O coração do cânone de Lygia Fagundes Telles: “Antes do baile verde” e “As meninas”
Por Alfredo
Monte
1
Antes do baile verde, em 1970, era uma
espécie de antologia que Lygia Fagundes Telles fazia de seus livros anteriores1,
a primeira de muitas vezes em que fez isso. Hoje a Companhia das Letras publica
uma obra com dezoito contos (vários deles, dos melhores que ela escreveu). A
princípio eram quinze: de 1949, de O cacto vermelho, ela escolhera três
(“O menino”, “Os mortos” e “Olho de vidro”); de 1958, de Histórias do desencontro foram cinco (“Natal na barca”, “A ceia”, “Venha ver o pôr do
sol”, “Eu era mudo e só”, “As pérolas”); de 1965, de O jardim selvagem, outros
cinco (“Antes do baile verde”, “A caçada”, “A chave”, “Meia-noite em ponto em
Xangai”, “A janela”); e havia contos “esparsos” (“Os objetos” e “O moço do
saxofone”).
Com a repercussão, numa segunda edição, ela
incluiu mais cinco: “Verde lagarto amarelo”, “Apenas um saxofone”, “Helga”, “Um
chá bem forte e três xícaras”, “O jardim selvagem”, excelentes escolhas.
Assim, durante anos, ele foi republicado com vinte contos2.
Na
mais recente edição, pela Companhia das Letras saíram “Os mortos” e “Olho
de Vidro”. Da safra mais antiga, só permaneceu o belíssimo “O menino”.
Mesmo assim, o livro abrange uma produção entre 1949-1970.
Resolvi tomar o seguinte caminho, já que
adoro Antes do baile verde e sou profundo admirador dos contos de Lygia Fagundes Telles (dos
seus romances também): tentarei sintetizar sua atmosfera e seu charme como um
todo, através dos comentários sobre um relato típico, no caso, “Um chá bem forte e
três xícaras”.
A primeira coisa que chama a atenção num
leitor do século 21 (principalmente os mais jovens e/ou que não conhecem a obra
de Lygia) é a atmosfera recôndita, que tem agora um quê de nostalgia, por
tratar-se de um tempo já passado, que se revestiu de uma aura quase proustiana:
imaginem casas com jardins espaçosos, vizinhos que ficam treinando piano, chás,
empregadas zelosas… Parece a atmosfera de textos de Somerset Maugham, ou, mais
contemporaneamente, Tennessee Williams e o Truman Capote dos primeiros livros.
O conto começa com uma borboleta
pousando numa roseira e sugando o âmago de uma flor. Maria Camila está no
jardim da sua casa, conversando com a empregada, que está debruçada na janela.
As duas falam da borboleta, das rosas (a empregada nota que a rosa “abriu ontem
cedo” e já está murchando, e nada deve ser desconsiderado nesse texto,
inclusive que parece estar dizendo respeito à patroa). A atmosfera é
aparentemente bucólica e idílica: “Havia uma poeira de ouro em
suspensão no ar”. A empregada, Matilde, tenta pregar uma alça, mas falta um
botão, a patroa lhe diz que pegue outro na sua caixa, mas na verdade impede-a
de ir, comentando coisas e mais coisas, aparentemente triviais.
Depois de esgotarem o assunto da borboleta
e da rosa, Matilde pergunta se a patroa não quer que traga o chá. Maria Camila
diz que está esperando “a menina”, que ficou de aparecer às cinco (que coisa
mais inglesa, mais civilizada, evocando a cerimônia do chá das cinco, algo que
lembra decoro, boa educação, berço). No silêncio da tarde o zumbido de uma
abelha avulta e um riso de criança ouvido ao longe (não há crianças na casa). A
empregada pergunta se conhece a tal menina. Maria Camila diz que não e
perguntada sobre a idade da convidada, diz: “Uns dezoito”. Resposta de Matilde: “Mas então não é menina”, destruindo a ideia inofensiva e pueril (no sentido literal)
que o termo escolhido, “a menina”, poderia evocar nessa tarde de jardins, chás,
borboletas e rosas (mas sem crianças e com a maldita abelha zumbindo, e a
rosa fanando…aliás, Maria Camila comenta desgostosamente que chega a ser
obsceno ver aquela borboleta sugando aquela flor).
