As aulas de literatura do mestre Julio Cortázar
No prólogo
para essas Aulas de Literatura, o
organizador da edição, Carles Álvarez, sublinha que foram estes “os últimos
dias felizes do autor”. As aulas aconteceram entre as quintas-feiras de outubro
e novembro com média de duas horas cada; os textos foram compilados a partir de
15 fitas que em 1995 lhe entregou Aurora Bernárdez, primeira companheira e
herdeira de Cortázar. Carles desconhece como esses áudios chegaram às mãos dela
mas imagina que foram gravações de um aluno que devem ter passado de mão em mão
como é comum aos produtos piratas. Delas, ouvem-se um Cortázar tranquilo e
relaxado em seu último ano feliz, “pois pouco depois sua companheira de então,
Carol Dunlop, adoeceu e ele também. Ela morreu em 1982 e ele dois anos depois”.
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“Quero dizer
que lhes agradeço profundamente a fidelidade e a atenção com que seguiram isto
que não era um curso, que era algo mais, creio eu: um diálogo, um contato”.
Quarenta e três anos depois e toda uma vida literária pelo meio, Julio Cortázar
volta a deixar o giz no quadro-negro para concluir e despedir-se de um grupo de
alunos. Desta vez não são seus alunos da Escola São Carlos da cidade de Bolívar
– onde ministrou sua primeira aula em 31 de maio de 1937 – mas dezenas de jovens
que cursam espanhol e português na Universidade de Berkeley e os quais tiveram
a oportunidade de conversar durante oito aulas com o escritor argentino sobre
literatura, cinema, música e política.
Na primeira
aula chamada de “Os caminhos de um escritor” se distingue com um professor
diferente. “É bom que saibam que estou improvisando estes cursos muito pouco
antes de que cheguem aqui; não sou sistemático, não sou crítico nem teórico, de
modo que, à medida que os problemas vão aparecendo no trabalho, busco soluções”.
Já na primeira
jogada, Cortázar derruba a hierárquica relação aluno-professor e a sala é tomada
por certa ingenuidade e uma cumplicidade; é a presença de um conversador
natural que expressa suas ideias e opiniões como se estivesse relatando-as à
sua querida máquina Olivetti Lettera 22. No prólogo, Carles Álvarez Garriga, organizador
do livro, corrobora esta qualidade: “Transcrever estas treze horas de conversa
foi muito fácil”.
Cortázar
professor é uma face pouco revista na vida do autor. Mas, o próprio Álvarez
Garriga com a primeira companheira do escritor, Aurora Bernárdez, dão pistas a
respeito quando publicam em 2009 os cinco volumes com as cartas do escritor. No
primeiro tomo, que corresponde ao período como professor nos subúrbios de
Bolívar, Chivilco e depois na Universidade Nacional de Cuyo, Cortázar dizia: “Devo
haver tido cem professores e só me recordo de dois. Eu tive de aguentar uma
educação em que muitos de meus professores eram criaturas infladas, pomposas e
pedantes”.
Sem dúvidas,
neste auditório da cidade de São Francisco, na Califórnia, está sentado o
professor menos pretensioso do mundo. “Peço-lhes que não se assustem com as três
palavras que vou usar de agora em diante...”, diz aos alunos quando se refere
às etapas de sua trajetória como escritor. Nomeia e logo lança a primeira
autocrítica à sua primeira fase a qual chama de estética, do pós-guerra, quando a atividade
intelectual brilhava em Buenos Aires com Borges como autor exemplar, e em seus
contos tinham relevo os mecanismos literários a serviço do fantástico. A seguinte,
a metafísica – explica Cortázar – está marcada pelo conto “O perseguidor”, onde
dá vida ao grande Johnny Carter abordando seus problemas psicológicos e
existenciais. Sua etapa histórica – comenta em detalhe durante esta primeira
aula – floresce a partir da Revolução Cubana e sua consciência de “escritor latino-americano”.
