Verdade ao amanhecer, de Ernest Hemingway

Por Pedro Fernandes

Ernest e Mary Hemingway em África entre 1953 e 1954. Foi das experiências neste último safári que nasceu o projeto de Verdade ao amanhecer, não concluído e publicado postumamente pelo filho Patrick.

Contam os registros sobre a aparição de Verdade ao amanhecer, de Ernest Hemingway, em 1999, que este foi um título marcado por uma série de burburinhos da mídia e com forte apelo midiático pelos grupos editoriais; também pudera, sempre quando morre um grande escritor fica a suspeita de que trabalhava em algo significativo e se, como foi o caso do estadunidense, nada é revelado nos primeiros anos mas só muito tempo depois, poderá ser um livro de compilação com receitas de bolo e esse mal aterrador do capital que rege com fina força desde sempre, e hoje mais, o mercado das publicações, explora a descoberta ao limite.

Verdade ao amanhecer ficou por escrever. Hemingway começou a feitura do livro, mas depois de abandonar o projeto nunca mais voltou a ele. Todo o heroísmo que aí se revela foi interrompido primeiro pela corrosiva consciência da degeneração do corpo e da força pelo tempo e depois pelo seu suicídio. Isso muito mais tarde; antes, foram outros projetos que atravessaram pelo caminho e, talvez pouco convincente do que fazia, preferiu apostar noutras situações que não de ver o livro pronto. Se o título agora é reeditado é graças ao caso de o filho do escritor, depois de reler os manuscritos deixados pelo pai, ter notado a possibilidade de organizar as cerca de 200 mil palavras que compõem o texto e dar a conhecer aos leitores; viu que, apesar de ser uma narrativa com fortes traços autobiográficos, prevalece o espírito da criação inventiva e por isso preferiu chamar, à revelia da crítica, de romance e não memórias, autobiografia ou coisa do gênero.

A reedição da obra por aqui – dentro do amplo projeto conduzido pela Bertrand Brasil – não veio movida por essas opiniões requentadas e muitas sem quaisquer serventias que não a de ser puro marketing. Ainda bem. Arrefecidos os ânimos, sempre se pode ler com mais sossego e maior cautela aquilo que nos é oferecido num primeiro momento como o inédito perdido e, depois de idas e vindas, achado. No caso de Hemingway é duplamente mais sadio porque não havemos de ler as recorrências de sua condição de homem politicamente incorreto seja por seu vigoroso perfil do macho viril, seja o seu gosto pelas armas, pela caçada, pelo viver perigoso que, claro, fez parte de sua biografia, mas não foi a condição a qual submeteu e limitou sua obra, mesmo esta, que tem como linha narrativa todos esses elementos citados.

Teve as mãos de Patrick, e por isso não pode dizer que Verdade ao amanhecer seja legitimamente um livro de Hemingway. Nesse processo, prevaleceu o zelo do filho pela memória do pai (ou mesmo a projeção e o reconhecimento de Hemingway sobre o anonimato de Patrick), mas uma obra assim restaurada é ainda a obra de seu autor? Foi com essa interrogação que li Verdade ao amanhecer e por não ser um especialista, sequer um leitor da obra do estadunidense, eis uma pergunta que ficará por responder. Pelo pouco que conheço, saio com a ideia de que aí se lê, duplamente, o que há de pior e o de extraordinário em Hemingway.

Escrito em primeira pessoa, um narrador que pelos dados apresentados se confunde com o próprio escritor, algo que me levou a discordar de Patrick, como grande parte da crítica já o fez; é que este não é um romance acabado. É um esboço e pelas relações de leitura de Hemingway no tempo quando se dedicou a escrevê-lo, possivelmente esperava que fosse se não o melhor o seu mais bem-acabado livro. Mas não é. Verdade ao amanhecer não foi lapidado como o escritor gostava de lapidar sua escrita, no limite de até que não restasse nada além do que deveria servir ao relato. Por isso mesmo, é um texto cuja força tem forte relação com a tom da crônica.

