Andorinha, andorinha, de Manuel Bandeira
Por Pedro Fernandes
Há
escritores que sempre se revelam como uma surpresa constante para os leitores,
sobretudo quando demonstram uma impressionante versatilidade na prática da
escrita; isto é, quando um escritor não é bom apenas com um gênero ou tipo
textual, ainda que se destaque com um e seja sempre, quando lembrado, lembrado
por ele. Há uma variedade incrível desses nomes, ora porque usam da
diversidade de textos para construir seus experimentos de linguagem até
alcançar a forma que lhe parece adequada, ora porque, tomado pela necessidade
da expressão escritural não hesitam sossegar numa única posição, ainda mais
quando essa necessidade se encontra abalada pelo sopro da impossibilidade de
realizar-se em sua plenitude.
Na cena
literária brasileira, o leitor pode citar facilmente nomes como o de Carlos
Drummond de Andrade que, além de reconhecido pela crítica e pelo público como
uma das melhores vozes da nossa poesia, também se dedicou e muito ao exercício
da crônica. O que pouca gente sabe é que Manuel Bandeira, o poeta, tenha
flertado com muito interesse pela prosa e menos ainda que o poeta de A rosa do povo tenha sido alguém
interessado em não deixar despercebida essa força. É claro que o caso do Bandeira
cronista não é algo que se pareça grande novidade porque, tal como Drummond,
este também deixou alguns textos memoráveis e encontrados com certa facilidade
em meios diversos, inclusive sob a forma de livros. Mas e, ainda nessa verve do
Bandeira prosador, quem terá o privilégio de ler o que escreveu sobre as obras
de seus contemporâneos, as produções cinematográficas que o marcaram ou sobre
quaisquer outros assuntos relacionados com o universo artístico? Pouquíssimos.
Uma parte
desse desconhecimento se dá pelo comodismo da extensa quantidade de leitores
esporádicos de sua obra; aqueles que leem ou leram um ou outro poema do poeta
num livro didático ou na web mas
nunca tiveram a curiosidade em ler sobre outros trabalhos do escritor –
condição geralmente dada ao leitor-pesquisador ou ao leitor interessado em
buscar novos meandros na obra de um autor de seu grande interesse. Mas, há algum
tempo, essa outra face de Manuel Bandeira esteve fora do alcance de quase
todos, porque uma obra fundamental para seu conhecimento esteve ausente dos
catálogos. E, não é apenas o caso de ser uma obra que nos apresenta a outro
Bandeira, mas também a outro Drummond, afinal foi ele o organizador desses
textos; logo, é uma obra que nos coloca em contato com alguém interessado numa
das figuras mais notáveis da poesia de seu tempo e como uma visão editorial marcante desde a pequenina revista modernista que dirigiu em Minas Gerais ao extenso trabalho de disposição de sua obra poética.
Os versos
que dão título a essa reunião de textos – Andorinha,
Andorinha – não foram escolhidos à toa; dialogam com um poema do próprio
Bandeira apresentado como epígrafe da obra e que trata de uma preocupação
latente na poesia do poeta: a dimensão da vida, sua melhor maneira de vivê-la,
sobretudo quando os auspícios da morte se tornam uma constante na sua
existência. Ninguém é mais o mesmo quando recebe um laudo com prazo de validade
sobre a vida; é possível que, mesmo traçando uma maior intensidade sobre as
diversas experiências vividas de então, o sujeito esteja sempre confrontado por
uma profunda melancolia sempre capaz de levá-lo a questionar se tudo é mesmo
isso que se vive ou se poderia ser de outra maneira. O poema “Andorinha” está eivado
dessa condição quando o eu poético se confronta com a possibilidade de ter
levado a vida sem quaisquer propósitos mais significativos, “à toa, à toa”.
E o que faz
Carlos Drummond de Andrade ao reunir a extensa quantidade de textos neste
volume é justamente desconstruir essa imagem desencantada do poeta. Não é uma
resposta definitiva sobre a pergunta “o que é viver bem” ou “o que é ter uma
existência plena”, mas o registro sobre uma via encontrada pelo sujeito Bandeira
sempre confrontado pelo mais intenso sentimento de vivenciar as mais diversas
formas só possíveis de experimentar quando o homem está em contato com a
criatividade dos outros homens. É afinal isto: um diálogo entre o eu si próprio
e entre o eu e o outro, este o eu experienciador das mais diversas forças
criativas projetadas pelo universo do qual participa, o da arte. Ou seja, Andorinha,
Andorinha é o poema de uma vida que não se eximiu buscar os novos sentidos
e, na maneira como o amigo o estruturou um quase diário (mesmo pela datação dos
textos), de alguém que fez da escrita sua melhor companhia de registro sobre essa
busca.