A metodologia
é fácil de ver: na primeira parte de cada conversa Cortázar compartilha seus conhecimentos
e reflexões, para logo abrir um diálogo com os estudantes. Na segunda aula,
dedicada à questão do tempo no conto fantástico, um aluno lhe pergunta se pode
falar sobre “A noite de barriga para cima”. Com sensibilidade responde: “Posso,
eu ia fazê-lo na próxima aula, mas também podemos mudar o tempo, já que estamos
nisso, e transformar assim um futuro num presente; é muito fácil fazê-lo com palavras”.
Cortázar fornece, desfruta, entra em sintonia com os estudantes sobretudo
estadunidenses.
Berkeley não
foi a primeira universidade dos Estados Unidos que lhe ofereceu um cargo de
professor visitante. Em 1969, a Universidade de Columbia sofreu a negativa do
autor de O jogo da amarelinha, porque
lhe parecia que dar aulas aí era coadunar com uma “fuga de cérebros” e validar
uma política imperialista daquele país que naquele momento tinha como ícone a
Guerra do Vietnã bem como sua política de quintal com a América Latina. O grande
articulador que tornou possível a visita em 1980 a Berkeley foi o escritor,
pesquisador e intelectual José Durand Flores, grande amigo de Cortázar que lhe
ofereceu umas “condições excelentes para trabalhar pouco e ler muito”.
Na terceira
aula aborda do tema da fatalidade. A atmosfera da sala de aula o aborrece e lhe
parece lamentável não poder reunir-se sob as árvores. “Se serve de consolo,
estou mais desconfortável que os senhores, porque esta cadeira é horrível e
mesa... mais ou menos igual”. Cortázar tem característica de professor
iconoclasta e cativa seu auditório com as leituras em voz alta de “O ídolo das
Cíclade”, “Continuidade dos parques” e “A autoestrada do sul”.
Na aula
seguinte, dedicada ao conto realista, já se vê um Julio Cortázar em plena
confiança com seus alunos. Antes de começar, agradece as conversas que tem tido
fora das aulas com alguns deles e as cartas que trazem perguntas, críticas e
pontos de vista diversos. Para o escritor são uma mostra de amizade. A fala
continua com a leitura de “Apocalipse de Solentiname”, e termina com uma
pergunta, numa digressão sobre a figura do poeta Ernesto Cardenal e depois o
salvadorenho Roque Dalton. São os anos 1980, plena fase histórica da escrita de
Cortázar e, na América Central a Revolução está a todo vapor.
A partir da
quinta aula Cortázar percebe que o tempo irremediavelmente começa a escassear. E
as conversas seguintes são dedicadas à musicalidade e o humor – com referências
a Ramón Gómez de la Serna e Boris Vian –, ao lúdico – fazendo brilhar em seus
cronópios famas e esperanças – alguns apontamentos sobre O jogo da amarelinha e O
livro de Manuel para terminar com um capítulo sobre o erotismo na
literatura.
A última
aula se converte num amontoado de perguntas talvez suscitadas pela ânsia de
aproveitar o melhor de Cortázar que responde fiel ao seu modo. Se cansa quando
tem de falar sobre Herberto Padilla, analisa as razões do escasso ofício da
crítica na América Latina, responde trivialidades relacionadas com sua altura e
seus antepassados, uma contida aluna brasileira o pergunta sobre a vitalidade
da literatura escrita em língua portuguesa, outro aponta algo sobre Luis
Buñuel, uma última estudante pergunta sobre velhos pianistas de jazz, e assim a
conversa vai findando como se cada um dos presentes soubessem que chegaram ao
fim de um tempo precioso.
O tempo de
um curso que foi algo mais. Um tempo que vale a pena recobrar neste grande
livro quando cem anos depois se redescobre o valor de Cortázar para a
literatura. O querido mestre Cortázar.
Ligações a esta post:
>>> Em 2013, quando este livro foi publicado nos países de língua espanhola, comentamos aqui.
>>> No nosso canal no YouTube publicamos uma série com três vídeos em que é possível ouvir alguns trechos das aulas de Cortázar
>>> Em 2013, quando este livro foi publicado nos países de língua espanhola, comentamos aqui.
>>> No nosso canal no YouTube publicamos uma série com três vídeos em que é possível ouvir alguns trechos das aulas de Cortázar
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