O narrador dirige um centro oficial de caça enquanto se preocupa não apenas com assuntos de seu interesse e do interesse do grupo mas com a possibilidade de chegada ao acampamento de uns membros do Mau Mau fugidos da prisão; é quando Mary, sua mulher, está às voltas no interesse de caçar um grande leão. São os acontecimentos dessa aventura e outros pormenores o que constitui o enredo da narrativa. E, por citar a narrativa, é necessário dizer que, se a estrutura ou mesmo algumas situações da escrita não são legítimas de Hemingway (não tenho critério para afirmar que isso tenha sido resultado de intervenções de Patrick mas devo confiar no veredito já revelado de que este é um livro incompleto), aparece aí, não poucas vezes, o ímpeto do estadunidense, seja no estilo (a concisão, ainda que não em plena forma) e as súbitas iluminações apoiadas no desenvolvimento das situações recobradas pelo relato que se entrelaça de maneira diversa, ora com as descrições de uma realidade e o necessário interesse de mostrá-la de forma dinâmica, ora marcada pela recomposição quase-abstrata e imóvel como se se tratasse de uma fotografia destrinçada pela pinça de um atento observador.

Outra coisa que se destaca de Verdade ao amanhecer, além dos laivos do estilo que o fez o romancista do seu século, o que se desprega é a naturalidade com que entrança vários estratos dramáticos – não só de situações como apontei mas de espaços onde transcorre a aventura (sim, esta é uma novela de aventura): o acampamento, o meio da natureza selvagem, as atmosferas dos membros do safári, das várias etnias e culturas, e da quantidade diversa de personagens em torno do casal narrador-Mary que entram e saem da narrativa.

Enquanto lia essa obra, visitei um texto algures que dizia, ainda que o leitor esteja farto de certas obras sobre safáris e as peripécias da caça – ainda mais em tempos de politicamente correto como os que vivemos – e saturado sobre as lendas de uma África majestosa e encantada (a que sempre me serviu de imaginário na infância) acabaria, esse leitor, por incorporar-se entre a narrativa de Verdade ao amanhecer e visitando com certo interesse todas as paisagens e, claro, participando ativamente das obsessões dessas duas personagens centrais da obra. O texto estava certo. Isso é possível de vivenciar na leitura, mas, é preciso não esquecer de citar, além do que já disse, o que há de pior na obra.



Quando falei sobre a capenga estruturação, pensava na recorrência dos diálogos que ora pretendem ser engraçados e findam por ser um bocado chato e sem empolgação, quase artificial; artificial porque são falas em que se revela uma figura totalmente alheia à imagem do próprio Hemingway. Por outro lado, isso serve para dizer que, numa revisão acurada é possível que o escritor tivesse dado outra forma ao texto a fim de despossuí-lo desse caráter duvidoso. Como não o fez, a sensação é que ao invés de vivenciar (como se espera num texto de natureza autobiográfica) o que fez foi inventar os acontecimentos sem muita convicção e o que poderia soar com verdade – não falo da verdade pura mas da verdade do texto – esboroa-se.  

O que se apresenta, por vezes, é um amontoado de situações que reforçam mais um estereótipo do narrador: o que transa várias vezes numa mesma noite com sua companheira, vive uma aventura amorosa com uma jovem africana, atinge o lombo de um leão em corrida com um disparo a não-sei-quantos metros de distância, consome bebidas alcoólicas com grande veemência a toda hora do dia, o que sai descalço e armado unicamente com uma lança para enfrentar sozinho uma temerosa noite. Isso tudo para um homem de mais de cinquenta anos soa com inverossímil (logo em Hemingway que exercitou-se ao extremo nesse quesito).

Isso, no entanto, não reduz em nada o valor da obra que, apesar de não ser o livro que eu indicaria para entrar na literatura de Hemingway não diria que lê-lo seria gastar tempo à toda. Não é.  É um texto que fecha uma das obras mais importantes do século XX, reafirma algumas das obsessões do seu autor bem como reelabora alguns matizes de sua personalidade. É, por fim, o texto em processo e por isso revela um tanto do próprio fazer literário do estadunidense. Tudo isso serve numa ocasião em que certa parte da crítica anseia por reinventar essa imagem de politicamente incorreto ou simplesmente afirmá-la com qualquer vagueza para continuarmos gostando de Hemingway tal como é; sem subterfúgios. 

Ligações a esta post:
>>> No Tumblr do Letras reunimos um conjunto de dez fotografias realizadas durante a estadia de Ernest e Mary Hemingway em África entre os anos de 1953 e 1954. Aqui.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual