uma espécie de
conselheiro amoroso e espiritual para Vargas, o qual passa a relatar seus
sofrimentos com Julia ao radionovelista. Ao mesmo tempo em que conversa com seu
amigo, se é que ele pode chama-lo assim, Llosa começa a refletir acerca do
fundamento presente no gênero de arte feito por seu colega de trabalho e
conselheiro. Tais reflexões, mais do que o romance do jovem autor com sua tia
catorze anos mais velha, podem ser consideradas o ponto alto da trama.
Percebemos
em Camacho um abnegado trabalhador cujo maior prazer na vida, para não dizer o
único, é o de entregar suas histórias para alimentar as ilusões e devaneios de
seu público. Há no comportamento do novelista a aura sagrada auto imposta dos
poetas simbolistas, que se consideravam profetas do prazer estéticos
responsáveis em dedicar sua vida à arte e assim tornar o mundo mais belo com
seus projetos de vida e obras. Isso serve de provocação a Llosa, que passa a
entender o seu preconceito para com as novelas do rádio questionando e
entendendo o fundamento das mesmas.
Elas,
assim como a literatura e outras formas de arte consideradas eruditas, têm como
principal meta provocar a catarse do sujeito que as contempla, lê, escuta, etc.
O que diferencia as radionovelas dos clássicos da literatura seria apenas o
público leitor. As obras literárias do cânone são consumidas por um público
mais rico economicamente e tido como mais culto, produtor de discursos críticos
e de hábitos de leitura e cultivo de tais produtos artísticos, os quais criam
um contexto de valorização de suas práticas e dos produtos que recebem essas
práticas. Por isso, em nossa cultura, há tanta valorização da cultura de salão
com suas óperas e suas músicas instrumentais.
Por
outro lado, as novelas de rádio e de TV são consumidas por um público de menor
poder aquisitivo, trabalhador e que muitas vezes nem à escola teve a chance de
ir. Tais pessoas procuram, muitas vezes, apenas um consolo ou uma distração da
labuta difícil que passam diariamente e não querem o contato com obras
complexas e enfadonhas demais. Suas práticas de leitura estão condicionadas
demais ao seu poder econômico e ao contexto social complexo em que vivem, pouco
possibilitador de reflexões profundas acerca do mundo e de suas problemáticas.
Assim,
a arte produzida por e para as pessoas simples é vista como algo pobre,
inferior, indigno de ser estudado, comentado e analisado pelos críticos, os
quais fazem as vezes do gosto da burguesia. Em contraponto, tudo o que é
produzido pela sociedade burguesa, em especial pelo sociedade burguesa com
aspirações a imitações do modo de ser europeu, é tido como algo profundo,
admirável e de bom gosto.
A
história de Llosa se passa há uns cinquenta anos, mas podemos utilizá-la para
discussões cada vez mais necessárias, e atuais, acerca da função da arte em
nossos dias. Essa preocupação burguesa em cultivar determinado tipo de arte e
criar um discurso em cima dessa arte, sem se preocupar em levar a todos os
setores sociais a possibilidade de cultivá-la, apenas serviu para ampliar o
fosso social existente em diversos países, como no Brasil. A crítica contra
certa formas de arte mais do que um interesse científico tem muito de classismo
e por isso o texto de Llosa se torna importante para nós entendermos algo muito
simples acerca das pessoas menos abastadas em nossa pirâmide social: elas
também querem arte.
Por
conta desse fator, o romance autobiográfico de Llosa se torna um belo panorama
social que se liga às reflexões de Antonio Candido em seu ensaio O direito à Literatura: muitas vezes
pensamos que as pessoas pobres não têm paciência ou aptidão para a arte, porém
o que elas não têm é oportunidade de se deleitar com diversas formas de arte.
Não devemos querer que as pessoas parem de ver novelas, de ouvir as músicas que
tocam em seus guetos, favelas, bailes, etc. Devemos almejar que essas pessoas
acessem todos os tipos de arte e de provocação estética e reflexiva para se
tornarem mais aptas a outros tipos de percepção e não apenas acostumados ao
mais do mesmo de seus dias de labuta. Devemos também não julgar o gosto
estético de tais pessoas, por mais que eles não nos agradem, e sim entender o
que há de beleza neles para aqueles olhos ávidos, como os de qualquer pessoa de
qualquer classe social, credo e etnia, da transcendência que somente a arte
pode trazer.
Pedro
Camacho assume os ares de importância que sabe ter. Por mais afetado que seu
exotismo possa ser em alguns momentos, ele se reconhece como um provocador, no
sentido implícito na leitura de Tempo e narrativa de Ricoeur. Camacho sabe que a cada capítulo ouvido, o desejo de
ouvir mais surgirá e a cognição de seus ouvintes leitores sempre estará
projetada para o futuro de suas produções. Ele sabe muito bem do poder tido em
suas mãos de tirar os fãs de sua arte de seu lugar, algo que muitos escritores
desconhecem ou fingem desconhecer.
Mario
Vargas Llosa entende perfeitamente esse poder de provocação e por isso coloca,
entre os capítulos de seu romance, pedaços das novelas. Neles, podemos ver
muitos dos elementos de exagero e de drama existentes nas obras de Camacho e
temos uma melhor noção dos efeitos causados nos ouvintes de então, anteriores a
recursos como programas gravados ou sites de stream. Muitos desses elementos
culturais e estilísticos serão vistos nas futuras tramas de Llosa, até mesmo um
personagem: o sargento Lituma.
Assim, Tia Julia e o escrevinhador além de ser
um texto de classificação imprecisa, mostra um aspecto literário o qual torna a
literatura hispano americana algo mais deleitável e até mesmo superior, a meu
ver, aos clássicos da literatura europeia (ou mundial, como alguns críticos
eufemisticamente gostam de dizer): a profunda influência sofrida pelo discurso
literário da América Latina de discursos oriundos da cultura popular. É nessa
literatura que veremos com mais força os gostos e demais aspectos existenciais
de gente como a gente que poucas vezes vemos refletida na considerada grande
literatura, a qual nada mais é, muitas vezes, do que o puro reflexo das
vivências de uma classe social que passa o tempo a se deleitar com o retrato
artístico feito por si mesma.
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