Com barulhos vindo da rua, a borboleta alça
voo e Maria Camila faz o gesto de tocar a corola da flor: “Não chegou a
tocá-la. Recolheu as mãos e ficou olhando para as veias intumescidas com a
mesma expressão com que olhara para a rosa”. Matilde pergunta se a
visitante é “conhecida do doutor” (primeira referência ao marido). “Trabalham
juntos” e o conto vai tomando nova feição. A moça é estagiária no laboratório
em que o dono da casa trabalha. E a senhora conhece ela, pergunta Matilde. “Já
vi de longe”. Matilde: “Então é essa que às vezes telefona para
ele”. “Deve ser, sussurrou Maria Camila apanhando a pétala que caíra
na relva. Levou-a aos lábios que estavam lívidos: Deve ser”. Os
lábios que estavam lívidos já nos transmitem, sorrateiramente, toda informação
que precisávamos sobre a reação de Maria Camila aos telefonemas da estagiária.
E os termos da empregada: “essa”, por exemplo.
Matilde insiste no assunto dos
telefonemas. Maria Camila: “Os velhos, os mais velhos gostam da companhia
dos jovens, acrescentou… dilacerando a pétala entre os dedos”. Aí ela passa
para o assunto do menino treinando piano no vizinho, antes era violino. Nisso
passa uma adolescente na rua: “[Maria Camila] ficou seguindo com o
olhar congelado uma adolescente que passava na calçada. Franziu a cara como se
enfrentasse o sol”. E Matilde volta à carga: “Como é que ela se chama? Essa do
chá…”. Maria Camila lembra do botão que ela tem de pegar na caixa para pregar
a alça. Maria Camila conversa com a rosa, pergunta o que deve fazer agora, logo
em seguida: “Augusto, Augusto, o que eu faço agora?”. A empregada volta
com um botão, conversam sobre o avançar da tarde, Maria Camila ri de repente: “Acho a
vida tão maravilhosa!”, surpreendendo a empregada. O menino para de
tocar. Maria Camila fica alerta. Olha o relógio, ordena a Matilde: “Assim
que a moça chegar, sirva o chá aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três
xícaras”. “Mas se é só a senhora e ela…”.
Na verdade, a patroa também espera o patrão, “o doutor”, ele deve aparecer. Nesse assomo de energia: “Quero os
guardanapos novos, não vá esquecer, hein? Os novos”. Passos ressoam na
calçada, deve ser a menina, “essa” que telefona, a estagiária, aquela contra o
qual os exércitos de Maria Camila devem estar alinhados (o chá bem forte, a sua
bonita e arrumada casa, os guardanapos novos), a amante do marido: “Maria
Camila levantou a cabeça. E caminhou decidida em direção ao portão”.
Não é preciso uma revelação bombástica, uma
cena de dramalhão, um elemento a mais, para indicar essa cumplicidade meio
hipócrita da empregada com a patroa, a distância social jamais sendo
preenchida, porém a convivência obrigando a “aludir” a uma situação
intolerável. Acho esse conto sensacional.
O esquema de “Um chá bem forte e três
xícaras” se repete no bem mais famoso “Antes do baile verde”, o conto-título,
ainda que com modulações diferentes: ainda é a surda cumplicidade hipócrita com
a empregada, da moça com o pai moribundo e que não quer se sentir culpada por
ir pular o carnaval3. E, analisando a frio, trata-se de um arcabouço
paradigmático: boa parte dos textos de Antes do baile verde são
estruturados em torno de um diálogo entre duas pessoas, uma das quais é
marcadamente frágil se flagrada num confronto direto, por isso os confrontos
lygianos são sinuosos e mediados.
