A importância da “palavra” e do “silêncio” em Eugénio de Andrade
Por Maria Vaz
A poesia é feita de palavras e dizer isto pode parecer uma falaciosa
queda em algo evidente e simplório. Não obstante, as palavras nascem em campos
férteis em que a imaginação impera ou em que a memória se impõe. E tantas vezes
germinam no cantinho mais luminoso ou obscuro que possuímos invisivelmente:
nesse campo energético que transcende a aparência. Quantas vezes sentimos sem
racionalizar e quando percebemos, já dissemos o que talvez preferíssemos
ocultar? Paradoxalmente, muitas vezes, é a consciência da razão que, talvez por
medo (esse limitador existencial), nos inibe de dizer aquilo que, secretamente,
colore ou importuna de desejo ou rejeição o nosso encontro com outras psiques.
Não obstante, nem tudo é construído de razão e os poetas têm essa fome
de algo que os transcende, enquanto materializam palavras, enquanto símbolos de
poder articulados em exterioridades linguísticas, em uma folha em branco. Mas
nem tudo é linear: não há uma linha invisível a delimitar a razão da emoção ou
inconsciências sentidas de uma qualquer consciência racionalmente
interiorizada. E, em boa verdade, há outras tonalidades na construção de um
poema ou na forma mais ou menos consciente com que dizemos algo por
exteriorização verbal ou pela renuncia expressiva em que ressoa a paz ou um
grito de silêncio. E, além de tudo aquilo que a razão apreende ou é capaz de
analisar, há personalidades complexas em que a intuição perceptiva caminha de
mãos dadas com uma razão que a analisa e que, ainda que não a compreenda, a
segue.
Em Eugénio de Andrade a percepção da importância das palavras adquire o
vislumbre de um grito intimamente emocional, que caminha de mãos dadas com uma
mente perdida no refinamento da análise: uma deliciosa miscigenação de
liberdade com inibições de que, talvez, se quisesse libertar por meio do poema,
como se as palavras escritas constituíssem uma forma de superação daquilo que
se perdera por medo.
Sobre sentimentos envoltos na intensidade de palavras silenciadas,
apenas trazidas à luz na intimidade segura de um tempo já distante ou, ainda, sobre um amor que morreu abafado pela
complexidade de uma alma insegura, fica o seguinte excerto do seu poema
“Palavras Interditas”:
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
(…)
Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras. (…)
Mas, afinal, o que são as palavras? Essas minudências articuladas de
verdade e mentira, capazes de decidir, dar vida ou destruir tudo? Esses traços
desenhados que dizem apenas o possível do inominável? Não constituirão um
limite dos sentidos ante o indefinível que trazemos na alma? Sobre “A palavra”,
que tudo deturpa e apequena, ante um silêncio fértil, fica mais um excerto de
um poema de Eugénio de Andrade:
Entre a folha branca e o gume do olhar
a boca envelhece
Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama
Assim se morre dizias tu
Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura
Na porosa fronteira do silêncio
a mão ilumina a terra inacabada
Interminavelmente.
É por tudo isto que não nos podemos olvidar à apreciação do silêncio:
esse mundo em que a emoção desperta sem qualificações ou quantificações; esse
mundo em que a razão, ainda que viva, está condenada a perecer na consciência
das significâncias que a acção ou a amissão consciente evidenciam; esse
silêncio que, querendo auto-domínio, acaba por se expor; esse mistério em que
todas as hipóteses germinam e em que o mundo se diminui ou se agiganta; essa
fuga doce, em jeito de negação, ou esse grito contido por um qualquer medo
absurdo; essa paz e essa anulação; esse nada que se torna tudo no cruzamento de
dois olhares que se reconhecem.
Mas o silêncio é um campo dual. Sobre a ausência de palavras em que
germina o amor, paralisado pelo medo de amar, na sua consciência em que germina
uma sensação de bem-estar inominada e contagiante, deixo-vos o seguinte poema
da obra “Obscuro Domínio”:
Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,
quando azuis irrompem
os teus olhos
e procuram
nos meus navegação segura,
é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas.
Assim, podemos dizer que além do silêncio dos sentimentos racionalmente
inibidos, Eugénio de Andrade aborda a desnecessidade de palavras ante a
expressividade dos sentimentos declarados pela forma de exaltação dos sentidos:
Amar-te assim desvelado
entre barro fresco e ardor.
Sorver o rumor das luzes
entre os teus lábios fendidos.
Deslizar pela vertente
da garganta, ser música
onde o silêncio aflui
e se concentra.
Irreprimível queimadura
ou vertigem desdobrada
beijo a beijo,
brancura dilacerada (…)
Mas o silêncio, além de vida, pode ser uma forma percepção da morte. Um
momento de percepção interna de que os sentimentos morram: que se perderam no
quotidiano, se apequenaram e se destruíram pela falta de calor emotivo. Eugénio
de Andrade expressa muito bem, no seguinte poema, essa sensação telepática em
que morre o amor:
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
(…)
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Todavia, nem todo o silêncio é renuncia ou percepção da fragilidade das
linhas invisíveis que, por irmos alimentando de afecto, nos ligam uns aos
outros ou se quebram: há ainda o silêncio enquanto forma de liberdade, para que
possamos perceber o que queremos, o que nos faz realmente felizes ou que
caminho devemos tomar: é aí que se dão batalhas de Hidras entre os dualismos
racionais que a nossa própria mente cria ante a imperatividade das escolhas que
se impõem. E, chegados a este ponto da análise, não poderíamos deixar de invocar
o optimismo dançante do amor urgente, em busca de beleza e de paz. É ‘urgente’
silenciar apenas as palavras más:
É urgente o amor
É urgente um barco no mar
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
É diante da beleza deste grito de urgência que, em jeito de conclusão,
apelamos à paz, ao amor e, sobretudo, à liberdade: é aí que se encontra a
infinita possibilidade existencial, em que o ‘ser’ não se castra com base em
uma qualquer inibição, por um medo real ou inventado. Por isso, despeço-me um
hino a essa liberdade interior de encontrar a ‘palavra’ ou a felicidade que o
silêncio desvanece na existência:
Nada
nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra
Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença
Não colecciones dejectos o teu destino és tu
Despe-te
não há outro caminho.
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