Maria do Monte: o romance inédito de Jorge Amado, de Carlos Emílio Corrêa Lima
Por Pedro
Fernandes
Escrever é
multiplicar o sentido das coisas. Desestabilizar fronteiras: fazer o real
aparente e o aparente real enquanto o mundo manifestado pela linguagem não é
mais nem real nem aparente mas outro mundo, o reino da palavra. Esse é o
sentido primordial da poética; a premissa não subvertida da mimesis aristotélica. O criador de
formas tem entre o mundo por ele habitado e o mundo sempre selvagem da
imaginação seu lugar de périplo. E, mede-se sempre o valor de sua criação pela
maneira ciente com que desconstrói aquilo que foi condicionado como algo
estabelecido e única forma de ser.
É evidente
que essas considerações não se referem à maior parte das criações literárias,
sobretudo, as designadas como prosa. A necessidade da verdade do narrado impôs
ao romancista, por exemplo, um afastamento do tom às vezes fantasioso ou
fantástico, para uma aproximação com a realidade vivida de maneira que o
romance terá se convertido quase na sua fotografia, por vezes minimalista, por vezes histórica ou documental. Esse processo, evidentemente, não é restrito
a um tempo e nem pode ser determinado em qual momento da história da literatura nasceu, afinal, nesse campo lidamos com a transformação própria do pensamento
e este, todos sabem, não é marcado por presenças fixas.
Mas, terá
sido na ocasião quando dizer a realidade não pode se confundir com o desenho meticuloso
do visível – tal como numa pintura de traço naturalista – que o texto literário
ganhou outra grafia ou, para ser mais claro, fez um retorno aquilo que o
distingue em parte do exercício retórico. Na literatura brasileira, os exemplos
são poucos. Se o leitor tiver acompanhando com atenção esse raciocínio já terá em mente pelo menos três nomes que poderíamos incluir nesse rol de inventivos: um
é o Guimarães Rosa (Grande sertão:
veredas), outro é o Euclides da
Cunha (Os sertões) e o terceiro é Mário de Andrade (Macunaíma).
A essa
tradição, quase nenhum outro escritor da nossa literatura terá acompanhado. E é
difícil dizer, num texto cujo propósito não é fazer uma investigação sobre o caso,
por que razão esse cordão não terá, cada vez mais, ganhado forma. Difícil mas
não impossível de acreditar, ao menos sem maiores compromissos, que uma
das razões se dá pela acusação por vezes vulgar de herméticos; estereótipo que, cunhado de forma diversa
pela crítica e pela mídia, terão dado a esses escritores um afastamento do
público leitor. Numa sociedade como a nossa, construída por índices alarmantes
de analfabetismo funcional, essa ameaça é quase sinônima de isolamento e, logo,
marginalização da obra e do escritor.
É verdade que, guiados pelo estereótipo do
hermetismo, sempre houve alguns pretensos escritores que nunca terão deixado de alinhavar enredos
cuja natureza prima pela não-fluência da linguagem em detrimento de uma
construção literária somente para poucos agraciados e no final o que cometem
são textos de valia estética duvidosa e não receptiva ou de fato comprometida
com essa posição inaugural do gesto poético: a criação.
Outra, o grupo que aqui interessa, se filia a esse pequeno reduto de uma linha importantíssima para a
literatura não só brasileira mas a produzida nos países da América Latina –
onde se pode ler outros nomes, estes sim, muito bem reconhecidos fora de seus
estados de origem – reanimam essa tour de force de desapropriação da língua de suas trivialidades e elaboração de uma
obra que exige e muito do seu leitor não porque querer o hermetismo (e este nem é um termo adequado) mas porque primam por uma oxigenação dos modelos aí vigentes. É nesse pequeno grupo onde é permitido
inserir o Carlos Emílio de Maria do
Monte: o romance inédito de Jorge Amado, romance nascido de um conto,
detalhe marcado aqui, tanto porque seu autor fez questão de explicar a natureza
que deu origem ao seu texto com o gesto de apresentar ao leitor o referido texto que o impulsionou a
ordem assumida pela obra.
