Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz

Por Rafael Kafka



Memorial de Maria Moura é minha primeira experiência de leitor em contato com a obra de Rachel de Queiroz. Devo dizer que mesmo em andamento, a obra tem me impressionado por uma série de fatores interessantes e por isso mesmo penso ser válido escrever algumas notas preliminares acerca da minha leitura deste grande romance. Grande tanto em volume, cerca de quinhentas páginas, quanto em qualidade estética e estrutural.

O romance gira em torno da história de Maria Moura, uma moça que após perder pai e mãe se vê sozinha no mundo ao lado de um padrasto de quem sofria abusos sexuais intermitentes. Tal realidade é representada de forma muito sutil logo no começo do romance e passa-nos a impressão de não causar tanto incômodo em Maria Moura. Ao longo do enredo, veremos que por mais que a protagonista se preocupe em romper os limites dos papeis de seu gênero, ela ainda cede diante da cultura patriarcal sertaneja do século XIX. Por isso, os abusos de Liberato, o padrasto, são vistos por ela de forma similar aos sofridos por mulheres agredidas por maridos, as quais dizem que “homem é tudo igual”, importando apenas a companhia e a proteção tidas ao lado deles.

Um belo dia, contudo, Maria Moura decide se livrar de Liberato e seduz um caboclo que trabalhava em sua propriedade para efetuar o assassinato. Após o caboclo de nome Jardilino concretizar o ato, Maria Moura faz com que seu protetor João Rufo elimine-o, pois suas investidas já estavam causando um incômodo bastante grande em si. Percebemos que enquanto a morte de Liberato se dá por motivos de interesse na terra do sítio dos Limoeiros, herdada por Moura, a de Jardilino se dá por um certo racismo da parte da protagonista, que em diversos momentos do texto falará dos caboclos, negros e índios como seres inferiores.

O que é interessante na escrita de Rachel de Queiroz é justamente essa sinceridade existencial com a qual constrói seus personagens. Não há aqui discursos eloquentes e prontos para parecerem demagógicos demais. Vemo-nos diante de seres repletos de preconceitos e ambição, seres cuja nobreza é bastante questionável em diversos momentos, justamente por serem como somos: seres reais e cruéis.

Tal realismo é ampliado pelo recurso do narrador-personagem usado por Rachel no romance. Mas há nele um experimentalismo interessante: cada personagem assume a voz de seu foco narrativo e há horas em que mesmo seres de menor importância para a história assumem o papel de protagonismo, como Tonho e Irineu, os irmãos que ameaçam tomar posse do sítio de Moura e a forçam a sair dali, não sem antes queimar tudo para mostrar a eles que não se entregaria sem lutar.

Com o uso de um narrador-personagem que na verdade são vários narradores, Rachel permite-nos penetrar no íntimo de cada personagem e assim entendê-los de forma mais plena. Assim, deparamos com a crueza de um ambiente dominado pelas relações de poder em um sistema parecido com o feudalismo e o latifúndio: a terra serve como riqueza, mesmo que para nada seja útil. A terra assume uma importância fálica aqui, representando orgulho quando se reflete em uma imensidão a se perder de vista. Ao mesmo tempo, vemos uma sociedade que ainda relega mulheres a um segundo plano enquanto ao redor dos pequenos povoados e cidades vemos famílias inteiras isoladas do convívio social, esforçando-se de forma extrema para sobreviver às agruras do sertão nordestino.



Após fugir do sítio, Maria Moura, ao lado de um conjunto de antigos e fieis empregados, passa a vagar pelo sertão rumo a uma antiga terra de sua família na qual pretende construir uma fazenda que seria a sede de seu grupo. Vemos de certa forma em Maria Moura uma espécie de ode ao banditismo social de figuras como Lampião e Maria Bonita, com as atitudes da moça se voltando mais para aqueles seres de poder econômico, por quem ela nutre ressentimento e inveja, buscando, quem sabe, ocupar posição similar um dia.

