Charles Perrault: o lado secreto e obscuro dos contos infantis
Charles Perrault por Lallemant Philippe (detalhe) |
Nascemos
acreditando que a Chapeuzinho vermelho foi salva por um caçador de ser devorada
pelo logo, mas há uma versão sobre o destino da popular menina dos contos
infantis anterior que nossa geração não conheceu (leia no fim deste texto). Nela, na versão anterior
escrita pelo francês Charles Perrault, a pobre menina termina devorada pelo
lodo sem outro desfecho.
Charles
Perrault nasceu em 12 de janeiro em 1628. É o autor da versão original de
muitos contos populares que a posteridade (e em muitos casos por culta de Walt
Disney) tratou de adoçá-los. “Chapeuzinho
vermelho” não é o único caso.
Tomemos, por
exemplo, “Cinderela”. A versão popularizada da história pelos estúdios Disney fez
feliz a humilde donzela que, pese o desprezo e maltrato sofrido por parte de
suas meias-irmãs, terminava eleita pelo bonito príncipe para casar-se com ela.
Se na
animação as meias-irmãs da Cinderela simplesmente são castigadas por sua
inveja, como na versão de Charles Perrault, a recompensa recebida é muito mais
dura segundo o relato dos irmãos Grimm: durante o casamento entre a Cinderela e
o príncipe, as meias-irmãs são atacadas pelos pombos mágicos que ajudavam a
Cinderela, e recebem tantas bicadas nos olhos que caem cegas.
Além de
escrever contos mais cruéis que o transcendeu, Perrault, filho de uma família
burguesa da França do século XVII, foi um dos primeiros a incluir uma moral em suas
histórias. Desta forma outorgava um valor ético aos contos para que as crianças
recebessem um ensinamento pedagógico para a vida.
Perrault também
escreveu outros como “O pequeno polegar”, “A bela adormecida”, “O gato de botas”
e “Pele de asno”, embora não se possa atribuir-lhe a criação original das
histórias. A maioria dos contos foram copiados – tal como fizeram os irmãos
Grimm – de histórias orais transmitidas entre várias gerações; o que Perrault
fez foi transformá-las em literatura, um processo levado adiante pelos
linguistas alemães séculos depois e fortemente influenciado pelo trabalho de
Jean La Fontaine.
O trabalho
com os registros dos contos se deu, quando já idoso, perdeu as funções de
secretário no reinado de Luís XIV. Terá levado dois anos na compilação das
histórias que publicou com o título de Contos
da mamãe gansa ou histórias do tempo antigo com moralidades; esse título
sofreu mudanças ao longo do tempo – apareceu ora como Contos da cegonha ora como Contos
da mamãe gansa, a versão que chegou até nós. Publicado pela primeira vez em
1697, a obra não teve sua licença requerida por Charles (essa é uma história
até hoje não conhecida) e sim em nome do filho caçula, então com dezessete
anos, Pierre Perrault d’Armancour.
No prefácio
de uma das edições francesas da obra, Michel Tournier evoca a formação clássica
que Perrault inseriu para dar forma à sua enquanto peça literária; cita um
prefácio do próprio escritor francês no qual esboça distinções fundamentais
para a compreensão do gênero que praticou – e logo para uma história das
chamadas narrativas curtas.
Segundo Tournier, Perrault evoca as fábulas gregas
e latinas para justificar o uso do que chamou de “moral da história” para os
textos aí publicados e reforça o caráter “real” das obras elastecendo o
conceito de verossimilhança, além de reorganizar as definições sobre o conto, a
novela e a fábula, atribuindo ao primeiro “o que nossos avós inventaram para
suas crianças”, dotado de “instruções ocultas”, o segundo pela forte presença
do elemento “verossimilhante” e o terceiro como texto dotado duma moral. Essas noções
– o leitor há de reparar – são válidas até hoje no âmbito das discussões
literárias sobre as formas narrativas.
Além dos
contos – erroneamente chamados mais tarde de contos de fadas – o francês também
publicou poemas como o longo texto de enaltecimento a Luís, o Grande (O século de Luís, o grande); na Academia
Francesa de Letras foi um dos defensores do chamado progressismo literário que
defendia a necessidade de os escritores dedicarem-se mais ao universo da
própria literatura produzida em França e o não-reconhecimento da superioridade
clássica da antiguidade greco-romana. Desse
trabalho resultou um volume de textos sobre os franceses ilustres, espécie de
enciclopédia, que resultou um e outro, em material para ordem do esquecimento.
O que melhor lhe eternizou – tantos séculos depois é reconhecidamente o pai da
fábula – foram as histórias organizadas com as morais registradas em modos de
mote, em verso.
