A máquina de escrever de Juan Rulfo

Por Pablo de Llano 

Recibo de compra e máquina de escrever com a qual Juan Rulfo escreveu Pedro Páramo


A máquina em que Juan Rulfo escreveu Pedro Páramo, o romance mexicano mais elogiado do século XX, é a mesma que o Exército dos Estados Unidos usou durante a Segunda Guerra Mundial: uma Remington Rand n.17, também conhecida como Modelo 17 ou KMC. Fabricada de 1939 a 1950. Preta, de ferro, 14,7Kg. Um artefato de fábrica do qual saiu uma obra-mestra que se preserva, sem tinta mas em boas condições, na casa de Clara Angelina Aparicio Reyes, companheira de Rulfo.

Seu companheiro a comprou no dia 10 de novembro de 1953, na loja da Remington Rand, no n.30 da Avenida Insurgentes da Cidade do México. Hoje, nesse lugar, é um edifício abandonado de quatro andares, marcado de cima abaixo por grafites.

Rulfo, que tinha 36 anos e dois filhos pequenos com Clara, pagou 1.000 pesos mexicanos pela máquina, um terço do que ganhava como bolsista do Centro Mexicano de Escritores, criado pela escritora estadunidense Margaret Shedd e financiado pela Fundação Rockefeller no tempo em que no México havia apenas apoio estatal à produção literária.

Coincide que naquele dia em que comprou a máquina, Rulfo foi retratado a lápis por sua amiga pintora Lucinda Urrusti, filha de republicanos espanhóis exilados da Guerra Civil. Aparece sereno, concentrado, com expressão de profundidade. Dez meses depois, entregava o romance que o converteria num mito da história da literatura espanhola.

Um ano antes da compra havia deixado seu emprego de caixeiro viajante da empresa de pneus Goodrich, que o havia deprimido, segundo explicou numa entrevista enviada por um jornalista em 1970 e que Rulfo respondeu mas nunca enviou de volta, ainda que – mistérios de seu hermetismo – tenha guardado o arquivo num de seus baús.

“Quando escrevi Pedro Páramo atravessava um estado de ânimo verdadeiramente triste”, lê-se em Notícias de Juan Rulfo (tradução livre), de Alberto Vital. “Sentia-me desgastado fisicamente como uma pedra debaixo de uma correnteza, pois levava cinco anos a trabalhar catorze horas por dia, sem descanso, sem domingos nem feriados. Correndo como um condenado todo o país para que a fábrica, a qual me levava ao colapso, vendesse mais que suas concorrentes”.

Rulfo conta o episódio que o impulsionou abandonar a empresa. Foi um dia que pediu uma troca de pneus e seus chefes o trataram como um qualquer: “Você já deve ter visto desses bastardos da indústria, filhos da grande indústria, ir todos juntos cortar os pneus para calcular o seu desgaste. Já para esse momento eu havia tomado uma decisão: mandá-los à merda”.

Página de datiloscrito com revisões de Pedro Parámo


Antes da Remington, não teve máquina própria. Supõe-se que para escrever Chão em chamas, o livro de contos com o qual estreou na literatura entre 1945 e 1952, aproveitou as máquinas que havia nos trabalhos pelos quais passou, entre eles o da sua odiada Goodrich e, antes dela, um escritório de imigração, ou ia pedindo máquinas emprestadas de amigos.  

Desses anos anteriores à Remington existem manuscritos de Rulfo com diferentes tipografias. Também folhas de caderno escritas com lápis ou com caneta em que copiava versões de poemas de Rilke e Mallarmé. Tinha uma caligrafia fina e inclinada.

Pode-se interpretar que a compra da Remington marca a convicção de Rulfo de estar ante um momento-chave de sua carreira. “A importância do projeto que vai começar já justifica não estar sujeito à vontade de estar submisso a uma máquina de quem sabe quem”, diz Víctor Jiménez, diretor da fundação que leva o nome do escritor, cuja sede é um simples apartamento onde viveu Rulfo com sua família.

Colocada sobre a mesa de centro da sala, a máquina se mostra como um cubo pesado. Alguém se pergunta se Rulfo poderia haver escrito um livro tão substancial como Pedro Páramo num MacBook Air de 1,08Kg e 11 polegadas com tecnologia Wi-fi. A máquina tem 51 teclas. Um diz: “Retornar”. Outra: “Outra margem”. Outra: “Caixa-alta”.

Numa página da web de colecionadores, se comenta sobre esse modelo: “Trata-se de uma máquina de escritório grande, pesada, robusta e com muitíssima personalidade”; “Tem um tato muito agradável, e produz uma impressão muito clara”; “É uma peça muito boa, e tem um tato quase Olivetti”.

A família conserva o datiloscrito original de Pedro Páramo. É o último material escrito na máquina de Rulfo ainda preservada. Poucos foram os textos escritos à mão por ele. Muito do que escreveu depois, destruiu; este próximo do desprezo que sentia o protagonista de sua obra pelos documentos escritos: “Com papéis ou sem eles”, diz no romance ao seu advogado Gerardo Trujillo, “quem pode discutir a propriedade do que tenho?”

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