Quatro soldados, de Samir Machado de Machado
Por Pedro
Fernandes
Há muitos
elementos capazes de atrair um apaixonado por livros que não o peso do nome do
autor, isto é, aquele que é conhecido de quase todo mundo ainda que seja por um
ouvir falar e a publicidade em torno da obra, para citar um dos elementos mais
utilizado desde sempre pelo mercado editorial na promoção de determinado
trabalho de um escritor. No meu caso, não é a primeira e nem será a última vez
que volto a falar sobre, há obras que me chegaram pelo acaso quando nas visitas
a bibliotecas – houve um tempo que as frequentei com bastante costume – e nas
visitas às livrarias, naqueles passeios despretensiosos ou cuja pretensão é
unicamente sentir a companhia dos livros, perceber quão maiores do que nós se
tornam quando reunidos em grande grupo ou reconhecer nossa incapacidade ante
esse mundo de tinta e papel que é o nosso e é outro ao mesmo tempo. Foi assim
que encontrei com Quatro soldados, de
Samir Machado de Machado, e toda a narrativa sobre esse encontro não é à toa,
ela tem uma relação com o próprio conteúdo da obra, que se não exploro
totalmente aqui é para que o leitor tenha a curiosidade de lê-la, mas logo compreenderá
sobre qual relação falo.
Antes, deixe
que diga quais elementos foram capazes de fazer com que eu saísse da livraria com
o livro. É evidente que folheei a obra e li algumas passagens – como faço para
quase todos os livros –assim como li os chamados textos de guarda. Mas, não é
isso somente o que preenche os sentidos de um apaixonado por livros. É o objeto
que tem em mãos ou a maneira como o é apresentado. No caso de Quatro soldados, que li em três
sentadas, foi o zelo com o qual o próprio escritor teve no projeto de edição (sim,
Samir não apenas escreveu, mas, ao que parece, deu seu parecer na execução da
ideia elaborada sobre o livro escrito); tamanho zelo que não deixará um leitor
como eu se esquecer de olhar para o livro como um todo todas as vezes que o
tiver em mãos. Foi assim com as três sentadas e agora enquanto escrevo estas notas
diante do livro. Se o trabalho da edição não zelar pela apresentação da obra,
de que maneira irá se desenvolver um afeto do leitor pelo livro? Não digo que o
afeto pelo livro deva estar restrito aos de projeto mais arrojado, mas é uma
espécie de cartão de visitas aos raros leitores de passeios despretensiosos
pelas livrarias ou bibliotecas.
Samir
Machado de Machado apropria-se da forma, dos temas e numa estrutura moderna
constrói um romance que ora se destaca como o texto que não foi escrito – seu enredo
ancora-se no tempo de formação do país – ora integra o imaginário da literatura
brasileira dos escritores do sul, tal como a ficção épica de um Erico
Verissimo. Isto é, alimenta-se da atmosfera cultural e linguística (ainda que
de maneira artificial, é bom que se diga) do tempo a que se refere, mas o
produto, o romance, é um artefato contemporâneo, como se verifica, por exemplo,
na construção do narrador, tornado aqui um ente em suspeita, talvez a maior de
todas as armadilhas costuradas pelo enredo, este ora disperso ora justo (o
leitor se decidirá por essa última condição quando chegar à uma última parte do
livro).
Particularmente,
a maneira como o autor constrói essa categoria e o efeito de sua revelação muito próximo do desfecho do romance – que não
é de um todo surpresa para o leitor mais atento – num claro exercício de
desestabilização da voz que narra como a que está ou fora ou dentro do
acontecido, próxima ou distante do relatado, é a desmistificação de um engodo
motivo das mais diversas discussões no âmbito dos estudos do romance. De toda
maneira, o narrador nem está morto tampouco é entidade ausente da narrativa, ocupe a posição que ocupar, afinal toda história é produto de uma intenção: a de
narrar. E já aqui chamaria a atenção do leitor para o primeiro parágrafo da
primeira parte do livro que esclarece em perfeito estado essa compreensão.
Da narrativa
clássica, o escritor se apropria não apenas da cultura e da linguagem, mas da força
do trabalho de contar uma história baseada na experiência do vivido – este
narrador é um forasteiro saído das páginas das narrativas de viagens – e a
beleza da descrição, que por vezes tem seus deslizes (qual texto não tem) e inunda
parte dos capítulos ou são capítulos do romance. Por falar no exercício de
descrever, produto de certa forma de maior força na história da narrativa, o
leitor encontrará em Quatro soldados uma
memória de forte valor geográfico; o suficiente para convencê-lo a entrar num
universo e levar daí consigo uma verdade
executada pela criatividade do narrador, ainda que o imperativo da ação – é
este todo o poder dessa obra – esteja marcado pela beleza do fabuloso, do
fantástico e do mítico. Não são artifícios da ficção; é que a realidade, essa
forma que julgamos a mais coerente, não teria força alguma sem as infiltrações
do imaginário.
Diria que,
todo leitor haverá de perceber o espaço como categoria de maior relevância, do
mesmo modo que perceberá nas descrições quase minimalistas de certas personagens
os indícios implantados pelo autor no amplo processo de revelação das
personagens. O romancista respira uma atmosfera nebulosa e erige do enredo à
formação dos indivíduos da ação motivações sempre ambíguas como quem se esquiva
querer revelar totalmente algum segredo maior. No fim de tudo saberemos que
mesmo isso não se sustenta porque o que há para se revelar é revelado à medida
que os acontecimentos tomam forma e ganham desfecho, qual numa novela; mesmo
quando o narrador introduz no andamento do relato um ou outro desvio.