Temos os irmãos, o introspectivo e
inadaptado Rodolfo e o bem sucedido Eduardo de “Verde lagarto amarelo”; o casal
de “Os objetos” (um conto onde o personagem mais frágil se agarra a
objetos “arredondados” e hospitaleiros porém sua atenção, sabemos depois, está
no focada no objeto com arestas, que não convida, que não conforta: uma adaga);
temos os casais de “A chave” (na verdade, é um confronto desdobrado, entre o
personagem masculino e a mulher mais velha que ele abandonou; e também a mulher
mais jovem, que ele não consegue acompanhar em sua vida social), de “A ceia”
(conto belíssimo, em que uma mulher abandonada dá vexame num restaurante que
está quase fechando), “As pérolas” (o homem que foi “apoltronado” pelo casamento
que debate com sua esposa se deve ou não participar de sua vida social) e assim
por diante...
A coisa fica mais dramática e menos
sorrateira nos confrontos de “Venha ver o pôr do sol”, onde o amante
abandonado, à Poe, tranca a ex-amada num sepulcro, após atraí-la com a
lorota da “despedida civilizada” (esse conto foi um dos primeiros que li de
Lygia e me impressionou fortemente; até hoje resiste a qualquer revisão); de
“Natal na barca” (onde o narrador tem de passar por uma experiência de fé e
espiritualidade, para o qual não está preparado); do excepcional “O moço do
saxofone” (onde o caminhoneiro quer transar também com a “fácil” mulher do
saxofonista, mas acha intolerável que ela infrinja tal sofrimento ao
companheiro); do clássico “O menino”, em que sorrateira é a mãe que leva o
filho ao cinema onde vai encontrar o amante, e que desperta violentas emoções
edipianas e vingativas no rebento, que nunca mais vai ver o filme da vida da
mesma maneira.
E talvez o mais violento confronto de todos
seja o da diva da ópera com o seu “invisível” e por isso perfeito criado chinês
no estupendo “Meia-noite em ponto em Xangai”, que para mim seria o ponto alto
da seleção se ela não estivesse coalhada de pontos altos (eu não consigo me decidir quais
os melhores).
Há os contos-monólogos que, no fundo, são
diálogos truncados com seres ausentes: é o caso dos maravilhosos “Apenas um
saxofone” (a ricaça que subiu na vida explorando os homens e que, tendo sugado
o poético e viril saxofonista, com o suicídio dele, pode decorar e redecorar
com todo o mau gosto do mundo a sua mansão que não vai recuperar os “dias de
saxofone”) e do brasileiro, descendente de alemã, incorporado à juventude
nazista, o qual, após a guerra, para dar um grande golpe (envolvendo tráfico de
penicilina), rouba a perna ortopédica da mulher que ele depois descobre amar
intensamente, isso nas convulsões de consciência de homem muito rico (em
“Helga”). Pode-se perceber que a perversidade não é estranha à Lygia Fagundes
Telles, com todo o “teatro da inocência”.
Dois contos escapam do paradigma “confronto”,
seja pela presença ou pela ausência, e são ambos famosos: “A caçada” me
impressionou muito há duas décadas, hoje já li coisas mais misteriosas e
instigantes, mas ainda acho a atmosfera e construção do texto dignas de
figurarem numa aula sobre os princípios básicos do gênero, particularmente o
efeito. Hoje em dia, portanto, tenho fascinação técnica, por assim dizer, pela
história do freguês que se deixa siderar por uma tapeçaria toda puída
representando uma caçada, e que é engolfado por ela contemplação após
contemplação. Se Lygia tivesse a repercussão de um Cortázar hoje esse seria um
conto universalmente estudado.
O outro conto já deu título a livro (em
duas versões diferentes, a primeira delas lançada há exatamente meio-século):
“O jardim selvagem”, a definição que o tio (tão mimado pela tia da narradora)
dá à sua esposa, Daniela, que anda sempre com uma luva numa das mãos, que toma
banho pelada na cascata, que monta em pelo, e que pratica eutanásia num cão
velho e doente, com um tiro de misericórdia. O tio descobre que está com uma
doença terminal e no final a narradora fica sabendo (há muita conversa de
comadre no texto, conversa de cozinha, diz-que-diz) que ele se matou com um tiro.
