Brooklyn, de John Crowley
Por Pedro Fernandes
Há muito que
a obra de Colm Tóibín circula pelo Brasil; e por sua presença não só aqui mas ao redor do
mundo e pelos prêmios que já angariou parece ser uma das mais consideráveis para a literatura contemporânea. Embora não seja esta a impressão que fica quando damos pela atenção muitas vezes fria da crítica (no sentido de nunca ser as mais efusivas e nem as mais exageradas); é notório que a leitura sobre sua
literatura funciona com algumas reservas; talvez à espera do grande momento (uma
epifania) capaz de resgatá-la do limbo para onde arrastou-se.
No entanto, parece que o autor não se interessa em construir uma obra capaz de fazer escola e sim preocupada apenas com o desejo de ser
uma literatura cujo o exercício dos bons preceitos da narrativa sejam executados com máximo primor. Notem que essa
observação tem ela também suas reservas, mas sublinha, sobretudo uma concepção
importante sobre qualquer escritor: entre aventurar-se numa subversão, podemos assim
dizer, da narrativa para cometer textos medíocres e escrever textos zelando
pelo que outros já fizeram pela arte de narrar, é notável o escritor que se encaixa
no segundo grupo. Anotem ainda outra compreensão: essa visão sobre a literatura de Tóibín é de alguém que nunca leu um de seus romances e que chegou ao seu universo
pela mão de outros leitores, como John Crowley, cineasta irlandês que adaptou Brooklyn, uma das obras do conterrâneo, para o cinema.
O romance
acompanha alguns anos na vida de Eilis. A personagem é uma jovem irlandesa interessada
em sair de sua terra natal para viver outros ares. Depois que sua irmã abdica
da viagem aos Estados Unidos, ela ganha a oportunidade de realizar esse
interesse. A condição está reservada ao fato de a mãe de Eilis não querer ficar
sozinha pelo medo que carrega do grande monstro da solidão. A viagem e a transformação
vivida por essa mulher – a mais nova da casa e aparentemente a mais frágil – é o
andamento da narrativa que não reserva nada de mirabolante nesse intervalo tampouco
se deixa contaminar por um excesso de drama.
Pela maneira como Crowley redigiu
a leitura da obra para cinema, deixa a entender um zeloso respeito pelo romance
de Tóibín; Brooklyn é um romance que
bebe não apenas na estrutura convencional da narrativa, mas é dotado da dimensão em
reanimar o caráter da trivialidade como peça fundamental para a obra romanesca, essa peça que alguns teóricos da narrativa já disseram ser a principal desde o alvorecer da sua forma. Soma-se, nesse mesmo grupo de características,
a presença da realização amorosa – com fortes toques açucarados – mas sem as
gotas do trágico que coloriu todo o enredo do romance romântico, por exemplo.
Agora, não é
o caso de ser esta uma narrativa sem grandes dramas que não há espaço para a
construção de um espírito crítico sobre determinados temas sociais. Além de uma
visão quase romântica do chamado sonho americano – o do fazer-se pelo esforço e
pela dedicação – que é também um gesto, diga-se, comum a todo aquele cujo interesse
é o de construir a própria vida (tema, aliás, que sobressai nessa história) há uma
ácida observação sobre a construção do chamado estado de bem estar do
estadunidense. Isto é, reforçamos aqui o caráter social da obra por mais que ela pareça em sintonia com determinado modus vivendi, como é o caso aqui analisado.
Essa compreensão nasce do retrato sobre os grandes fluxos de imigração
de gente da Europa – nesse contexto, do povo irlandês e do italiano – que serviu na frente dos trabalhos braçais, seja na indústria civil, seja no comércio,
seja nos trabalhos que os estadunidenses nunca estiveram tão interessados. Nasce aí e ganha
relevo quando entra em cena uma leva de irlandeses, grande parte já destituída da
força de trabalho e vivendo como miseráveis, que recebem o conforto de estar entre
os seus e ter a atenção dispensada pelo estado numa cerimônia de caridade da qual participa Eilis. O encontro marcado pelo canto carregado de dor
e saudade é talvez um dos momentos mais emocionantes dessa crítica porque é
atravessado simultaneamente pela beleza e pela melancolia; isto é, até a
crítica tem, nessa narrativa um tom linear, sem rebeldia, sem interesse de bater de frente com o sistema; quer alcançar outra natureza
da condição formativa: a de veio emotivo.
É em situações
como estas que enxergamos certa pitada de açúcar na obra; como é também a realização
da vida de Eilis nos Estados Unidos: dedicada ao trabalho, respeitada pela dona
da pensão e pelo padre que mantém o estabelecimento, muito à frente nos estudos
de contabilidade... Com tanta perfeição não há sequer espaço para que entre na
sua vida alguém interessado em usar da aparente ingenuidade da personagem. Não quer
dizer que este seja um conto de fadas sem o lado negro da força. A gente
invejosa está em toda parte, mas porque não tem tempo para se deixar trocar por
ela, essa mesma gente acabará por empurrar a protagonista na realização de seus
desejos.
E Eilis encarna na segunda parte da narrativa o forte traço decisório já alimentado pela posição ocupada desde o início; entre uma vida pronta, na qual o único esforço exigido dela seria a figuração para um universo social de proporções muito acanhadas, e a possibilidade de construção do início, mas com a certeza que o sonho é todo seu, não restará dúvidas, ainda que elas pairem e existam, nessa personagem em se decidir pela segunda condição. Eis, então, outro tema crucial da história: a vida só é interessante se vivida com nossos próprios meios; sem eles, é vazio, é ilusão, não é viver.
No fim, todo
esse aparato de idealizações possíveis (sim, o mundo anda cheio de histórias
dessa forma, nós é que não as percebemos) acaba por levar o espectador a torcer
para que essa linearidade das coisas não desande e o tenha o fim aquele
desfecho do foram felizes para sempre. E não por pieguice
ou truque barato: o universo pintado por Croweley não deixa outra alternativa
para quem o assiste. Com personagens bem construídas, enredo enxuto e redondo
e fotografia quase no lugar, Brooklyn assinala
um reencontro com um tempo em que Hollywood usou e abusou das histórias de
amor; aqui, com uma diferença, não é uma história qualquer, é uma história que
nos faz ver o trivial com os olhos que raramente usamos para enxergar a
realidade.
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