Um panorama da poesia brasileira pelas lentes de Rubem Braga
Por Pedro Fernandes
Rubem Braga
viveu um dos períodos mais férteis e únicos da literatura brasileira; basta dizer
que no seu tempo estavam em plena forma Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes,
Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, Mário Quintana, João Cabral de Melo Neto,
Jorge de Lima, entre outros nomes. Não é possível que, no meio de toda essa efervescência
criativa até o pior dos poetas não se sentisse inclinado a cair no ofício do
verso. E assim, nessa tentação pelo trabalho do poeta, terão caído o próprio
cronista ou gente como Guimarães Rosa e Pedro Nava – também de seu tempo; o primeiro
e o último por cometer vez ou outra um poema não um todo ruins e logo passíveis de
pertencer a uma alcunha forjada por Manuel Bandeira, na sua já conhecida Apresentação da poesia brasileira, a do poeta bissexto.
Agora, se
esses nomes chegaram até nós, deve-se não somente ao caso da singularidade de
sua obra mas porque tiveram leitores, essa espécie tão rara nos dias atuais em
que todo mundo, grande parte sem nenhuma qualidade, arrisca-se a cometer
barbarismos em nome da cara na mídia como se esse fosse o grande achado para a
imortalidade, o que não é. Muitos dos chamados poetas bissextos nunca estiveram
motivados por essa força do mass midia e
nunca se sentiram à vontade para se colocar como poetas. De modo que, chamá-los
de leitores de poesia, seria até mais apropriado que o termo cunhado por
Bandeira. Sim, o leitor, por motivação, pode aventurar-se a escrever, mas sem que
isso possa influir na sua atuação profissional, por assim dizer. Entre ler e
cometer poemas há uma pequena distância, mas entre isso e ser um poeta a fronteira
é muito mais distante.
Ao dizer que
o leitor é o responsável por passar a obra adiante, reforço ainda outra compreensão:
num universo de faz de conta, como o que temos vivido, com a posição dos chamados
leitores sérios presos nos gabinetes acadêmicos ou por sua vez pelas conveniências
de amizade nesse extenso clube do tapinha nas costas e de reforçar uma genialidade
que não existe, a boa poesia (e a boa literatura, porque esse mal é comum a
todos os gêneros literários) finda por perecer. O leitor, principalmente o
leitor atento e crítico sobre o que lê, é condição essencial para a formação da
boa literatura, para renovação do cânone e para construção da linha que poderá
levar o grande escritor à eternidade sobretudo porque um bom leitor é leitor
dos autores do seu tempo e do passado.
O leitor de
poesia que foi Rubem Braga atende em duas situações específicas – e não é difícil
de compreender que se no seu tempo houvesse o blog ou as redes sociais, o
cronista dedicaria parte de seu tempo a alimentar aleatoriamente uma antologia
virtual. Sim, o bom leitor, não guarda para si o que lê; quer que o outro saiba
o que leu, quer conversar com o outro sobre o que leu e quer, às vezes, até que
o outro sinta o que sentiu enquanto se debruçava sobre determinada leitura. De certa
maneira é por isso que é existe a crítica literária ou os comentadores (hoje também
compostos, infelizmente e basicamente, por uma quantidade sem-fim de papagaios que replicam apenas o que é repassado
nos chamados releases fornecidos pelas editoras).
Duas das vezes
que assinalam a preocupação de Braga com a formação de um público leitor de
poesia, pela divulgação do trabalho de alguns de seus pares, pelo interesse de
diminuir o fosso sempre existente entre o leitura e a obra está nos dois
momentos estudados por André Seffrin, quem agora organizou A poesia é necessária: este título era o utilizado pelo cronista
numa seção que teve publicação entre 1953 e 1956 na revista Manchete e depois entre 1979 e 1990, ano de sua morte, na Revista Nacional. Nesses dois tempos, lembra Seffrin no prefácio da
antologia agora editada, Braga “publicou centenas de poetas, entre assíduos e
bissextos, lembrados e esquecidos, fervorosos e ocasionais, nacionais e
estrangeiros, de hoje e de sempre. Bastante atraído pelo soneto, por poemas de
amor e, vez ou outra, por poemas de protesto (estes, tanto na seara política
como na poética), Rubem não deixou de visitar na seção os mesmos temas
constantes em suas crônicas”.
Sem querer,
o nosso cronista trabalhou na criação de uma antologia invisível e dispersa sem
quaisquer interesses que não o de partilhar as leituras que o tocavam de uma
maneira ou de outra e cujo roteiro só agora começa a ser galvanizado por André Seffrin
que acerta em ao invés de trazer tudo às mãos dos leitores de hoje preferiu
reunir nesse momento apenas o grupo de poetas brasileiros. De cada um dos
poetas compartilhados por Rubem, também se limitou a compilar um só poema e dispôs
os poetas e poemas em ordem cronológica.
Dessa força
tarefa, é inegável o valor desse trabalho, sobretudo, porque nos revela uma
face que antecede a do próprio cronista: a de leitor. Agora, sem questionar o método
de organização do antologista – afinal toda metodologia se baseia em escolhas e
escolhas tem suas implicações pessoais – não é possível deixar passar
despercebida essas duas últimas atitudes que, se notáveis por um lado,
revelam-se como falhas na organização da obra.
A quantidade
de vezes que um poeta foi lido pelo cronista, por exemplo, é tarefa considerável
para compreender quais os autores de sua preferência ou quantas vezes Braga foi
capaz de retornar à obra de determinado poeta. Enquanto isso, a disposição em
ordem cronológica – do poeta mais antigo ao poeta mais contemporâneo – se por
um lado ajudará ao leitor na fixação do conteúdo, por outro desorganiza o
próprio itinerário de interesses do cronista, uma vez que está na
não-linearidade do conteúdo a não-linearidade da leitura e possivelmente o
instante de descoberta de Braga da obra de um determinado autor.