Será que se matou mesmo (o que é possível, com um homem casado com um “jardim
selvagem”, portanto vivo e implacável, incapaz de dar espaço à fraqueza e à
tibieza) ou foi misericordiosa e decididamente morto pela esposa? Isso importa?
O que importa é que na vida da narradora adolescente, envolvida pelo
adocicamento (doces, doces, doces) e pelo decoro, insinua-se, sorrateira, a
peçonha do incivilizado, do indecoroso, do imprevisível. E são sempre famílias
que já tiveram tostão e que agora se mantêm dignamente. Os muito ricos em Lygia
são as putas que venceram na vida, os traficantes de penicilina que roubaram a
perna da amada…
2
Lendo as situações retratadas nos contos
de Antes do baile verde, vemos que basicamente se trata de personagens
“enredadas” presas na proverbial ciranda petrificada, no aquário (não por acaso
os títulos dos seus romances iniciais, Ciranda de pedra; Verão no aquário).
Apesar dos acordes dissonantes, é um mundo em que a estagnação e a decadência
permeiam as relações de forma quase patológica, sinistra. Paradigmático, nesse
sentido, é o destino do cliente de “A caçada”, sugado para dentro da tapeçaria
que retrata uma cena que reconditamente a princípio, depois com mais força, até
chegar a um ponto premente, convoca a sua participação, a sua “reentrada”
fatalística no palco, do qual ele era peça integrante sem nem o saber.
Em As meninas (1973), no capítulo em
que Lião, uma das meninas do título (baiana revolucionária, que justamente está
se mandando para a Argélia com o objetivo de se encontrar com o amante, também
militante, que fugiu às garras da ditadura), visita (a fim de pegar algumas
roupas) a mãe de Lorena Vaz Leme (de família rica, porém decadente, riqueza rural
que vai sendo desgastada por empreendimentos infelizes e tresloucados), há a
seguinte descrição de desenhos no tapete:
“Os olhos
acostumados à penumbra viam melhor o desenho enrodilhado, mas nítido: o tigre
perseguia a gazela até montá-la nos dois lances seguintes, cravando garras e
dentes em seu flanco de onde escorria um filete de sangue aguadamente azul.
Outras gazelas perseguidas e abocanhadas se multiplicavam na lã e seda da
miniatura oriental. Por mais que corressem, como corriam!, estavam todas condenadas.
Alisou a cabeça espavorida da que saltava na moita. Procurou no intrincado dos
arabescos de folhas um caminho diferente que a gazela pudesse fazer para
escapar do tigre iminente: mas teria que sair do tapete. A volúpia com que os
homens criam e descriam a fatalidade em tudo quanto tocam. E depois
atribuem a responsabilidade aos deuses. Você é livre, soprou no ouvido em
pânico da gazela. Agora era livre. Ainda era livre…”
A mãe de Lorena (que tenta enganar o tempo
com plásticas, amantes mais jovens, baladas) representa a quintessência desse
fatalismo representado nos desenhos do tapete. No diálogo com Lião, ela diz: “o
terrível da vida é que as coisas acabam”. É automistificação, pois é justamente
o contrário. O terrível da vida, em Lygia Fagundes Telles, é que certas coisas
nunca acabam. Ficam mofando como a tapeçaria do conto para depois nos pegar
desprevenidos e nos sugar para o seu mundo gasto, petrificado, fatalístico.
E é nesse perigo que vivem Lorena e Ana
Clara, as outras meninas da história, embora com origens sociais quase que
antípodas. Lião é a única que pode subverter esse perigo do desenho fatalístico
do tapete, das coisas que parece que acabaram, mas nunca acabam. É difícil
dizer isso, sem parecer edificante ou parecer estar procurando uma “mensagem”
num romance tão complexo, mas ela é o polo positivo do romance, o fiel da
balança, é a novidade no mundo da ciranda petrificada. Ela é o que As
meninas traz de novo à ficção de Lygia, e o que torna mais bonito esse
novo elemento é a sua ligação com os outros fios da trama que ecoam as
recorrências da autora com sua prosa toda feita de “delicadezas perigosas” (é
desse jeito que Lorena caracteriza seu gato sumido, Astronauta).
