Óxido, de Gastão Cruz (Parte I)
Por Pedro Belo Clara
O último
livro publicado pelo poeta, crítico e encenador algarvio, só pelo nome que
ostenta, remeterá o seu leitor para o imaginário das coisas que se permitem
degradar pela acção do tempo. E não parecerá falsa a impressão que deixa como
sobejo da prova.
O metal que
oxida é um metal antigo, desgastado, corroído, quiçá abandonado sem que para
ele um uso surja. Não se estranha, portanto, que aos lábios essa substância
traga um travo de acre teor, natural numa maturação de avesso, isto é, num
processo onde não são os açúcares a atingirem a sua plenitude, antes um
esvaziar desses elementos da equação pensada.
Esse metal
surge como metáfora habilmente colocada entre poemas de modo nem sempre
visível, mas indubitavelmente presente. Quererá isto dizer que Óxido é um livro
de poemas amargurados? Bom, cada leitor formulará o seu parecer se a isso se
propuser, mas, salvaguardando o bom senso e uma via de apreciação isenta de
meras especulações, há que dizer que a obra jamais se poderá reduzir a um só
julgamento. Ou seja, de boamente não se poderá aceitar como única totalidade
uma parte que apenas o é; queremos dizer: um pedaço que somente é fragmento de
algo maior. Identificaremos esse sentimento mais amargo em certos poemas? Certamente.
Mas não de modo exclusivo. A melancolia, por exemplo, tem igualmente o seu
merecido lugar, não fosse a obra, em certos momentos, um puro exercício de
passado reevocado.
O estilo
poético é em grande parte homogéneo. Passamos a elucidar: poemas de razoável
brevidade em que a rima escasseia, tal como a pontuação (embora tais ausências
não sejam exclusivas), e os versos, por diversas ocasiões de considerável
extensão, repartem-se de modo irregular pelas estrofes que compõem, dando ao
leitor um ritmo de leitura fragmentado e até pouco harmónico, mas também não
poderemos afirmar que essa não tenha sido uma vertente pensada pelo próprio
autor. É verdade que, ao contrário do habitual, os estilos não se mantêm por
toda a obra. Apesar da oscilação, que existe apenas por cada poema exigir o seu
próprio trato, a generalidade que se constata revê-se nas características antes
descritas.
A obra
encontra-se dividida por quatro capítulos, sem que grande força temática, no
sentido de unidade, assista no render de um pelo outro. Temos, assim, pela
frente uma vasta oferta poética que somente num fundo sentido consegue a sua
interligação.
O capítulo
de abertura ostenta o curioso nome de ENSAIO GERAL. Será expectável que mentes
de natureza indagadora de pronto se lancem na busca de sentidos ocultos ou
recursos estilísticos por decifrar. Na verdade, satisfazendo tal apetite, o
poema inicial, “Até tornar-se fogo”, lança a primeira pista.
É um poema
que se extrapola da realidade do quotidiano para o campo das considerações e
das indagações que lega ao seu leitor, captando o mundo como o teatro que é, ou
melhor, como um conjunto de tentativas de aprimoramento. Assim a vida: um
ensaio, não a “peça” propriamente dita, somente um torpe ensaio – sem que
ninguém saiba bem de quê:
As
carruagens cheias como praças
que se movem
à luz geral do ensaio
repetem dia
a dia a mesma viagem:
(…)
mas a
humanidade para onde parte?
E o dito ensaio? Zelosamente
repetido, terá um fim? De facto, idealiza-se no poema um consumir derradeiro,
um fogo capaz de tornar em cinza tanto o palco como cada personagem, ainda que
distante estejamos, pela visão do poeta, de tal dia. Até lá, essa luz que
fulmina há de a muitos entregar um fim antes mesmo do derradeiro dos fins. Eis
a implacável efemeridade da vida material, a primeira fatalidade desse metal
que, lentamente, inicia o seu processo de oxidação:
(…)
até
tornar-se fogo há-de crescer
continuamente
a luz mortal do ensaio
“Peregrinos”, o poema seguinte,
dá continuação ao grosso do raciocínio, trazendo a lume novas indagações
(inquietações). Aqui, as personagens desse grande ensaio assumem o papel de
peregrinos. Mas de que causa? Caminhar, somente?
Toda essa
gente dos transportes públicos
diariamente
em trânsito parece
mover em
sentido único um corpo que arrefece
Uma vez mais, encontramos entre
linhas pejadas de urbanismo, a rotina das existências e a sua inevitável
degradação.
Também se
acrescenta: «Filhos fostes». Eis uma humanidade num completo abandono de Deus?
A cumprir pena por suas falhas? Quais as razões para o afastamento, se existe? Para
a aplicação da coerciva medida? Não encontramos grandes esclarecimentos, mas um
indício de identidade individual enublada, e assim também colectiva, fenómeno
causador dum desapego de aparência: «(…) destruís / a vossa imagem desistindo
dela». O término do poema, no entanto, torna-se conclusivo: «chamai-vos
ninguém».