A grande
precisão de Seffrin, aliás, se esta é motivadora dessas duas falhas, é a responsável
por outros acertos, é a de deixar claro que, se não foi interesse explícito de
Rubem Braga organizar uma antologia de poesia universal, ante todas as suas
leituras cometeu mais que poemas, também se exercitou à sua maneira de cronista
em pensar sobre o fazer o poético, conforme se lê na crônica “O mundo especial
do poeta”. E dessa reflexão fica-nos a clara impressão de Braga sobre o poeta e
sua atividade.
“Cada homem
tem costume de falar de seu ofício, e o poeta é um homem como os outros. Mas, acontece
que, além de ser um homem como os outros, e sem deixar de sê-lo, ele tem isso
de grave e especial que é ser um homem a quem tudo concerne e de tudo tira seu
meu e seu fel. Esse menino que passa com um barulhento carrinho feito de
caixotes, a trazer verduras da feira; aqueles operários da construção, que,
depois de almoçar no botequim da esquina com uma cerveja preta, ficam um pouco
sentados na calcada, conversando à-toa, à espera do sinal para o trabalho; e o
próprio carrinho de tábuas de caixote, e a própria garrafa de cerveja preta –
tudo é matéria do poeta. Não concerne o peixe ao motorista nem a mangueira ao cirurgião;
mas o poeta tudo concerne, e nesse pedaço de jornal velho que o vento arrasta
pelo chão ele se inspira tão bem quanto naquela moça que saiu às compras, na
manhã fria do bairro, com calças compridas e um suéter vermelho. Apenas há
isto: que a esse farrapo de jornal ou aos olhos verdes dessa moça, pode acontecer
que tenham de esperar muitos anos para entrar em um verso do poeta, como podem
entrar de repente, atravessando um braço de mar de 1938 ou a tarde de um agosto
antigo”, diz o cronista.
Essa compreensão
é reveladora para os poemas apresentados por Rubem Braga, seu gosto poético, seu
interesse no fazer do poema ou mesmo numa ressignificação do lugar destinado à
poesia e ao poeta pela condição de sua necessidade ao dia-a-dia das pessoas, ao
propor que o poeta é gente de sua gente e não um iluminado preso na ascese do
espírito ou isolado socialmente na tarefa de burilar mundos que não condizem
com o mundo corriqueiro. É claro que esta é uma declaração tomada daquilo de que
se alimentava a visão de cronista (“homem de seu tempo”) e das convenções poéticas
de seu tempo, isto é, o desvinculamento da poesia como matéria meramente
sentimentalista ou subjetiva. Mas, é de sua convicção que o poema é uma construção
e que a inspiração do poeta se constitui na experiência com o mundo e as
pessoas. O poema é um texto de força retórica e pode ser tomado como compreensão
sobre o tempo com o qual se relaciona.
O trabalho
de André Seffrin reúne outras qualidades como a de tornar conhecido se não a obra
– que este não é o propósito de nenhuma antologia dessa natureza, tampouco a
partilha do leitor que como Rubem Braga dedica-se à compilar o esforço criativo
do outro, lançando-o a outros olhares – é o de reanimar alguns nomes muito
deles desconhecidos mesmo do leitor mais antigo aquele sempre movido por um
espírito de garimpagem. Sousa Caldas, Domingos José Martins, Maciel Monteiro,
José Bonifácio, Luís Delfino, Gonçalves Crespo, Luís Guimarães Júnior, Lúcio
Mendonça, B. Lopes, Augusto de Lima, Vicente de Carvalho, Emílio de Menezes,
Guimarães Passos, Felippe d’Oliveira, Menotti del Picchia, Alceu Wamosy, Raul
de Leoni, Tasso da Silveira, Ana Amélia Carneiro de Mendonça – e já é suficiente
– quais desses nomes circularão com a mesma desenvoltura na web que circulam Carlos Drummond de
Andrade, Mario Quintana, Jorge de Lima, Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Álvares de
Azevedo, Manoel de Barros, Castro Alves, João Cabral de Melo Neto, Lêdo Ivo,
Cacaso, Adélia Prado, Mário de Andrade, José Paulo Paes, Millôr Fernandes,
Ferreira Gullar – para citar alguns nomes? Ou quem teria o faro de averiguar em Machado de Assis e em Graciliano Ramos certo
tratamento concretista? Ou quem, ligado a muitos nomes de seu tempo terá participado
da construção de determinados poemas como “Soneto de preparação para meu
sessentenário”, de Vinicius de Moraes?
Entrar nesse
território é entrar num extenso labirinto de descobertas. Não as que ousamos
revelar aqui, mais preocupadas em ser curiosidades
a fim de aguçar a curiosidade do leitor sobre o valor inestimável que é essa
antologia e sim sobre essa variedade de mundos propiciados por cada um dos
nomes citados nesse itinerário. Essa é, afinal, a tarefa de toda antologia do
tipo: ser porta de acesso a outros universos. Se cada leitor buscar saber melhor
sobre esses nomes, já o trabalho de Rubem Braga ganhará outra dimensão ainda
mais forte que a alcançada pela organização dessa reunião de poemas e
simultaneamente fará valer o esforço de André Seffrin. Certamente que no caso
dos poetas estrangeiros, a tarefa de uma antologia dessas passa por outras
burocracias quanto aos direitos de uma publicação, mas, seria de muito
bom-grado a publicação de segundo volume com esses poetas.
Comentários