Primeiro é o
próprio Bandeira, a “Andorinha”, ou a imagem que ele tem de si, o que se
apresenta ao leitor. Em “Primeira pessoa do singular”, Drummond reuniu as
crônicas nas quais Bandeira melhor mostrou-se numa exposição cujo interesse não reside
apenas em tornar público a vida privada, mas encontrar nessa maneira de
expor-se uma estratégia de conhecer-se e relacionar-se com o seu entorno, afinal
reside aí uma das funções do que comumente se lê como meros relatos de natureza
autobiográfica. Aí estão as lembranças de uma vida e novamente a constatação
sobre sua limitação, quando na crônica “Minha adolescência”, por exemplo, o
poeta recorda sobre a constatação de tuberculose: “A história de minha
adolescência é a história de minha doença. Adoeci aos dezoito anos quando
estava fazendo o curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica de São
Paulo.”
As seções
seguintes desse catálogo de experiências estão reduzidas a exposições sensíveis
colhidas da relação de Bandeira com a arte: as artes plásticas – Candido
Portinari, Guignard, Oswaldo Goeldi e muitos outros estão citados pela leitura atenta
que faz sobre o trabalho desses artistas ou a reflexão que nasce pela impressão
dos sentidos ante o trabalho deles. Ao chamar Andorinha, Andorinha de catálogo está, por trás do termo, a constatação
de que as exposições aí reunidas dizem respeito a ordenação dos sentidos pelo
fio da memória – afinal não é esta a maior força da arte, a de ser uma provocadora
dos nossos sentidos? A de nos confrontar com experiências do eu ou do outro e a partir de delas reimprimir uma leitura sobre o mundo?
Se na
segunda seção é a visão o que se aguça, na seguinte é a audição. Não é o
Bandeira tocado pelas experiências musicais importadas, embora muitas não deixem
de ser registradas, mas é o interessado em compreender o que hoje são as nossas
matrizes mais marcantes – Villa-Lobos, Mignone, Marcelo Tupinambá – e o registro
sobre alguns dos mais importantes músicos de seu tempo.
Todos os
sentidos encontram-se no teatro, no cinema e na literatura. Aqui, não é apenas
a exposição do que poderíamos chamar de uma lista de preferências do poeta, mas
de formadores de sua experiência literária e intelectual. Ou mesmo a satisfação
das curiosidades alheias: o que lia, o que gostava de ler Manuel Bandeira, por
exemplo. Nesse território de relações parentais está o respeito que ele constrói
pelos autores de seu tempo; registro que não apenas satisfaz essa curiosidade mais
pessoal como o apresenta como leitor ativo e formador de uma opinião crítica acerca
do cenário literário de seu tempo, uma condição que pouco a pouco tem se
tornado escassa entre os da literatura contemporânea, em grande parte
interessados no seu próprio umbigo e no fingimento da leitura dos seus mais
próximos.
E novamente a memória – no seu sentido mais pessoal, porque no fim de
tudo, todos esses registros são peças da memória – recobra os anos de vivência
na Academia Brasileira de Letras que, obedecendo uma sequência lógica na organização
como parece ter sido o interesse de Drummond, poderia se apresentar como uma seção
sucedida à que trata sobre a vida pessoal de Bandeira, e as anotações de situações
jornalísticas, podemos assim denominar, organizadas em várias seções. Por falar
no termo, é notória a verve ou o tom do jornal como traço enformante de muitas
das anotações reunidas em Andorinha, Andorinha,
tanto pela objetividade como se
mostra como pela natureza do registro e, porque, foram publicadas inicialmente nesse
suporte.
Não falta
nesse conjunto de textos, o Bandeira pensador da poesia brasileira; e algumas
das notas aí apresentadas parecem ter sido aproveitadas no rico trabalho de organização
histórica de nossa poesia Apresentação da poesia brasileira. Em
alguns desses momentos é também o Bandeira professoral, o encantado com as
manifestações da poesia popular brasileira, o leitor de Fernando Pessoa, Blaise Cendrars, Dante, António Botto, ou ainda o poeta interessado em extrair do convívio
com essas leituras e situações seu próprio poema.
Não há melhor
exposição sobre Manuel Bandeira que esses textos organizados por Carlos
Drummond de Andrade; eles não apenas contradizem a condição “à toa” sobre a
existência, eles revelam a condição de alguém desassossegado ante a capacidade
de criação humana, revelam alguém cuja natureza do espírito poético transcende
o nível da convivência com a poesia e paira em quaisquer experiências de
natureza estética ou de força existencial comum aos de sua comunidade. Andorinha, Andorinha é um retrato sobre
o homem e o poeta alimentado pela diversidade de expressões com que pode se
assumir a vida. E não foi uma vida medíocre como terá lhe parecido.
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