O quebranto das palavras com "a": Diário da Queda, de Michel Laub

Por Alfredo Monte

Michel Laub. Foto: Renato Parada


I

Em Diário da Queda, seu quinto romance, Michel Laub apresenta o narrador, seu pai e seu avô, entrelaçando-os numa tessitura que permite ao leitor envolver-se nas angústias e impasses de três gerações, quase num único movimento, ainda que a estrutura pareça dividi-los de forma estanque (temos seções intituladas: “Algumas coisas que  sei sobre o meu avô”; “Algumas coisas que sei sobre o meu pai”; “Algumas coisas que sei sobre mim”; mais adiante, “Mais algumas coisas que sei sobre o meu avô”; “Mais algumas coisas que sei sobre o meu pai”; “Mais algumas coisas que sei sobre mim”). Todos os três escrevem textos: o avô, dezesseis cadernos manuscritos, antes de suicidar-se (encontrado pelo filho, quando tinha catorze anos); o pai, aventurando-se a escrever suas memórias após receber um diagnóstico médico terrível da boca do seu próprio filho; e este, escritor por profissão, nosso ponto de contato com as três trajetórias.

Embora não estanques, pelo contrário, impregnando-se mutuamente, podemos dizer que o avô se defronta com um fantasma marcadamente judaico: ter sobrevivido à experiência de Auschwitz (um fardo para a memória de qualquer indivíduo); o pai com um fantasma muito presente na experiência moderna de vida mais prolongada (o mal de Alzheimer, que é a deterioração da memória e toda a identidade ligada a ela); o filho com um fantasma não necessariamente exclusivo do macho da espécie, mas, no seu caso, ligado  aos seus ritos de passagem e à sua afirmação viril: o alcoolismo, o qual já ajudou a destruir dois casamentos, e está em vias de destruir o terceiro—mesmo porque, por um átimo, ele evita a violência física contra a esposa: «O soco no colchão impediu que eu tivesse de levá-la para o hospital ou fosse levado para a delegacia, mas não que eu caísse sobre a cama sem forças para dizer uma palavra, um torpor que não é tristeza nem culpa: ali estava eu diante da minha terceira mulher, o que eu seria capaz de fazer com ela, o que eu fazia com os outros e comigo desde os catorze anos».

II

«…aos catorze anos, porque a idade é sempre mais ou menos essa…», pode-se ler no início de Longe da água (2004), o segundo romance do talentoso autor gaúcho.

Aos catorze anos, o pai do narrador de Diário da Queda encontra o corpo do pai, odiando-o porque este utilizou Auschwitz como justificativa da sua ausência, uma sombra paterna negativa e derrisória. Aos catorze anos, o neto iniciará sua longa “queda” de três décadas rumo àquele soco no colchão, até receber do médico o diagnóstico que faz do futuro do pai algo sombrio.

Tudo começou em Auschwitz, e tudo, nessa dança de gerações, pode terminar na borra que é o Alzheimer, mas na verdade para ele propriamente, até então estudando numa escola para judeus de famílias ricas   e exclusivas, popular e querido pelos colegas, tudo começou, na verdade, ao participar de uma brincadeira de mau-gosto com um colega pobre e gói (não-judeu): quando este faz treze anos (idade do Bar Mitzvah), seus colegas o arremessam para cima, deixando-o estatelar-se no chão, o que lhe acarreta meses de fisioterapia.

Pressionado pela coordenadora da escola, o narrador dedura os camaradas e, por isso se torna tão pária quanto o gói, mais ainda: é um cara “queimado” (o de Longe da água também era, por outros motivos). Os dois se tornam amigos inseparáveis, e mudam para outra escola, não-judaica. E assim, aos catorze anos, acontece uma inversão: o que era popular e paparicado, fica à sombra do amigo, que a partir da fisioterapia ficou mais forte, mais precocemente “homem” e também mais precocemente “conquistador”, aquele que fatura as meninas na festa, enquanto o seu “sombra” fica se chapando com bebida e outras substâncias.

