Memória, emoção e transformação: de Jorge de Sena a Carlos Drummond de Andrade
Por Maria Vaz
Imagem: Lobokoff e Fabienne Rivory |
De vez em quando uma questão assola-nos o pensamento e perdemo-nos na
impossibilidade de uma resposta certa: afinal, o que é a memória? Óbvio será
dizer que a resposta variará de acordo com as premissas de que partamos. Já
repararam que a razão distribui lógica entre pontos pretensamente certos, mas
se perde na incerteza dos pontos iniciais e finais. Pois é: quando começará a
memória? Ela nascerá da nossa consciência? Ou encontrar-se-á ligada a pontos
tão profundos como a base do iceberg que exemplifica a dimensão do nosso
inconsciente? Terá ela um fim, ou seja:
deixa de existir com a morte da matéria animada pela nossa energia? Ou será que
perdura com aquilo que de mais imaterial ou intangível existe em nós?
Os neurologistas dizem que a memória se encontra intimamente ligada às
emoções, às nossas tendências cognitivas e, por conseguinte, ao nosso processo
de desenvolvimento desde a infância até à idade adulta, sem esquecer a
indubitabilidade de que o facto de se possuir ‘boa memória’ equivale a que se
diga que existe uma tendência, ainda que inconsciente, a comportamentos de
‘apego’ que encontrarão a sua origem na mais tenra infância.
Os neurologistas adiantam,
ainda, que existe uma relação evidente entre a memória, a emoção as tendências
cognitivas: explicam que a memória se encontra intimamente ligada ao sistema
límbico, que se conecta reciprocamente com o ‘braisntem’ (que é responsável
pelos comportamentos de sobrevivência) e com o ‘neocortex’ (que regula os mais
complexos processos cognitivos). Nesta linha de pensamento, qualquer ‘input’ do
ambiente que nos provoque uma qualquer reacção emocionalmente extenuante, ainda
que inconscientemente, despoletará uma memória guardada no sistema límbico,
sobretudo em uma parte desse sistema designada ‘amigdala’, que podem fazer com
que tenhamos reacções inconscientes de protecção, caso a emoção provoque
‘medo’, em jeito de instinto de sobrevivência.
Deixando os conceitos técnicos da neurociência ou da neuropsicologia, a
verdade é que a sabedoria popular encarrega-se sempre de nos dar respostas
possíveis relativamente às quais a ciência vai caminhando em passos lentos:
nunca ouviram dizer que a memória é selectiva? Talvez seja mesmo e a explicação
se encontre cientificamente explicada.
Mas, voltando-nos para o mundo da poesia
não podemos deixar de levantar outras indagações: não serão os poetas seres de
intensidade emocional e, por isso, apegados à história além da sua história
consciente? Serão os poetas seres apegados e boa capacidade cognitiva?
Independentemente da resposta científica, se algum dia a houver, à luz dos
nossos olhos é inolvidável a presença de temáticas conexas à saudade ou à
nostalgia, bem como se torna inegável afirmar que a poesia é feita de emoções
que se articulam em palavras, transportando uma mensagem intensa em poucas
formas, concentrada em objectividades que deixam a subjectividade do intérprete
voar.
Independentemente da existência ou não de uma elevada capacidade
cognitiva nos poetas (ou amantes de poesia), caricato se torna este excerto de Jorge
de Sena, de um jeito directo, quase em apelo a um sarcasmo que aos mais
rebeldes poderia soar a arrogância:
“A diferença que há entre os estudiosos e os poetas
É que aqueles passam a vida inteira com o nariz num assunto
A ver se conseguem decifrá-lo, e estes
Abrem o livro, lêem três páginas, farejam as restantes
(nem sequer todas) e sabem logo do assunto
o que os outros não conseguiram saber. Por isso é que
os estudiosos têm raiva dos poetas,
capazes de ler tudo sem Ter lido nada
( e eles não leram nada tendo lido tudo).
O mal está em haver poetas que abusam do analfabetismo,
E desacreditam a gaya Scienza”
E dito isto não poderíamos deixar de falar de um sentimento revelador
de um apego saudável ao passado, chamado saudade: esse sentimento que se
desenvolve imerso em memórias e cujos
estímulos originários provêm mais da fertilidade da nossa mente
inconsciente do que da nossa consciência.
Sobre a saudade, deixo-vos um poema do grande Pablo Neruda:
“ Saudade - O que será... não sei... procurei sabê-lo
em dicionários antigos e poeirentos
e noutros livros onde não achei o sentido
desta doce palavra de perfis ambíguos.
Dizem que azuis são as montanhas como ela,
que nela se obscurecem os amores longínquos,
e um bom e nobre amigo meu (e das estrelas)
a nomeia num tremor de cabelos e mãos.
Hoje em Eça de Queiroz sem cuidar a descubro,
seu segredo se evade, sua doçura me obceca
como uma mariposa de estranho e fino corpo
sempre longe - tão longe! - de minhas redes tranquilas.
Saudade...
Oiça, vizinho, sabe o significado
desta palavra branca que se evade como um peixe?
Não... e me treme na boca seu tremor delicado...
Saudade... “
E, além de Pablo Neruda, não resisti à partilha do seguinte trecho de
um poema de Mia Couto:
“Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés
Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas.”
Deixando a saudade de tempos idos, esta temática não poderia deixar de
chamar uma outra: a transformação. A verdade é que a intensidade, as memórias,
a ligação do processo cognitivo com o espírito de sobrevivência que habita a
nossa mente inconsciente ou as reacções de protecção que aquele nos provoca,
por acto reflexo, de vez em quando são vencidas pela libertação que gera
qualquer tipo de auto-conhecimento ou pela leveza da percepção da eternidade.
Poética e filosoficamente falando, os resquícios do hominídeo que reside em nós
morrem , fazendo-nos renascer como o significado mitológico da Fénix. No final,
sobra o sentimento livre. Dito isto, e em jeito de conclusão, deixo-vos o
seguinte poema de Carlos Drummond de Andrade:
“Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.”
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Beijos.