Os artifícios da respiração narrativa de Ricardo Piglia

Por Alfredo Monte

«…Cada vez que pega uma nova rua, as vozes envelhecem, as palavras antigas estão como que gravadas nas paredes dos edifícios em ruínas. A mutação tomou conta das formas exteriores da realidade. ‘Aquilo que ainda não é define a arquitetura do mundo’, pensa o homem e desce à praia que circunda a baía’. Vê-se, ali, à beira da linguagem, como a casa da infância na memória’»… 

Ricardo Piglia, A cidade ausente1


«Todos queremos, le digo, tener aventuras. Renzo me dijo que estaba convencido de que ya no existían ni las experiências, ni las aventuras. Ya no hay aventuras, me dijo, sólo parodias. Pensaba, dijo, que las aventuras, hoy, no éran mas que parodias…» 

Ricardo Piglia, Respiración artificial2




Sempre me sinto desconcertado e tolhido quando penso em escrever sobre a ficção de Ricardo Piglia.  Tenho dificuldades em escrever algo que valha a pena sobre A cidade ausente, romance de 1992 do qual tirei a epígrafe, uma coisa meio Borges meio Burroughs, ou sobre Respiração artificial (1980). Gosto muito de ambos, mas não tenho conclusão definida, nenhum deles fecha a conta para mim. E não sei então se julgo o todo por certas partes de que gosto muito, que são narrativamente maravilhosas (é o caso da longa confidência do polonês Tardewski, em Respiração artificial, de como foi parar na província de Entre Ríos, na Argentina). No entanto, esses exemplos de ourivesaria narrativa estão engastados num tecido ficcional esgarçado e fragmentário, em que a linguagem é um jogo e um artifício plenamente assumido, como é de praxe na chamada literatura pós-moderna.

Ao ler Piglia, portanto, fico quase como Serena Frome, a protagonista de um romance de Ian McEwan (Sweet Tooth; no Brasil, Serena), voraz leitora de romances. Porém, que não venham com metalinguagem ou jogos de gato e rato com o leitor quanto à representação do real. Ao ler um conto do seu namorado, ela fica indignada: «… era narrado por um macaco falante dado a reflexões angustiadas sobre a sua amante, uma escritora que estava tendo dificuldades com o seu segundo romance (…) Só na última página fui descobrir que o conto que eu estava lendo era na verdade o conto que a mulher estava escrevendo. O macaco não existe, é um espectro, um ser criado pela imaginação irrequieta. Não. E não de novo. Isso não.  Fora a coisa exagerada e bisonha do sexo interespécies, eu desconfiava instintivamente desse tipo de truquezinho ficcional. Eu queria um chão firme debaixo dos pés. Na minha opinião havia um contrato tácito com o leitor, que o escritor devia honrar. Nenhum elemento de um mundo imaginário e nenhum dos seus personagens deveria poder se dissolver por causa de um capricho do autor.  O inventado tinha de ser tão sólido e consistente quanto o real…»3.

Serena odiaria Respiração artificial. O livro começa com um aceno promissor ao leitor do seu tipo: «Dá uma história? Se dá, começa há três anos»4. O narrador inicial (depois o foco narrativo se multiplica), Emilio Renzo, publica um romance baseado em episódios da sua história familiar, em 1976 (como sabemos, época da ditadura militar, cujo saldo foi tratado pela sociedade civil argentina de maneira infinitamente menos hipócrita e “cordial” do que a brasileira com relação a fatos históricos similares), o que dá início a uma correspondência com um tio, Marcelo Maggi, inspirador da obra (tanto o autor quanto eu gostamos bastante do seu título: A prolixidade do real5), ovelha negra da família por causa de um escândalo envolvendo seu casamento (que acarretou sua prisão) e  por obscurecidas razões políticas que o levam a “se esconder” num cafundó interiorano como professor de história e pesquisador da vida de um antepassado da ex-esposa, Enrique Ossório, considerado traidor de um complô contra Rosas, o qual igualmente teve de levar uma vida de trânsfuga e exilado.

Quer dizer, as vidas de Maggi e Ossório se espelham, e suas narrativas também, sempre ambíguas, deslizantes, cheias de brechas («Complicações diversas, difíceis de explicar por carta, levam-me a crer que durante algum tempo você ficará sem notícias minhas»), ainda mais quando conhecemos um dos projetos de Ossório: ele, escritor do século XIX, imaginaria cartas do futuro, vindas de uma Argentina já se aproximando do fim do século XX (quer fazer um exercício “utópico”, pois é um daqueles educadores da pátria, típicos da sua época, e tendo em vista a realidade histórica, a ironia é tácita): «…marcar encontro com o próprio país numa data (1979) situada, de fato, numa distância fantástica. Tal lugar não existe no tempo. Tal lugar ainda não existe. Isso, para mim, equivale ao ponto de vista utópico. Imaginar a Argentina tal como será dentro de cento e trinta anos…».

Nessas idas e vindas do foco narrativo, várias obsessões nacionais e literárias se delineiam, e sempre a figura de Borges ao fundo, inclusive pelo tema do traidor e do herói e pela presença insidiosa da fama e da infâmia, ambas pegadas às faces de Maggi e Ossório. Isso dá uma história? Claro que dá, até duas, e muito fortes, só que elas vão sendo constantemente desviadas de rumo e desmanchadas em sua tessitura.