***
Ilustração de Alfredo Caceres |
Chapeuzinho vermelho
Era uma vez uma menininha do campo, a mais bonita que já se tinha podido ver; sua mãe era louca por ela, e a avó, mais louca ainda. Essa boa senhora tinha mandado fazer para a menina um chapeuzinho vermelho que lhe caía tão bem que, por toda parte, só a chamavam de Chapeuzinho Vermelho.
Um dia sua mãe, tendo feito uns bolinhos, disse a ela:
– Vai ver como está passando a sua avó, pois me disseram que ela estava doente; leve para ela um desses bolinhos e esse pote com um pouco de manteiga.
Chapeuzinho Vermelho saiu imediatamente para ir à casa da avó, que morava num outro lugarejo. Ao passar por um matagal, ela encontrou o lobo mau, que teve muita vontade de comê-la, porém não se atreveu, por causa de alguns lenhadores que estavam na floresta. Ele lhe perguntou aonde ela estava indo; a pobre menina, que não sabia como é perigoso parar e dar atenção a um lobo respondeu:
– Vou visitar a minha avó e levar para ela um bolinho e um pote de manteiga que minha mãe mandou.
– Ela mora muito longe? – perguntou o lobo.
– Ah, é longe, sim – disse Chapeuzinho Vermelho. – É depois daquele moinho que se avista bem lá embaixo, na primeira casa da aldeia.
– Ah, sabe – disse o lobo –, eu também quero ir visitá-la; então eu por este caminho e você vai por aquele, e vamos ver qual de nós dois chegará primeiro.
O lobo começou a correr o máximo que pôde pelo caminho mais curto, enquanto a menina seguia pelo caminho mais longo e se distraía pegando avelãs, correndo atrás de borboletas, fazendo buquês com as florezinhas que achava.
O lobo não demorou muito a chegar na casa da avó; ele bateu na porta: toc, toc.
– Quem é?
– É a sua neta Chapeuzinho Vermelho – disse o lobo, disfarçando a voz –, vim trazer um bolinho e um pote de manteiga que a minha mãe mandou para a senhora.
A boa avó que estava na cama porque se sentia um pouco mal, gritou de lá:
– É só puxar o pino que a tramela roda.
O lobo puxou o pino, a porta logo se abriu e ele se jogou sobre a bondosa mulher, devorando-a num instante, porque havia mais de três que não comia nada. Em seguida, fechou a porta e foi se deitar na cama da vovó, para esperar por Chapeuzinho Vermelho, que algum tempo depois bateu na porta. Toc, toc.
– Quem é?
Ao ouvir a voz muito grossa do lobo, Chapeuzinho Vermelho primeiro sentiu medo, mas, acreditando que fosse a avó gripada, respondeu:
– É a sua neta Chapeuzinho Vermelho. Vim trazer um bolinho e um pote de manteiga que a minha mãe mandou para a senhora.
O lobo, afinando um pouco a voz, gritou de lá:
– É só puxar o pino que a tramela roda.
Chapeuzinho Vermelho puxou o pino e a porta logo se abriu.
Ao vê-la entrar, o logo lhe disse, se escondendo na cama, bem embaixo da coberta:
– Ponha o bolo e o pote de manteiga na arca onde fica o pão e venha se deitar comigo.
Chapeuzinho Vermelho tira a roupa e vai se esticar na cama, onde leva um susto tremendo ao notar a aparência de sua avó, vestindo um penhoar. Diz para ela:
– Que braços grandes você tem, vovó!
– É para te abraçar melhor, minha filha.
– Que pernas grandes você tem, vovó!
– É para correr melhor, minha filha.
– Que orelhas grandes você tem, vovó!
– É para escutar melhor, minha filha.
– Que olhos grandes você tem, vovó!
– É para enxergar melhor, minha filha.
– Que dentes grandes você tem, vovó!
– São para te comer.
E, dizendo essas palavras, o lobo amu se atirou sobre Chapeuzinho Vermelho e a comeu.
MORAL
Aqui se vê que os inocentes
Sobretudo se são mocinhas
Bonitas, atraentes, meiguinhas,
Fazem mal em ouvir todo tipo de gente.
E não é coisa tão estranha
Que o lobo como as que ele apanha.
Digo o lobo porque nem todos
São da mesma variedade;
Há uns de grande urbanidade,
Sem grita ou raiva, e de bons modos,
Que, complacentes e domados,
Seguem as jovens senhorinhas
Até nas suas casas e até nas ruinhas;
Mas todos sabem que esses lobos tão bondosos
De todos eles são os mais perigosos.
* Tradução de Leonardo Fróes.
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