O romance é constituído por doze
capítulos. Há a presença da terceira pessoa, da primeira (em geral, tão
intercaladas que é preciso um esforço didático para destrinçá-las), mas no
geral predomina uma terceira pessoa em “discurso indireto livre”, ou seja, uma
terceira pessoa que parece contaminada pelo foco da primeira, de tal forma
narrador e personagem se misturam (parece difícil e muito técnico, porém As
meninas, que é um romance altamente literário e sofisticado, parece fluir
“naturalmente”).
No primeiro capítulo, o foco está em
Lorena, no seu mundo-concha, na presença dos seus “mortos” e “fantasmas” (mesmo
que estejam vivos, como o tal amante misterioso, M.N.), Lião é a amiga
folclórica (mas que aparece em cena e com a qual ela conversa), que tem tudo
para desagradar em termos de impacto físico (como sua tendência a desleixar-se
quanto à higiene), assim como também é escorregadia a visão que temos da outra
moradora do pensionato de freiras, Ana Clara, que domina o foco no segundo
capítulo, no qual justamente Lião aparece bem distanciada, apenas como uma
referência, enquanto Lorena entra sempre no campo das ruminações turvas da nada
clara Ana: “Resolvo tudo. Então fico verdadeira. Só peço a Deus pra ser sempre
verdadeira, ela disse não sei quantas vezes naturalmente com intenção de.
Verdadeira. Com dinheiro também fico, pomba. Fico a própria boca da fonte
jorrando a verdade. É fácil dizer a verdade na riqueza…”.
O trecho acima é importante porque é Ana
Clara, a drogada, mentirosa, enrolada, malaca, quem está com a palavra,
confrontando o seu ser e a sua consciência com Lorena, a quatrocentona,
refinada, sutil, neurótica. Como nós conhecemos o “lado” de Lorena igualmente,
é fácil reconhecer a má fé e a implicância, o ângulo tendencioso da visão turva
de Ana Clara sobre a amiga/ desafeto. Nenhuma afirmação, em cada um dos lados, é
completa porque só há determinados dados.
Concha e tabula rasa. A concha querendo a “vida
impecável”, limpa, arrumada, ordeira, quase diáfana, como se não houvesse caos
dentro e fora; a tabula rasa desejada pela “dançada”, que tenta se fazer
acreditar que há um ponto em que a vida possa ser reformada/reformulada, o
passado anulado, que se possa começar do zero, toda a fragmentação interior, a
miséria psíquica, reordenadas numa estrutura unívoca e harmônica. Duas faces da
mesma automistificação, embora a lucidez ronde avisando que são tão somente
automistificações (pois elas não são nada bobas, e Ana Clara, querendo ficar
chapada, admoesta o namorado traficante que continua “podre de lúcida”). O
roque-roque do pensamento-realejo roendo o (e rodando pelo) cérebro, os
recalques e obsessões indo e vindo.
Lião, nesse ponto, é como a realidade
(caótica e opressora): vem de fora, exige o posicionamento, o comprometimento
que ambas tentam recusar de modos diferentes e igualmente
irrisórios/derrisórios:
“Bom é ficar
olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão
inofensivas a rotina. Comem e não vejo o que comem. Falam e não ouço o que
dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza. Um pouco que alguém se
aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é espectador, vira
testemunha. Se abre o bico para dizer Boa noite! passa de testemunha para
participante. E não adianta fazer aquela cara de nuvem se diluindo ao largo
porque nessa altura já puxaram a nuvem para dentro e a janela-guilhotina fechou
rápida. Eram laços frouxos? Viraram tentáculos”.
Como variações musicais, o esquema se
repete no terceiro capítulo (Lorena), no quarto (Ana Clara) e no quinto
(Lorena, novamente), enquanto a ação, sem que pareça acontecer nada, vai
avançando, Lorena na direção da imponderabilidade, Ana Clara da
impossibilidade, ambas na insustentabilidade.
