Notas sobre Homem irracional, de Woody Allen
Por Rafael Kafka
Homem irracional, o último
longa-metragem produzido por Woody Allen, é um filme com algumas recorrências de
outras produções do consagrado diretor. A temática ligada ao diálogo com a obra
Crime e castigo, de Dostoiévski, o existencialismo, o absurdo, os casos
amorosos com envolvimentos complexos e mesmo o comportamento do personagem
central, o qual lembra demais o de personagens célebres encenados pelo próprio
Woody Allen em filmes anteriores são temas que já vimos em outros momentos.
Ao contrário de uma amiga minha,
com quem vi o filme, que viu nele algo pouco convincente e um Allen já
desgastado no tocante às ideias de um bom texto, vejo uma bela história em Homem irracional complementado com diálogos e atuações interessantes e medianos
e uma fotografia muito bela. Ao lado de tudo isso, há uma certa metalinguagem
que mostra um autor criticando a si mesmo pela falta de ideias.
A história gira em todo da
personalidade conturbada de Abe Lucas (Joaquin Phoenix), um professor de
filosofia que se encontra em crise existencial. Ao começar a dar aula em uma
universidade, ele se envolve com Jill (Emma Stone), uma aluna a qual se
apaixona por seu intelecto e ar melancólico, e Rita (Parker Posey) uma colega
de trabalho, de meia idade, que também se interessa pelo vigor intelectual
mórbido de Abe.
A princípio, Abe reluta em se
envolver com qualquer uma das moças, criando, contudo, uma grande amizade com
ambas, em especial com Jill que cada vez mais se mostra fascinada pelo
professor. Certo dia, os dois estão em um café e ouvem um diálogo entre uma
moça que luta na justiça para não perder a guarda de seus filhos e alguns
amigos. Abe, então, decide assassinando o juiz responsável pelo caso, o qual
nitidamente colabora com a parte rival no processo.
O motivo para tanto se dá pela
necessidade de Abe de agir praticamente no mundo, de promover algo concreto e
não apenas pensamentos soltos sobre a existências e sua metafísica. Mesmo
diante de um ato macabro, matar outro ser, Abe sente a poesia da libertação, o
prazer em se sentir livre como nunca se sentira antes. Finalmente ele encontra
um sentido para sua vida por meio da ação concreta, mesmo que essa esteja longe
de uma grande revolução: o que importa aqui é realizar alguma mudança no mundo,
deixar sua marca, fazer o bem, não obstante com motivos bastante egoístas.
Temos aqui a recorrência do tema
de Matchpoint, longa no qual Allen expõe um interessante diálogo com a obra de
Dostoiévski citada no começo deste texto. As ações do personagem Chris (Jonathan
Rhys-Meyers) questionam a ideia implícita no texto de Crime e castigo, que seria a ideia do arrependimento ligada a crime cometido pelo medo de ser pego e
de ter de pagar uma dívida severa demais. Chris age como alguém que sabe que
não será pego e não sente remorso diante do que fez: se há algum sentimento de
tensão é o medo de se tornar presa da justiça e nada mais.
Aqui esse mesmo desejo de morte
do outro está presente, mas não apenas por conta da ambição material. A
existência sem sentido é que impulsiona Abe a seu ato e sua ambição se mostra
mais ontológica do que a de Chris. Ainda assim, nos dois casos vemos aquilo que
Nietzsche e Foucault chamariam de “vontade de poder”, algo tão bem exibido nos
crimes cometidos por Hannibal: é o desejo de se sentir divino, poderoso no
tocante ao trato com o outro.
A morte intentada por Abe lhe
traz colorido à vida e coragem de agir, de existir. Parece estar diante de um
jogo que lhe traz prazer e satisfação, pois há o poder em sua essência.
Assim como Chris, o medo surge em sua mente somente quando a prisão se mostra
inevitável e ele precisa agir para evitar tal fato. Todavia, antes disso, a sensação
que temos é a de que assim como os protagonistas de Matchpoint e de Crime e castigo, Abe se sente como um ser superior no direito de cometer atos divinos
como o de tirar a vida de alguém pelo simples prazer de se sentir agindo na
realidade concreta que o rodeia.
