Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares
Por Pedro Fernandes
Este livro
foi publicado em Portugal em novembro de 2014 e chegou ao Brasil – na casa que
deu a conhecer Gonçalo M. Tavares aos brasileiros – no final do ano seguinte;
na sua terra natal, o livro chegou às livrarias junto a Os velhos também querem viver. As duas obras integram uma já extensa
bibliografia de um dos escritores mais criativos e inventivos da chamada novíssima
geração da literatura portuguesa – recebem esse epígono porque são muito posteriores
ao abril de 1974 e buscam se distanciar de temas, formas e obsessões do romance de então. Basta que o leitor visite o que o português tem chamado de “Cadernos”;
são títulos que integram gênero e formas multifacetadas que rompem com as designações
comuns fundadas pelos estudos literários ou se não reinventam modos e
procedimentos de escritas.
A crítica
mais sisuda terá reparado esse empenho com certa cautela, prefere olhar com
bons olhos o Gonçalo M. Tavares romancista e faz cara feia ao experimentalista,
visto que as obras que se organizariam em torno desse epígono, seriam responsáveis
por borrar o talento criativo do escritor com a narrativa. Ledo engano. É verdade
que, há nesses experimentos textuais – chamemos assim pela ausência de um termo
mais claro – certos deslizes do escritor. Mas, qual não os cometeu? Ou ainda, é
obrigação de que todo experimento tenha um resultado positivo? Não é o trabalho
do escritor contemporâneo, entre um universo de grande vastidão de temas e
formas praticadas por outro vastíssimo coletivo de escritores, buscar
reinventar-se ou fazer sair desse circuito mantido mais ou menos desde o início
do século XIX de que tudo já foi dito e das maneiras mais diversas possíveis?
Em Uma menina está perdida no seu século à
procura do pai, Gonçalo M. Tavares toca em alguns exercícios nascidos
noutros livros e possivelmente inaugura outro dos seus cadernos visto que tema
e forma ganham outras possibilidades que se distanciam dos já publicados –
quando muito mantém aproximações com o caderno “Cidades” inaugurado com o
romance Matteo perdeu o emprego,
visto que uma das situações aí enumeradas, a da deficiência física (que não é o
mote da narrativa), está em sintonia com as deficiências dos indivíduos na
atual sociedade (este, sim, um dos temas do romance).
No livro ora
posto em questão há um contexto de natureza histórica que integra a narrativa
como se uma sombra não de passagem mas contínua, uma travessia silenciosa, de ponta
a ponta; é um sopro porque não está expresso da maneira conforme se apresenta, por exemplo, nos chamados romances históricos; é um contexto sobre o qual os portugueses, nem os das gerações passadas
tampouco os das recentes, não têm muita ligação dada a não participação do seu
país no que foi até o presente um dos maiores conflitos envolvendo os países da
Europa; também pudera: este não é um romance situado em terras de Portugal e nem é um romance sobre a Segunda Guerra Mundial.
Aqui
temos então dois elementos distintivos, característicos da geração a qual
pertence Gonçalo M. Tavares – o de não se guiar necessariamente pela memória do
seu povo e o de recriar ares cuja essência de sua composição está na extensa
bibliografia cunhada sobre o tema ou se não reintegrar o estágio de sombra e
anomia pelo qual passou o povo português nos tempos da ditadura (e pelo qual
passa todo o mundo no atual contexto de crises) para dar cor às lufadas do
tempo recobrado pelo romance. Desse passado, os laivos chegam-nos pela extensa quantidade de referências ao povo judeu, seja na menção aos campos de concentração, na perseguição sofrida antes dos horrores do nazismo, ou mesmo a presença, ainda que só fotográfica, da face da ditadura e as constantes menções ao período da grande guerra.
