Tristan Tzara: do caos à ordem
Por Neiva Dutra
Tristan Tzara, cujo verdadeiro nome
era Samuel Rosenstock, nasceu em Moinesti, na Romênia, em 16 de abril de 1896.
Começou a escrever poesia muito cedo e, aos dezessete anos, já era colaborador
de uma das revistas de vanguarda de seu país, Simbolul.
Em 1915, adotou o pseudônimo pelo
qual ficou conhecido e que significa “triste em meu país”. No mesmo ano
mudou-se para Zurique, para estudar ciências humanas e filosofia. Ali se
converteu em um dos fundadores do Cabaré Voltaire, um clube artístico onde os dadaístas passaram a se reunir desde então; no espaço havia um teatro e uma sala de exposições e conferências.
Junto a Jean Arp e Hugo Ball,
foi um dos criadores e líder do movimento dadaísta. Em 1918, subscreveu o
Manifesto Dadá, a declaração programática mais importante do movimento que
revolucionaria a arte através da sua negação, buscando romper com todos os parâmetros
estabelecidos ao longo da história da arte ocidental.
Autor de uma importante produção
literária, cujas raízes se encontram no niilismo, investindo contra os valores
culturais, estéticos e morais da sociedade – inclusive as convenções
linguísticas tradicionais –, é uma das figuras destacadas da vanguarda
artística, para a qual contribuiu com uma criação pessoal singular, lançando as
bases para outras correntes vanguardistas inovadoras e fecundas, como o
Surrealismo.
Entusiasmado desde a infância por
uma vasta curiosidade intelectual, em Zurique, junto a outros artistas e
intelectuais, como os escritores Hugo Ball e Richard Huelsenbeck, o pintor Jean
Hans Arp e o artista romeno Marcel Janko, fundou, em 1916, o movimento Dadá,
que canalizava as inquietudes artísticas e suas ideias transgressoras sobre a
arte, o pensamento e a cultura tradicionais.
Tzara foi o autêntico espírito
impulsionador do movimento que fundou; uma corrente estética rigorosamente nova,
capaz de enfrentar as normas estabelecidas.
No transcurso de 1916, na
publicação Cabaré Voltaire Tristan Tzara defendia veementemente sua
concepção radical da poesia, vista como uma força viva que não necessitava da
escrita para manifestar sua força expressiva, podendo ocorrer sob os mais variados
suportes e situações, à margem da formulação tradicional.
A primeira obra-prima de Tristan
Tzara surgiu em consequência das primeiras movimentações do dadaísmo, sendo
intitulada La première aventure céleste de Monsier Antipyrine. No ano
seguinte, publicou outros escritos poéticos nas revistas parisienses Sic e Nord-Sud,
mas sua grande estreia no panorama literário europeu do início do século XX
ocorreu em 1918, quando foi impresso o célebre Manifesto Dadá, que defendia,
mais do que postulados estéticos concretos e bem definidos, uma atitude rebelde
e transgressora diante de qualquer manifestação da cultura tradicional:
"Todo produto da aversão
suscetível de se tornar uma negação da família é dadá; protesto com toda a
sua força em ação destrutiva: DADÁ; conhecimento de todos os meios
rejeitados até agora pelo sexo pudico do compromisso cômodo e da polidez: DADÁ;
abolição da lógica, dança dos incapazes de criação: DADÁ; de toda
hierarquia e equação social estabelecidas pelos valores por nossos
criados: DADÁ; cada objeto, todos os objetos, os sentimentos e as
obscuridades, as aparições e o choque preciso de linhas paralelas, são meios
para o combate: DADÁ; abolição da memória: DADÁ; abolição da
arqueologia: DADÁ; abolição dos profetas: DADÁ; abolição do futuro: DADÁ;
crença absoluta indiscutível em cada deus produto imediato da
espontaneidade: DADÁ; salto elegante e sem preconceito de uma harmonia
para outra esfera; trajetória de uma palavra atirada como um disco sonoro
grito; respeitar todas as individualidades na sua loucura do momento: séria,
temerosa, tímida, ardente, vigorosa, decidida ou entusiasmada; despojar sua
igreja de todos os acessórios inúteis e pesados; cuspir como uma cascata
luminosa o pensamento desagradável ou amoroso, ou acalentá-lo –com a viva
satisfação de que tudo é igual – com a mesma intensidade na moita, livre de
insetos para o sangue bem-nascido, e dourado com corpos de arcanjos, com sua
própria alma. Liberdade: DADÁ DADÁ DADÁ, alarido de dores crispadas,
entrelaçamento dos contrários e de todas as contradições, dos grotescos, das
inconsequências: A VIDA".