O leitor de Laub reconhecerá a ambiguidade, a dubiedade, a colisão entre amizade (outra palavra com “a”, entrelaçando-se a Auschwitz, Alzheimer e alcoolismo), inveja, ressentimento, permuta de papeis sociais, que também motivavam ações e revisões do passado em Longe da água (a amizade entre o narrador e Jaime) e mesmo em O gato diz adeus (a relação de professor e orientando, extrapolando para confidências pessoais, entre Sérgio e Roberto, e depois o triângulo amoroso com Márcia, esposa de Sérgio), para não falar na relação entre os irmãos em Música anterior (a projetar-se na suposta relação do psicopata Luciano com seu irmãozinho ainda bebê).

Ritos de passagem da infância para a adolescência e depois para a vida adulta, já dolorosos por si (e muitas vezes vivenciados de forma sórdida) se complicam com as questões étnicas, a intolerância, as diferenças de classes sociais, a crueldade (na nova escola, o narrador tem a certeza de que é João, a quem infligiu a queda no aniversário e tornou-se seu amigo “macho alfa”, o autor dos desenhos de Hitler e o orquestrador das brincadeiras humilhantes com relação ao seu judaísmo: «Contar esta história é recair num enredo de novela, idas e vinda, brigas e reconciliações por motivos que hoje parecem difíceis de acreditar, eu no fim da oitava série achando que João era o responsável pelos desenhos de Hitler, o traço em si ou a ordem para que alguém os fizesse, ou a sugestão, ou uma risada, ou um murmúrio de reconhecimento que tinha o poder de incentivar os que tiveram a ideia, e na época eu já tinha tentado de tudo para que parassem com aquilo (…) até sorri com benevolência quando mencionaram Auschwitz pela primeira vez, no vestiário depois da educação física, a primeira vez que alguém disse para conferir se era água que estava saindo do chuveiro, ou quando eu estava na cantina e disseram para não chegar perto do forno, e é tudo muito engraçado e até um pouco ridículo a não ser que faça menos de um ano que  seu pai contou a você sobre o seu avô, e mostrou a você os cadernos do seu avô…»); como vingança, coloca em sua mochila frases insultantes sobre a mãe dele, a qual morrera de câncer, do tipo: «os coveiros abrem o caixão da tua mãe e fodem o esqueleto dela todos os dias»).



III

Como sempre nas narrativas altamente moduladas  pela prosa de Laub, esses elementos cruéis e terríveis vão aparecendo aos poucos, nas voltas em espiral que o relato vai perfazendo, o que permite que a eles se agreguem várias questões éticas, morais e existenciais, envolvendo as figuras paternas, as referências masculinas na nossa vida, e permitindo a esse drama de culpa e rancor atingir uma ressonância muito mais poderosa do que uma mera história familiar, ao encampar o judaísmo e o futuro do ser humano.

Além disso, Diário da queda é exemplo cabal do que é uma obra em processo, em movimento. No primeiro romance de Laub, Música anterior (2001), o narrador, um juiz, era estéril e iniciava seu relato com uma frase que tinha o peso de uma sentença: «Minha mulher não conseguiu ter filhos». Esse mundo estéril, rancoroso, se intensificava em Longe da água. Já em O gato diz adeus (2009), apesar dos perversos jogos tanizakianos entre os três personagens principais, havia a filha a romper essa teia de relações circulares. Mesmo assim, o acorde final ainda muito desesperançado.

Desesperançada é a solução do avô: antes do seu suicídio, ele produz uma série de cadernos em que omite Auschwitz, a tragédia dos seus familiares e amigos, e pinta todos os fatos, todas os acontecimentos de sua vida com tintas otimistas e celebratórias, escamoteando a dor e a verdade: «A gravidez da esposa é observada com alegria por ele, acompanhada com diligência e amor por ele e confirma a sorte que ele sempre teve na vida». Não é à toa que ele utiliza a terceira pessoa, um “ele” totalmente distanciado de si, de sua verdadeira experiência.