Sempre que se depara com figuras pobres no decorrer de suas andanças, o grupo de Moura mesmo quando deles tira algo demonstra profundo respeito. De certa forma, podemos considerar Maria uma moça de espírito pacifista, ainda não brutalizado completamente pelos riscos das aventuras com homens dispostos a matar e morrer. Moura seria uma contraposição civilizatória em relação ao homem caboclo nordestino que vive em estado de bruteza. Isso fica bem evidente quando a protagonista diz que seria bom se tivesse um homem ao seu redor, mas não um homem como aqueles que a seguiam e sim como Irineu, o qual em dado momento da história chega a ferir Moura. Fica evidente no pensamento de Moura um desejo de ser submissa a determinado tipo de homem: um homem branco e proprietário de terras, não por interesse, mas sim pelo poder emanado de tal ser.

Moura não se contrapõe ao sistema social o qual a rodeia. Ela apenas quer se dar bem nesse sistema, quer impor seu nome, sua presença, tornar-se alguém importante e respeitada. O banditismo social de Moura tem algo de Robin Hood, porém é algo que em sua essência não procura a justiça social e sim a ascensão dentro de um sistema econômico ainda marcado por relações feudais. A obra nesse sentido se mostra como um interessante panorama social do nordeste brasileiro e do latifúndio enquanto fato de uma sociedade cujas marcas até hoje somos capazes de encontrar sem tanto esforço.

Outros dois seres interessantes merecem um destaque dentro do romance de Rachel de Queiroz. O Beato Romano e Mariaval.

O Beato Romano é um ex padre que logo no começo da história surge no esconderijo de Moura pedindo abrigo afirmando que a qualquer momento pode ser morto. O seu pedido, em suma, era por proteção e Moura, após alguns momentos de dúvida, atende. O seu maior receio é pelo fato de que Beato foi o padre a quem ela confessou a morte de Liberato anos antes, mesmo com ela ainda não concretizada. Ainda assim, ela confia na instituição católica do segredo de confissão e decide dar ao ex sacristão a proteção desejada por ele em seu medo de morrer.

O Beato, que outrora se chamara Zé Maria, assume o discurso narrativo em diversos momentos do texto. A sua história se centra em um adultério com dona Bela, uma moça a qual passava a maior parte do tempo sem o marido no vilarejo em que morava e frequentava bastante a igreja na qual o Beato pregava seus sermões. Aos poucos, a relação entre os dois se torna próxima demais e culmina em uma traição que é descoberta pelo marido de Bela que a mata em um ato de ciúme. Em desespero e prezando pela própria vida, o então padre mata o algoz de sua amada e passa a andar sem rumo pelo sertão, com medo de vir a ser pego e morto por aqueles que por ventura queira vingar a morte do esposo traído.

Já Marialva é uma irmã de Tonho e Irineu a qual em um belo dia decide fugir com Valentim, um saltimbanco promesseiro por quem ela se encanta. Marialva vivia presa na fazenda das Marias Pretas por receio por parte dos irmãos e da esposa de Tonho, firma, de que se ela se cassasses teria de haver uma divisão das terras. Todavia, a moça pouco pensa nisso e decide fugir com Valentim, o qual surge um belo dia em sua casa e causando nela um grande furor íntimo. Ambos então passam a andar pelos rincões sertanejos, em um estilo de vida andarilho tipicamente circense, com o intuito de serem livres e de viverem plenamente o seu romantismo.

Como o próprio nome diz, Memorial de Maria Moura é um dos bons livros da literatura nacional que se utiliza do discurso memorialístico, mesmo na forma de ficção, para criar boa literatura. O uso de diversos personagens narradores propicia ao leitor um retrato vivo da identidade de cada um dos seres que compõem essa imensa telha vida narratológica que é o romance final de Rachel. A memória aqui está fortemente ligada a uma busca por identidade dentro de um espaço geográfico específico e por isso o texto permite-nos, ao mesmo tempo, entender bem as personagens e suas relações com o meio que as circunda, mostrando o poder da literatura em desvendar o humano e sua relação com a mundanidade que o afeta a cada momento.

***

Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos  (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.

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