Nesse ínterim
é preciso admitir que o escritor finda por reinventar também a maneira como o
romance é capaz de renovar determinadas condições históricas sem que para tal
necessite recobrar o presente vivencial ou a memória experiencial sobre o
ocorrido; de certo modo, os rastros desse tempo trabalhado pelo romance são também
uma outra maneira de dizer sobre como certas determinantes históricas atuam
sobre os indivíduos, como é demonstrável, na obsessão de Moebius com a construção
de um hotel que é geograficamente um mapa dos campos de concentração alemães ou
a de se assumir com todas as forças sua identidade ao tatuar nas costas infinitas vezes o termo
“judeu” em quantas línguas sejam possíveis traduzi-lo.
Para o
leitor que buscar uma conclusão para o enigma que o romance coloca desde o
início da narrativa – quem é o pai dessa menina com trissomia 21 encontrada por
Marius vagando numa rua portando um objeto esquisito no bolso do casaco e nas mãos
uma caixa de instruções para educação com crianças como Hanna – ela não está no
final do percurso e pode lhe servir de consolo buscar no desenvolvimento da
extensa quantidade de capítulos, todos breves e marcados por um espírito reflexivo em
torno de uma determinada questão sugerida ora pela busca ora por outras intervenções
que se acumulam no itinerário das duas personagens.
Gonçalo M.
Tavares enseja desfazer a própria compreensão corriqueira que poderia dar forma
ao romance, isto é, desviar-se do sentido aparente produzido pelo enunciado-título
para dizer sobre outra maneira de estar perdido. No fundo esta é uma metáfora –
com a qual a própria narrativa brinca a certa altura – sobre o estado do indivíduo
na contemporaneidade (cf. adiantamos acima), uma vez que a perda aqui não se revela apenas como estar
à procura do outro, mas em não ter os estímulos comuns para o que sentidos têm chamado
de relação eu-mundo, eu-tempo.
Daí que esta
não é uma narrativa sobre a trissomia 21, nem sobre a busca de uma menina pelo
pai – a personagem e a situação são tão-somente meios pelos quais o escritor constrói
as reflexões que constrói, todas de forte poder onírico e nascidas de infiltrações
no tecido da narrativa pelo fantástico e pelo insólito, estes não condições de
uma reinvenção, por assim dizer, da matéria do real mas criações quase
minimalistas de uma realidade não acessível à primeira força dos sentidos. É um
romance sobre a perda do homem no tempo, a letargia dos sentidos do indivíduo
frente a existência, a rapidez com que não digere as vivências e a sua impossibilidade
em se satisfazer com uma plenitude da existência e de expressar essas condições
pelos meandros da visão racionalista, essa que dizem haver modelado a
civilização que somos.
Por isso,
Marius, esse homem fugitivo que para para atender a presença de Hanna, esse
homem ora só personagem ora personagem e narrador, é, a todo tempo, confrontado
com o inusitado, o que escapa à compreensão dos limites comuns do raciocínio e
da lógica, muito embora o tom das reflexões suas e das personagens que
atravessam seu caminho seja fortemente marcado por uma dessas duas naturezas. É
notória a compreensão do romancista sobre essa ideia de perda – marcada em todo
romance ora pela forma em si de perder ora na obsessão das personagens, sempre
em trânsito, pela localização – está atrelada a um desfeitio sobre a nomadismo
humano, ou seja, a perda de uma percepção sobre as coisas e a realidade em si e pela incapacidade de fixar-se sobre determinado ponto ou aspecto da
trajetória e partir dele produzir outra maneira de estar no mundo.
Essa
perspectiva, notemos só mais isso, e já concluímos essas notas sobre o romance,
é visível na própria estrutura da obra: um mapa com pontos que exigem do leitor
paradas, idas e voltas, refinamento dos sentidos, cruzamentos de pontos e
itinerários, qual cruzam-se as linhas de Marius e Hanna e dos dois com as
outras personagens sempre interessadas em reanimar determinadas coordenadas do homem
desse tempo de anomia. Não é um livro para ser lido como se lê comumente qualquer
narrativa; o trabalho de Gonçalo M. Tavares é também o de reinventar a relação
do leitor com a leitura literária. É sempre, como notamos em Short Movies, um exercício constante de readaptação
dos sentidos para um tempo em que tudo parece estar sedimentado ou condicionado
a ser sempre de uma maneira e não de outra.
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