Um pouco desesperançada, mas nuançada pela ternura e pelo calor humano, é a solução do pai: antes de mergulhar na escuridão do Alzheimer, seu texto memorialístico se reveste de nostalgia, tentando aplacar o rancor contra o suicida  («Meu avô preencheu dezesseis cadernos sem dizer uma única vez o que sentia em relação ao meu pai, uma única referência sincera (…) a vida que segue depois que se sai de um lugar como Auschwitz, a esperança que se renova quando se tem um filho depois de sair de Auschwitz, a alegria que se consegue ter novamente ao ver um filho crescer como resposta a tudo o que se viu em Auschwitz…») e redescobrindo o momento mais importante da sua vida, aquele que anuncia o futuro: «… a história que vale. A que eu quero contar nesta carta, ou neste livro, leia como você quiser. Tudo o que eu tenho para dizer começa ali, eu segurando a sua mãe sem dizer nada num salão de baile».

E o filho, o nosso narrador? Citei mais atrás um momento em que ele, dominado pelo álcool, poderia ter batido na mulher e não o fez, por pouco: «ali estava eu diante da minha terceira mulher, o que eu seria capaz de fazer com ela, o que eu fazia com os outros e comigo desde os catorze anos». Preciso citar a continuação imediata: «… e eu não sei o que teria sido se a briga da televisão quebrada não acontecesse pouco antes de eu saber do Alzheimer, o ultimato da minha terceira mulher, a voz calma dela dizendo que eu não tinha condição de ter um filho».

Quase aos quarenta anos, ele recebe da boca da «única mulher por quem já esteve realmente apaixonado» a notícia de que ela está grávida e de que se ele continuar no caminho da “queda” (que foi a de João, e depois a dele irrevogavelmente), não terá esse filho dele. E a solução que ele dá ao dilema é a da esperança, é a do milagre (no sentido explorado por Hannah Arendt1), a de que uma nova vida merece ser trazida ao mundo com promessas e perdão, esse duplo movimento que instaura ilhas nesse oceano incerto, o futuro:

«Eu não gostaria de contar mais uma dessas histórias de reavaliação da própria vida numa situação-limite, como se a perspectiva do fim de alguém próximo nos fizesse ver o quanto tudo o mais é desimportante».

Laub não precisava ter feito esse alerta de escritor autoconsciente, de escritor antenado, de escritor pós-moderno e irônico, pois nesse que talvez seja seu mais belo romance, ele não apenas mostra que os temas da vida e da morte sempre se revalidam quando a prosa não apenas é de primeira, mas legítima, como também conseguiu uma eloquente e emocionante representação do aspecto fundante e salvador da natalidade, como perpétua teimosia estratégica da espécie, e que tudo isso tem a ver com outra palavra com “a”, de quatro letras, que não nomearei aqui para não parecer piegas, pois  também quero continuar parecendo autoconsciente, antenado, pós-moderno e irônico, mesmo revelando como fiquei contente, após ter lido (na página 77), que «A morte começa de muitas maneiras…», de constatar que, para um dos meus escritores contemporâneos favoritos, a vida também.

Notas:
1 «O novo sempre acontece em oposição à esmagadora possibilidade das leis estatísticas e à sua probabilidade que, para todos os fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre aparece na forma de milagre…».

«O milagre que salva o mundo, o domínio dos assuntos humanos, de sua ruína normal, ´natural´, é, em última análise, o fato da natalidade, no qual a faculdade da ação se radica ontologicamente. Em outras palavras, é o nascimento de novos seres humanos e o novo começo, a ação de que são capazes em virtude de terem nascido…».

«A redenção possível para a vicissitude da irreversibilidade—da incapacidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia—é a faculdade de perdoar. O remédio para a imprevisibilidade, para a caótica incerteza do futuro, está contido na faculdade de prometer e cumprir promessas. As duas faculdades formam um par, pois a primeira delas, a de perdoar, serve para desfazer os atos do passado (…); e a segunda, o obrigar-se através de promessas, serve para instaurar no futuro, que é por definição um oceano de incertezas, ilhas de segurança sem as quais nem mesmo a continuidade, sem falar na durabilidade de qualquer espécie, seria possível nas relações entre os homens.

Se não fôssemos perdoados, liberados das consequências daquilo que fizemos, nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas de suas consequências…» (Hannah Arendt, trechos retirados de A condição humana, 1958).

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