A garota dinamarquesa, de Tom Hooper

Por Pedro Fernandes



Há algum tempo, numa das notas sobre filmes, escrevi uma observação um tanto óbvia até mesmo para espectadores comuns como eu que o melhor ator não é aquele que falseia o visual entre o truque de ganhar ou perder peso, como tem sido moda corrente, para citar um exemplo, mas abandona o que há de pessoal e torna existente o ser ficcional.

Das produções mais recentes, de algumas que consigo me reportar agora, fiquei com essa impressão depois de ver O discurso do rei, O jogo da imitação, A travessia e A garota dinamarquesa. Neste último, o motivo dessas notas, Eddie Redmayne, que já havia demonstrado ter o talento natural de se camuflar noutras figuras em A teoria de tudo, outro título que é possível de acrescentar entre esses poucos que a memória me traz nesta ocasião, incorpora outra figura histórica, a da dinamarquesa Lili Elbe, que nasceu Einar Wegener, e que foi uma das primeiras na história médica a submeter-se a uma cirurgia para correção de sexo. Foi como Einar que se tornou uma figura importante para as artes plásticas no seu país.

A obsessão por alguma figura da história possivelmente colocada à margem porque rompe com os medíocres padrões de normalidade cunhados pela sociedade parece avultar como uma marca indelével na produção cinematográfica de Tom Hooper, o diretor de A garota dinamarquesa; o trabalho anterior foi o já citado O discurso do rei, narrativa que concentra sua atenção no rei George VI da Inglaterra, figura que, apesar de ocupar o posto que ocupa tem de lidar com sérias dificuldades de fala. O que fica para o espectador – e estou pensando entre os dois filmes – é a necessidade do cineasta em sublinhar o que é apresentado como falha em sujeitos que essa mesma sociedade medíocre os tem como perfeitos. Einar não é apenas um pintor; é um renomado pintor que, de uma hora para outra, enquanto faz as vezes de modelo feminina para sua companheira, é tomado pelo desejo de sempre em ser Lili Elbe.

A maneira como essa afirmação de identidade é construída pela narrativa de A garota dinamarquesa – que não existiria como tal se não fosse o trabalho de Redmayne – está ainda noutros detalhes, sobretudo, na sensibilidade como tudo é abordado; sem o traço caricatural, sem romantismos, sem excesso de drama ou trágico. Isto é, está no equilíbrio dos tons, para usar de uma metáfora cuja base está no terreno da pintura.

Aliás, é a pintura que desenvolve não apenas o papel figurativo de ser a profissão e o universo habitado por Lili Elbe, mas o itinerário pelo qual Hooper encontra para dar forma ao filme. Isso fica muito evidente quando Gerda, a companheira de Einar (os dois se conhecem na Academia Real Dinamarquesa de Artes em Copenhagen e se casam em 1924), cada vez mais envolvida no jogo erótico criado pelo companheiro, resolve dar forma pela pintura da imagem dessa Lili até então vista por ela apenas como uma personagem criada pela sensível imaginação do companheiro. É a criação de Lili pela pintura que, progressivamente revela o talento sempre subestimado de Gerda, e dá ganas a Einar a assumir sua verdadeira identidade num exercício que, primeiro se mostra como uma obsessão dos dois ou a intervenção na vida real de mundos imaginados, e depois é revelado não como ficção mas realidade.

A maneira única como Redmayne protagoniza essa transformação e a estratégia de abordagem sobre o tema desenhada por Hooper são dois elementos fundamentais para dizer que esta é uma das produções mais belas do cinema estadunidense em 2016. Claro, é um filme que zela por um epígono tornado moda em trabalhos dessa natureza: uma certa assepsia fotográfica (o mesmo visível em Brooklin, mas esta é já outra história citada aqui apenas por ser um dos filmes de 2016 que lidam com um material de época) que apesar de ser responsável por uma beleza plástica dá ao filme um falsete e de certa maneira atinge a exímia maneira de se portar dos atores em cena.

Há ainda um excesso de intervenção da trilha sonora como se o diretor lutasse por uma dinâmica das cenas ou quisesse guiar as emoções do espectador – o que é desnecessário numa história que se sustenta sozinha e ganha fôlego quando incorporada pelos atores. Mas nem a assepsia da fotografia, nem os exageros do som são responsáveis por manchar a riqueza e a sensibilidade da narrativa. Novamente se prova que, antes de qualquer artifício, é a maneira como se conta a história o que ainda prevalece em qualquer produção cinematográfica.


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