Em seus diários, Sartre já
falava da realidade como algo opaco e que reage ao nosso desejo. Todo gesto
nosso é um gesto de mudança na ordem das coisas, pois precisamos de alguma
forma abalar as estruturas do mundo para obtermos o que conseguimos. Ao
contrário de nós, Deus sonha, pois o seu desejo se confunde com a realização de
seus atos. Em um mundo complexo como o nosso, muitas vezes nos afundamos em
angústia, como Abe, por sentirmos falta de algo que não sabemos definir bem que
seja. É preciso, então, determinado acontecimento ocorrer para que a perspectiva de nossos olhos mude e
assim sintamos a existência com outros olhos.
Algumas pessoas sentem tal
mudança por meio de viagens, mudanças de emprego ou de casa ou mesmo
rompimentos amorosos. Abe, no entanto, vivendo diversos tipos de experiência em
sua vida pregressa chega a um ponto em que somente algo muito intenso, como
matar alguém, seria capaz de lhe trazer novamente ao controle pleno de si
mesmo. Estamos diante de um mesmo gesto de liberdade cometido por uma GH no
momento em que enfrenta e mata seu medo mais secreto e repugnante: uma barata.
A diferença é que por estarmos diante de uma outra consciência humana há a
necessidade de uma desculpa, de um pretexto moral que justifique nossos atos.
O juiz em questão é um
personagem que impossibilita a pobre moça de atingir a felicidade fraternal a
qual ela tanto procura. Abe vê na morte do mesmo um gesto de justiça, uma forma
de tornar o mundo melhor do que é, mesmo que em ínfima escala. Confunde-se em
sua atitude o altruísmo do gesto com o egoísmo de quem procura o conforto
pessoal. Fica claro, no entanto, que a morte causada por ele tem muito de
prazer pessoal no sentido de poder já falado acima. Um poder similar ao sentido
por alguém que escreve ou produz qualquer outra forma de arte: um poder de
concretude, de sentir-se bem consigo mesmo, deixando sua marca na realidade
concreta das coisas.
Vemos no comportamento de Abe
muito do comportamento de personagens clássicos de Woody Allen, como Harry e
Alvy Singer. Podemos dizer que Allen foi alguém que se utilizou do cinema como
um grande campo de exposição do seu ser, com diversos momentos sendo
verdadeiros complexos de relações entre sua obra e sua vida. Os problemas com a
escrita, com as mulheres, com o absurdo da existência ganham uma grande forma
em diversos longas seus, sempre com belo espaço para as relações humanas, algo
que o aproxima demais de nosso Machado de Assis.
Há uma cena na qual a frase mais
famosa de Manhattan é citada. Nela, Abe é parafraseado por Jill que afirma que
todos criamos dramas para preenchermos o vazio do universo, um eco bem próximo
do dito pelo próprio Allen em seu hino de amor à ilha americana. Tal frase, ao
meu ver, sintetiza bem os temas das obras de Woody em seu existencialismo
muitas vezes cômico: o vazio da existência que nos incomoda e nos impulsiona às
desventuras de nosso cotidiano. A sua reaparição em um filme feito décadas
depois é sinal de que Woody percebe-se sem ideias e sem medo de revisitar o seu
trabalho. Bem humorado como sempre, o diretor brinca consigo mesmo em seu
tradicional humor ácido e promove uma bela metalinguística, tanto no plano
narrativo como no psicológico, da crise que acomete todo escritor de vez em
quando, nos momentos em que se deseja produzir algo, mas as ideias parecem não
fluir e a inspiração nos deixa a ver navios.
Penso que Homem irracional, ao
lado de Blue Jasmine, é um filme o qual mostra que Woody ainda pode render boas
coisas e nessa sua insistência de produzir filmes anualmente ele ainda consegue
gerar trabalhos interessantes. Mesmo sendo filmes medianos, tais produções
ainda nos remetem ao bom tempo do cinema mais autoral e lírico de Allen, capaz
de nos tocar seja pela doçura das cenas mais apaixonadas, seja pelo humor capaz
de rir das desgraças mais tolas de nossas vidas. Por isso, tal diretor deve
sempre ser revisitado por aqueles que amam o cinema e seu poder de mexer com
nosso mundo pessoal.
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