Ao trazer a escrita-matriz do romance no final, o romancista incorpora a visão de que não há narrativa, no atual contexto, produzida ao acaso e sim produto de um extenso trabalho de criação e lapidação da linguagem. Conclusão nascida entre a leitura do romance de Carlos Emílio e de outro romance, este do António Lobo Antunes, Não entres tão depressa nessa noite escura; lembro que o escritor português também incita seu leitor nessa mesma direção quando conclui o romance com o que pode ter sido seu ponto de partida: uma crônica. Outra condição nascida dessa e sobre a qual os dois escritores têm plena e coerente convicção é a interseção de gêneros, destituindo-os das determinações baseadas no isolamento e fechamento pela compreensão de que produtos de linguagem, e essa tem sua manifestação volátil, não são produtos acabados ou modelos estanqueis. Isto é, não se trata bem de uma destituição, trata-se de uma restituição à natureza inacabada do texto e sua diversidade de relações mantidas com outros do ponto de vista formal, estético, temático etc.
Além de
Guimarães Rosa e de Euclides da Cunha, para pensar o contexto do romance brasileiro, o contato com este romance de Carlos Emílio logo lembrará
no leitor (claro, se tiver lido) nomes com Luiz Sérgio Metz (Assim na terra) e R. Roldan-Roldan (Litterata ou o doce sorriso do macho
satisfeito) – não pelo aspecto metaficcional dos dois mas pela qualidade como reinventa o idioma (numa
relação entre prosas, o primeiro mais que o segundo); nesse mesmo grupo é
possível anotar Paulo Leminski (Catatau)
e Hilda Hilst (toda a prosa). Essas considerações não tomam o trabalho integral
de Carlos Emílio, porque autor de outras importantes obras, certamente, e este Maria do Monte traz outras perquirições com o material narrativo que o coloca em relevo entre os títulos citados.
Uma delas, reside na maneira como esse
escritor se exercita no território da criação: a linguagem do romance ora lido se deixa contaminar de maneira muito sadia (porque é a própria efervescência do tema que o sustenta o que transpira pelos polos da palavra) por uma exuberância de toque tropical, um ritmo caudaloso capaz de inundar os sentidos do leitor, que são únicos e deixará qualquer aproximação com outra obra cair no torvelinho das especulações gratuitas. Sua obra, ainda pela força criativa
que se assume, é uma confirmação de que essa linha da nossa literatura não
padeceu com os nomes aqui citados; ela ainda se mantém viva, ativa, e do que precisa é seu reconhecimento como um trabalho fundamental, porque a literatura não pode deixar de cumprir uma violência contra
a língua, porque é uma das suas funções, tal como recorda Umberto Eco, oxigená-la, fazê-la forma viva e não mero produto de uso.
Se o
exercício não-gratuito com a linguagem é aquilo que o leitor primeiro avista
como o de melhor na composição de Maria
do Monte, há os artifícios textuais, como a apropriação de outras
narrativas, e o tom genesíaco que reintegra o literário com os aspectos míticos
que finda por selar de vez esse trabalho de Carlos Emílio como um dos mais
interessantes da cena contemporânea brasileira. Os verdadeiros leitores estarão
bem-acompanhados com essas páginas que é um puro retorno ao estado de êxtase
com a palavra porque o modo de dizer de Carlos Emílio é de integrar a linguagem
ao seu estado mais denso: o de imagem.
O leitor
comum certamente procurará uma linha narrativa segura pela qual possa se fiar,
mas ela não existe. O que existe são lapsos que produzem uma série de
perquirições da narradora, Maria do Monte, a que reconstrói uma história
possível mas não-criada (ao menos no sentido real sugerido pelo título) pelo
autor de Capitães da areia. Carlos
Emílio finda por se aproximar do livro inexistente de Borges, inexistente no
sentido do objeto, o que não afasta esse romance de ser também um exercício
sobre o próprio romance.
É óbvio que
entre a reflexão que poderia reduzir Maria
do Monte apenas a um livro sobre um livro que não existiu, o romancista
elabora toda uma trama que não se refere somente sua posição de autor no
trabalho de reelaboração de um livro-possível mas também do próprio Jorge Amado,
o autor, de fato, desse não-livro ou livro que se perdeu carregado por toda a
diversidade de personagens e recriado de maneira oral ou imaginária, como se
num retorno às engrenagens que poderiam ter lhe servido à composição da obra
possível. Maria Monte, a que faz as vezes do autor, é o próprio Carlos Emílio,
mas Carlos Emílio não é Maria Monte. Essa condição, obviamente, é a responsável
pela construção de uma narrativa que exige do leitor o um trabalho de recriação
palavra a palavra das possibilidades do narrado.