O sexto capítulo rompe com o quadro de
diversas maneiras: Lião ocupa a cena, ao mesmo tempo tudo é mais objetivo, sem
as ruminações, sem o roque-roque do pensamento recorrente e obsessivo. São
ações, são projetos, estamos a princípio num escritório de militância política,
depois há a notícia da libertação de Miguel, o amante e a necessária partida
para a Argélia (o que pareceria a princípio datado, essa história da ação
revolucionária, é o que mais dá sangue e vida a esse romance, apesar do charme
dos outros lados do triângulo, e foi essa justamente a maior surpresa da minha
releitura, quando na minha memória afetiva a personagem de Lião era a que menos
contava, e para mim, agora, ela é que dá o significado mais pleno ao texto).
Nesse sexto capítulo, há também uma conversa-chave entre Lião e a madre
responsável pelo pensionato.
No sétimo capítulo, pela primeira vez há
uma divisão do foco narrativo, entre Lorena e Lião. O oitavo, que é o mais
dramático e um ponto alto da prosa de Lygia, temos o clímax da participação de
Ana Clara, perdida na cidade, na noite e na vida (os perigos sobre os quais a
madre acautelava Lião, as ciladas que gazelas sofrem no desenho do tapete da
casa da mãe de Lorena?). A impossibilidade encenada não mais na modorra de uma
sesta/ morgação, mas na própria ação. O nono capítulo volta a Lorena, e a sua
imponderabilidade é colocada em xeque, não mais em fantasias e devaneios, mas
no concreto (a cena com o rapaz que é a fim dela, Guga) e é quando Lião lhe dá
a notícia da sua viagem (o mundo em torno da concha vai rachando-a).
No décimo capítulo ocorre a já citada
visita de Lião à casa da mãe de Lorena. No décimo-primeiro, Ana Clara chega
destroçada no quarto de Lorena, que lhe dá um banho (o mundo concha tentando
lavar os pecados do mundo real, também uma aspiração à tabula rasa por vias
mais sub-reptícias) e depois vai ao quarto de Lião, que está preparando sua
partida. Ao voltar para seu quarto, Lorena descobre que Ana Clara está morta e
chama a amiga. É curioso que nesse capítulo que “reúne” as três não há (como no
romance inteiro) encontro real entre Ana Clara e Lião.
E no último capítulo, eis as três pela
noite paulista: Lião e Lorena “desovando” o corpo de Ana Clara, de forma a que
não haja complicações no pensionato. O cuidado de Lorena com a morta, salvando
as aparências, deixando-a linda. Os caminhos que se bifurcam: Lião indo para a
Argélia, o futuro em aberto, Lorena voltando para a casa da mãe, para a
concha-mor, para o desenho do tapete. Embora haja alguma esperança. Porque, do
contrário, pelo que verificamos no posterior As horas nuas (1989)
sabemos no que dá essas mulheres em apartamentos-conchas: o enlouquecimento e
desvario progressivo, essa preocupação em salvar as aparências, e nada
acabando, nunca…
Houve, portanto, uma troca de posições
entre Ana Clara e Lião, em termos de estratégia narrativa e Lorena continuou
sendo, grosso modo, a representante do mundo asfixiante e estagnado, mundo ao
qual Ana Clara aspira e o qual Lião rejeita, por isso a mais frágil das três
meninas é de certa maneira o fiel da balança de toda a trama. As delicadezas
perigosas.
Notas:
1
Há uma seleção chamada Histórias escolhidas, anos antes, mas parece que
foi feita pelos editores e não por ela.
2
Pelo menos, é assim nas edições que tenho, uma do Círculo do
Livro; outra –a oitava– da José Olympio.
3
Creio não ser ocioso anotar aqui que Clarice Lispector também tem um pequeno
grande texto que aproxima carnaval e morte, “Restos do carnaval”, de Felicidade
clandestina, uma seleção que, em certo sentido, ocupa na obra clariceana de
certa forma a mesma posição de Antes do baile verde; ressalte-se que no
conto de Lygia é o pai, no de Clarice, a mãe.
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