Conhecemos, então, dom Luciano Ossório, o sogro de Marcelo (ambos têm mútuo apreço), paralítico há muitos anos (metáfora da condição da pátria?) e isolado de uma maneira hiperbólica, avizinhando-se do fantástico: «Chegam-me notícias de fora, mensagens, mas às vezes penso: será que não fiquei totalmente só? Aqui eles não podem entrar.  Primeiro, porque meu sono é muito leve e eu os ouviria chegar. Segundo, porque inventei um sistema de segurança sobre o qual não posso dar detalhes. Recebia, disse, mensagens, cartas, telegramas. Recebo mensagens. Cartas cifradas. Algumas são interceptadas…».  

Poderiam ser os delírios de um velho de noventa anos, não fosse a existência de um censor de cartas, uma figura bizarra chamada Francisco José Arocena (metáfora da censura e da repressão?), que tem a obsessão da criptografia e da decifração de códigos secretos. Ele decompõe cada carta até chegar a uma mensagem cifrada. Para depois aplicar outro código, outra regra, conseguindo outra informação completamente diferente no mesmo texto. Numa narrativa em que há vários pesquisadores de vidas e obras alheias (Renzi com relação ao tio, este com relação a Ossório, Tardewski em relação a Kafka e Hitler, só para ficar no óbvio), isso lança uma inquietante sombra. O contrato tácito da escrita (aquele da citação do livro de McEwan), de qualquer tipo, entre quem escreve e quem lê, está rompido de antemão e não há mais chão firme. A respiração já não pode ser mais natural, tem de ser mediada por instrumentos imprecisos, impalpáveis, às vezes inoperantes.

Mesmo assim, sou obrigado a dizer que considero essa parte do livro chata. O que escrevi acima é uma visão racionalizada e teórica e, portanto, a subsume de modo positivo relativamente ao resto do livro, mas a interação do leitor com o texto a essa altura é problemática, parece que “não dá liga”. Eu sinceramente acho que perdi alguma conexão ou não entendi o “desenho do tapete” porque se dependesse dessas páginas eu jamais consideraria Respiração artificial um grande livro.

E Renzi vai atrás do tio (que sumiu) em Concordia, Entre Ríos, viagem que atravessa e unifica o livro. As pistas sobre Maggi são mínimas e o avanço do relato não permitirá um maior conhecimento dos fatos, a não ser migalhas de pistas, de forma a que eles façam sentido e se expliquem para nós. Pois a segunda parte do romance6 (intitulada Descartes, que pode tanto evocar o grande filósofo, e de fato ele é evocado no texto, não muito lisonjeiramente, pois é associado ao sonho hitlerista, quanto também evocar a ideia de coisa descartada, que não se aproveita, que fica como algo virtual, esquecido, obliterado) confrontará Renzi e suas teorias literárias (as quais, em última instância, são teorias metafísicas ou teorias do real) com tipos diversos de intelectuais e escritores provincianos (e suas teorias e concepções), o que rende diversos colóquios e subtramas divertidas e pitorescas. Mas essa parte é dominada pelo longo relato do melhor amigo de Maggi, e guardião da sua pesquisa, o professor de filosofia Tardewski que há 40 anos vive ali, após fugir da guerra, não se entender muito bem com os círculos filosóficos argentinos e a vida universitária (ele apresenta uma teoria do fracasso necessário, medida de uma vida autêntica, para o jovem escritor sobrinho do seu comparsa intelectual).



Mais um desterrado, um exilado, alguém que está “de fora”. Ele vai fornecer ao jovem Renzi uma dos tentáculos mais fascinantes desse romance-polvo que é Respiração artificial com sua túnica inconsútil entre história e literatura: a hipótese (para ele, mais do que isso) de que Hitler (então, um exilado também) e Kafka conviveram em Praga, no final dos anos 1910, e que ao ouvir as teorias e fantasias onipotentes do austríaco que liderará o Terceiro Reich7 foi que Kafka começou a imaginar seu universo sombrio e profético de colônias penais, processos e castelos onipotentes e inalcançáveis, principalmente para exilados utópicos.

Cortázar reclamava de que, ao destacar capítulos de O jogo da amarelinha especialmente memoráveis, leitores e críticos adotavam uma postura cômoda e desdenhavam o desafiador projeto total do romance. Correndo o risco, faço o mesmo com Respiração artificial: assim como Renzi não encontra o tio e não fecha a conta da sua busca, eu não consigo uma ideia geral do romance de Piglia e mais do que do todo, gosto especialmente desse colóquio entre Renzi e Tardewski, para mim um grande momento da ficção. Quem sabe, no futuro, outras leituras, outras veredas…

Notas

1 Utilizo a tradução de Sérgio Molina (a edição da Iluminuras que tenho é de 1997).

2 Utilizo a edição da Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 4ª. Edição, 1992.

3 Utilizo a tradução de Caetano W. Galindo (Companhia das Letras, 2012).

4 Aqui e em todas as demais citações do livro utilizo a tradução de Heloísa Jahn na edição da Iluminuras, de 2006.

5 Renzi no diz que escrevera o romance «usando o tom de As palavras selvagens, ou melhor: usando os tons que Faulkner adquire quando traduzido por Borges, com o que, sem querer, o relato ficou parecendo uma versão mais ou menos paródica de Onetti…». O mais engraçado é que toda a tessitura de Respiração artificial tem o seu lastro faulkneriano, pois é sempre construída como um diálogo, seja através da correspondência entre tio e sobrinho ou nas cenas de colóquio entre dois personagens (Renzi e dom Luciano; Renzi e Tardewski); são, aliás, cenas extremante hábeis, do ponto-de-vista técnico.

6 A primeira parte é intitulada Se eu mesmo fosse o inverno sombrio.

7 Diga-se de passagem, há uma estreita relação entre nazistas e a Argentina, outra “sombra” lançada por essa narrativa de sombras.

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