Ao citar
Jorge Luis Borges, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e Mário de Andrade, esta leitura busca
integrar o nome de Carlos Emílio no rol dos escritores do chamado realismo
fantástico, estética a qual terão vinculado apenas como uma vertente da
literatura da América de língua espanhola, mas se esquecem sempre dos nossos
que, se não praticaram-na abertamente, tal como Emílio, se assumem de maneira
muito legítima como seus precursores: Rosa com o seu sertão forma em toda parte, Cunha com seu encantamento pela força da natureza e a descrição de suas
formas de maneira tal como percorre o fluxo da narrativa de Maria do Monte e Mário de Andrade por toda força inventiva na construção de uma epopeia genuinamente brasileira.
No mesmo
instante requer reencontrar com a obra de Jorge Amado através de outro prisma
que não o do realismo social ao qual sempre esteve associado pela crítica. Isto
é, não seria este texto do escritor cearense uma maneira de reinventar também
certa face já gasta de um dos nossos maiores ficcionistas? E se visitarmos um
dos romances de Jorge Amado considerado uma das obras de maior cunho social, Capitães da areia, não poderíamos chegar a uma resposta para essa
inquietação que subjaz o texto de Carlos Emílio? Basta o correr do romance para
que possamos perceber que o herói criado por Jorge é totalmente clivado, no
sentido de atravessado, pelos liames de seu espaço, carregando consigo,
inclusive, no seu próprio signo de identidade, o nome, as marcas do que o fará
o líder-condutor do grupo de marginalizados. Nos referimos à alcunha “Bala”
advinda do fato de ter sido o seu pai assassinado, fator que desencadeia na
personagem seus próprios rumos na diegese.
A “bala” que ele carrega no nome é um termo-símbolo que estabelecerá a ligação
entre suas ações e as do pai, mas, é esse termo também o que o confunde com a Salvador, cidade emulada
pelo narrador como uma transfiguração da cidade histórica a que primeiro se
refere o escritor.
Carlos
Emílio ao desenhar sua figura principal, Maria do Monte, funde igualmente sua
personagem com espaço, e ora não é mais a puta, mas a própria Bahia de Jorge
Amado, composta da mesma força tropical que emana da terra. E talvez o mais
interessante de considerar nessa construção é como a temática de cariz social
geralmente negada pela crítica do romance fantástico se manifesta de forma
atravessada no romance. Essa mulata, de corpo cobiçado e menos ilhado do mundo,
é a Bahia ou não, aquela cobiçada de quando do período de exploração colonial
do país? É ou não a mulher sob o jugo da força masculina e um adendo para se
refletir sobre a violação do corpo?
Maria do Monte é uma narrativa em que o fenômeno
da linguagem se impõe como síntese-simbólica do mundo; ela é desdobrada numa dinâmica
de ritmos e sensações, mas não estará livre
dessa determinante sócio-histórica, por mais que o escritor lapide da maneira
como lapida Carlos Emílio a palavra. Nessa caudalosa corredeira de impressões,
este é um romance que incursiona pelo espaço mítico de suas próprias raízes e o
reanima através da expressão lúdico-sensorial da existência; a narrativa
fantástica bebe em simultâneo da própria realidade e da força da poesia. E ambas
são compostas de matérias muito semelhantes, afinal, o imaginário ou o poético
alimenta a realidade mais comezinha e vice-versa. Pela maneira como engendra a
palavra e a linguagem, este romance, mira contra a conveniência das formas e
reimprime o ar encantatório de uma realidade que desde a consolidação do pensamento
racional se tornou amorfa e destituída dos extensos labirintos animados pela
força imaginativa.
A narrativa
de Maria do Monte tem um tom genesíaco
de fundação do mundo, de fundação de um livro, aqui uma e outra coisa as mesmas.
Carlos Emílio lapida palavras como quem quer emoldurá-las como símbolo do que
nos tem a dizer; e o que nos tem a dizer é que a realidade não é apenas essa
camada complexa mas condensada como forma simples, há entre os fios que a
constitui outras proezas, outras forças e é matéria da literatura revelá-las – eis um dos textos mais
potentes da nossa literatura brasileira recente.
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