A “correria diária” dessa
«humanidade infinda que se move» (“Voo de Longo Curso”) dá azo ao diluir da
realidade apreendida, tanto que afluentes denominados de “sonho” e “ilusão”
nela facilmente se imbuem, turvando a sua lucidez. Por diversos planos que se
entrecruzam, as fronteiras esbatem-se e as dúvidas aumentam o aperto dum
eu-poético cada vez mais perdido por espaços de esbatidos contornos (“Na
Carruagem do Metro”):
Era um
sonho, porém eu não sabia
que esse
vivo evidente estava morto
na outra
realidade, a omitida
Se, «tal
como tu confundo areia e água» (“Impressão”), o despertar de algo no íntimo
desse eu, desencadeado seja por que impulso for (uma imagem, um gesto, uma
voz), acabar-se-á por impor. Dando-se o mote, o assombro da imediata
constatação tornar-se-á inevitável: «como pude / dormir» (“Uma Voz”).
Lentamente
vamos assistindo a um render de perspectiva. Ou seja, o eu-poético abandona
gradualmente o seu papel de testemunha de um mundo girando em seu redor para se
introduzir no mesmo, revelando a sua parte pessoal no pulsar da vida que
preenche o globo. Se antes frisámos as diferenças entre o “ensaio” e a “peça” de
teatro, quase que poderemos aqui afirmar que o espectador ergue-se da sua
cadeira, sobe ao palco e assume um papel nesse longuíssimo ensaio que tarda em
se consumir – embora, mesmo considerando a sua posição anterior, nunca tenha
deixado de ser uma personagem.
Será,
portanto, dentro desta óptica que os próximos poemas se sucederão até ao
término do capítulo (e diremos mesmo do livro, dado em futuras páginas
escassearem os trabalhos talhados sob as primeiras impressões), não obstante a
preservação da linha temática já exposta.
Desde logo,
a contínua passagem do tempo. O poema “Ouro Velho”, por exemplo, lembra-nos esse
«sol de outrora», mas «mais velho». Não esqueçamos a crescente oxidação de tudo,
principalmente num tempo em que já os olhos se não espantam tanto diante do
«óxido do ouro» (“Dizer um Nome”).
O eu, como
já sabemos, fixa agora o olhar em si mesmo, sua existência, suas recordações,
suas vivências, e diante das mesmas não consegue amparar a melancolia (embora,
repare-se, sem mágoa) nascente dessas passagens e, consequentemente, da
efemeridade da sua frágil existência. “Mediterrâneo”, talvez um dos mais belos
poemas desta obra, atesta esse sentir:
O poeta
grego não aceita
o
envelhecimento e gostaria
de morrer
antes que o torne a decadência
alguém que
não desejaria ser
Dada a igual
condição que a todos assiste, a humana, é natural que cresça no leitor uma
certa dose de compaixão. A poesia, assim se comprova novamente, sem que disso
houvesse sequer necessidade, consegue extrair do espírito sonhos e anseios de
uma humanidade profundíssima. O término desse poema, encerrando plenamente a
sua serena beleza, atestará a fragilidade do Homem diante dos elementos. Mesmo
em constante mutação, uns perdurarão mais que outros ao longo das páginas da
história do mundo:
depois de
nós continuará a ter
o mesmo azul
da vida que nos há-de perder
Talvez por
isso se torne mais clara a intenção do seguinte verso: «dizer um nome é sempre
uma heresia». Afinal, ao nomear algo tornamo-lo conhecido aos olhos da mente e,
assim, incluído no foro pessoal. Nomear é, de certa forma, tomar posse. Não da
pessoa ou do objecto, pelo menos não necessariamente, mas do nome que lhe
assiste. Uma certa familiaridade surge, não obstante a distância que possa
existir. Podemos portanto compreender neste pensamento um certo apelo ao
desapego, já que o sofrimento da passagem e da perda, ambos inevitáveis, se
tornará menor dentro do cultivo de tal conceito. Quase que se evoca a filosofia
ataráxica de Ricardo Reis a este ponto, um deixar fluir do rio que fatalmente
irá no mar ter a sua morte.
O último
poema do capítulo, ou parte, curiosamente, irá revelar inútil todo este
exercício que fomos fermentando. “Luz Húmida” dará em seu início a primeira
estocada: «Ninguém explica o poema». O próprio acto de tocar o seu corpo de
letras parece elucidativo: «Olhar o poema é ver o seu deserto». Que é, afinal,
esse lugar de versos, material expressão de sentidos erguidos por quem o molda?
«Casa inabitável».
***
Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012), O velho sábio das montanhas (2013) e Cristal (2015). Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).
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