As sufragistas, de Sara Gavron
Por Pedro Fernandes
“Não se
nasce mulher torna-se mulher”. A frase de Simone de Beauvoir casou, entre
desavisados e machistas, uma celeuma de proporções vergonhosas nas redes
sociais quando apareceu num excerto de uma das questões do Exame Nacional do
Ensino Médio no Brasil. As opiniões desse grupo nenhum pouco discutíveis porque
execráveis é um sinal de que a história ainda é recente e certas lutas ainda não
foram de um todo vencidas (possivelmente nunca serão porque estamos muito longe
de uma civilização ideal e há outras pautas em favor do bem-estar coletivo que
sofrem diariamente golpes de retrocesso); certos direitos ainda estão na cartilha
dos desafios constante para muitos. Mesmo o embate iniciado em eventos como o
desse grupo de mulheres operárias que comandam um levante na puritana
Inglaterra de início do século XX. Os discursos rasos contra o excerto de O segundo sexo na prova do Enem e os
xingamentos públicos voltados para o desmerecimento não da incompetência política
mas da figura feminina devotados à presidenta da república (para citar outro exemplo constante) são expressões claras
de que essa mazela de sobreposição do homem sobre a mulher permanece em plena
atividade. Daí que o apelo recente da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi
Adichie não é um disparate; é uma necessidade. “Sejamos todos feministas”.
Sara Gavron produziu
então o filme certo, na ocasião certa. Esse debate não é brasileiro; ele é universal. E As
sufragistas é uma produção recomendável nesse contexto, sobretudo para aqueles que
disseminam diariamente certos barbarismos – sem o conhecimento da história e porque em grande parte vivem numa situação
social confortável quando o assunto em questão é gênero. Para os radicais desse grupo, é lógico que qualquer amostra, por
mais impactante que seja, não irá abalá-los de sua posição errada de que às
mulheres só servem a casa e os filhos. E para o desandar do projeto humano essa é uma prática corriqueira espalhada em contextos diversos, da religião à educação; estes são os que, num contexto a que se
refere o filme de Gavron, assistem calados o massacre diário contra mulheres
(recordo aqui a triste e impactante cena em que as mulheres depois de ouvir um
não do rei George – as mulheres não têm direito ao voto – são massacradas com
toda força e petulância pela polícia).
A luta pelo direito
das mulheres nas escolhas políticas foi uma das primeiras causas do ativismo
feminista. E é sobre isso o filme de Sara Gavron – que pela fidelidade ao
material histórico demonstrado inclusive, no desfecho da trama, pela fusão
entre o texto ficcional e o registro da história – se configura numa recriação documental
do nascimento dessa luta na Inglaterra do início do século XIX. No desenvolvimento
da trama, a diretora explora com primor a atmosfera efervescente do movimento e
da organização política das mulheres: estavam motivadas pelas reivindicações
que deram forma às primeiras conquistas dos trabalhadores, pela necessidade de
se unirem politicamente em torno de romper com o círculo vicioso de submissão ao
jugo dos homens e porque só com discursos a luta estava fadada ao fracasso. Nesse solo, Sara demonstra que o anseio já era compartilhado
de certa maneira entre algumas mulheres que haviam alcançado certo cargo social
de importância para época e, claro, apesar dos homens sempre tratar os assuntos
pela divisão entre sexos, no grupo dessas mulheres (assim como nas lutas
históricas do movimento feminista) a presença masculina nunca foi negada.
É quando as
mulheres vão às ruas, e a União Social e Política das Mulheres, fundada por
Emmeline Pankhurst (vivida brilhantemente numa aparição de Meryil Streep), nas
detenções, perseguições e morte de uma manifestante, a primeira mártir do
movimento num episódio que marcou a história no mundo inteiro, que se concentra
As sufragistas. A diretora, na
obsessão pela fidedignidade ao vasto material disponível sobre o momento, não deixa
escapar nenhum elemento; e, claro, está interessada em reanimar esse passado a
fim não apenas de reconhecer sua importância para as conquistas alcançadas
pelas mulheres mas velar pela extensa pauta ainda recorrente quando o assunto é
equidade de direitos entre cidadãos. Isto é, não dá para ler essa produção
apenas com o mérito do documento histórico – é preciso vê-lo como um artefato
cultural de intervenção política na atual conjuntura social. Isto é, tem vez a
ideia de lembrar o passado como maneira de esclarecimento do presente e continuidade
de determinadas revoluções. Assim como o aparente simples movimento das operárias
britânicas significou (e em alguns casos ainda significa) um levante entre as
mulheres de toda parte.
Olhando sobre
outras questões – tais como figurino, fotografia, trilha sonora – este é um
filme merecedor de estar entre os melhores de sempre. Não há nada arrojado, mas
dirigido com primor e uma precisão de detalhes a não dever nenhuma produção de grande impacto.
Sara Gavron nos convence disso por essa construção tão bem ajustada; e a maneira como nos conta esse momento importante da história, nos seduz pela ideia de
estar ao lado dessas mulheres – seja porque elas têm convicção e creem pelo que
lutam, seja porque os dramas pessoais são talvez mais caros que qualquer luta.
É um filme que só reforça a ideia do quanto sempre tudo foi (e é) fácil para os
homens num mundo pensado e talhado à sua imagem, semelhança e dominança.
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