Mas, qual o
tempo recuperado por Samir Machado de Machado? Os últimos anos da guerra entre
índios, jesuítas e toda sorte de gente europeia interessada no auriverde da
colônia há poucos séculos encontrada. E os efeitos desse enfrentamento brutal
encontram-se espalhados por toda a narrativa, embora não seja intenção do
narrador se deter nos campos de batalha. Forasteiro com forte inclinação para a
aventura e a leitura de certa literatura barata – afinal, não é de hoje tal moda dos chamados Best-Sellers – é
pelo comezinho, as enrascadas da qual participa ou sobre as quais pode
presenciar através do relato alheio que nutre seu interesse; talvez porque
julgue mais interessante a vida do indivíduo enquanto um campo de batalha o que
predomina é a história do decréscimo de vidas.
É o espírito
livresco do narrador e o apreço que um seu companheiro de aventuras tem pela
literatura, o que faz desse romance uma ode à cultura do livro e a matéria para
alguns dos debates, diria, metaliterários. Penso nas discussões sobre a boa ou
má literatura, sobre livros proibidos e permitidos, sobre o contrabando desses
objetos num tempo de alta censura, na confiabilidade da escrita enquanto campo
de revelação iluminadora do mundo, matéria de aproximação das vidas perdidas na
colônia e as deixadas além-mar, como alguns dos momentos mais interessantes de Quatro soldados.
Aliás, este
é um romance que faz jus ao tempo que recobra não apenas na apropriação da
cultura e da linguagem, mas no espírito enciclopédico do homem iluminista ou
ainda o embate entre esse tipo criado no chamado berço da civilização e
integrado num mundo de quase-treva e habitado pela quase total ignorância do homem.
Este parece ser um dos principais interesses, por exemplo, com essa figura do
Andaluz – sujeito dotado de uma beleza invulgar, a um só tempo admirado, odiado
e temido pelos do vilarejo – sobretudo quando se encontra ante um dos últimos
mistérios da trama: o assassinato de um padre de forte tendência inquisitorial
na sua visita de caça aos pecadores. Aí se expõe claramente esse conflito entre
mentalidades, que é uma das cores que dão forma ao tempo recobrado por este
romance.
O espírito
enciclopédico está na quantidade diversa de referências trazidas para o corpo
da obra – sejam elas literárias, sejam elas relacionadas a elementos aí
dispersos, como o catálogo de formas de armas moldadas pelo
forasteiro espanhol Astérion, por exemplo, e mesmo a quantidade de referentes
históricos trazidos no intervalo da ação romanesca, o terremoto de Lisboa, o
massacre dos índios, as sombras da inquisição na Europa, as primeiras
descobertas científicas sobre a eletricidade, para citar algumas. Ou ainda o
caráter descritivo sobre o qual citei acima. Entre esses artefatos em nome da
verdade do narrado, não é possível deixar de lembrar sobre outra forma
enciclopédica: a de, conforme copiou Borges dos medievalistas, seres fabulosos,
o que coloca este romance entre a chamada literatura erudita e a literatura de
fantasia, ou na melhor das hipóteses, funde uma e outra no intuito de oferecer
ao leitor um novo produto: o ser reptiliano que habita uma mina abandonada depois
do desaparecimento misterioso dos escravos que aí trabalham ou a atuação da
mula sem cabeça, para citar dois dos logo visíveis para o leitor.
Nesse emaranhado
de referências – entre o clássico e o pop –, num visível pastiche dos relatos
de aventura da literatura antiga e das narrativas contemporâneas, tais como as
experimentadas pela literatura barata e os chamados blockbuster no cinema, o que nos fica é a força do espírito inventivo
do escritor contemporâneo, livre e capaz de, num só balde, fazer as mais
diversas misturas e dar ao seu leitor uma peça nova e, para todos os efeitos,
bastante singular na literatura brasileira. Durante toda a obra estive tocado
pela lembrança de Em breve tudo será
mistério e cinza, mas, felizmente, ao contrário de Alberto A. Reis, Samir
Machado de Machado não perdeu tempo com prolongamento da narrativa no intuito de
oferecer um longo e tortuoso trajeto narrativo que talvez nem se sustentasse no
final. O escritor gaúcho preferiu a rapidez e o derramamento quase contínuo de
sangue e horror no instante em que a história poderia tomar um rumo maçante.
Não que o texto de A. Reis seja, mas Quatro
soldados quis fazer valer a força da ação – não a do espírito investigativo – e ganha
com isso. No fim, ainda nos reafirma que a história do homem (e a do nosso país,
agora lida com vã ideia e com a memória fraca de que este não tem uma história
forte o suficiente que o sustente ou ainda que as coisas aqui sempre são como
são por certo espírito passivo e permissivo, o que não é bem assim) é uma
extensa linha de horrores. Eles estão em toda parte e em todas as situações,
mesmo quando não referidos diretamente. Mas, não é só isso. Quatro soldados é um romance modelado por uma forte força imaginativa, o que o coloca entre os títulos mais marcantes da literatura no Brasil de agora.
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