Em suas primeiras manifestações
poéticas apresenta-se uma busca de aniquilar a linguagem tradicional,
aspirando também à destruição dos códigos morais e culturais de um mundo que,
para os dadaístas, encontra-se em franca decomposição. Não se trata, portanto,
da mera proposta de revitalização estética da arte e da literatura, mas de uma
poderosa força destrutiva que quer minar a sociedade agindo sobre um de seus
pilares básicos: a linguagem e o conjunto de códigos e valores que encerra.
Também em 1918, um sugestivo e
revelador livro de Tristan Tzara, Vingt-cinq poèmes, no qual o
poema "La grand complainte de mon obscurité trois" representou um texto
totalmente alheio aos significados lógicos da linguagem, converteu-se em um dos
principais precursores do Surrealismo (principalmente em relação à escrita
automática).
Como poeta, adverte que seus únicos
instrumentos de luta são as palavras e que o campo de ação no qual exercita sua
proposta revolucionária é a linguagem. Sua poesia juvenil busca a decomposição
da sintaxe, a associação de termos incompatíveis dentro do pensamento lógico, o
acúmulo de ritmos caóticos que acentuam a sensação de ruptura e,
definitivamente, a essência de uma nova poesia derivada da fragmentação e da
desconstrução do poema tradicional.
O constante apelo ao humor, cujos
efeitos cáusticos e corrosivos contribuem para a consecução de um espaço
aparentemente absurdo onde se movem os dadaístas, não atenua a firmeza moral de
suas ideias e intenções: na verdade, tem a consciência de propor uma ruptura
ética e estética radical, “que nasce de uma exigência moral, de uma
vontade implacável de alcançar um absoluto moral, do profundo sentimento que o
homem, no centro de todas as criações do espírito, expande para afirmar sua
preeminência sobre as noções empobrecidas da substância humana”:
O grande lamento da minha
árvore da obscuridade
Onde nós vivemos as flores dos
relógios pegam fogo e as plumas
circundam o brilho na distante manhã
de enxofre as vacas lambem
as rosas de sal
meu filho
meu filho
deixa-nos sempre arrastar pela cor
do mundo
que parece mais azul que o metro e a
astronomia
somos demasiado magros
não temos boca
as nossas pernas são demasiado
hirtas e batem uma na outra
as nossas caras não têm forma como
as estrelas
pontos de cristal sem força basílica
queimada
louca: as fendas em zig-zag
telefona
morde a manipulação liquefeita
a arca
escala
astral
memória
para o norte através da sua dupla
fruta
como carne crua
fome fogo sangue
(Vingt-cinq poèmes, 1918)
A partir de 1919, Tzara começou a
entrar em contato com outros pioneiros da estética surrealista, como André
Breton, Philippe Soupault e Louis Aragon, passando a ser colaborador da
revista Littérature, porta-voz do movimento surrealista.
Em 1920 mudou-se para Paris, onde
publicou uma nova coletânea de poemas – Cinéma calendrier du coeur abstrait
maisons. Dois anos após, em virtude de uma polêmica pública com André Breton,
abandonou o surrealismo.
Com o livro De nos oiseaux, em
1923, reafirmou publicamente sua condição de líder do movimento dadaísta e
com Sept manifestes dadá, em 1924, traçou uma célebre distinção entre
poesia dirigida (cultivada pelos escritores apegados à tradição) e poesia
latente (postulada pelo dadaísmo, baseada em um niilismo radical que repudiava
convenções morais, sociais, estéticas e linguísticas):
Receita para fazer um poema Dadaísta
Pegue um jornal.
Pegue uma tesoura.
Escolha no jornal um artigo com o
comprimento que pensa dar ao seu poema.
Recorte o artigo.
Depois, recorte cuidadosamente todas
as palavras que formam o artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Seguidamente, tire os recortes um
por um.
Copie conscienciosamente pela ordem
em que saem do saco.
O poema será parecido consigo.
E pronto: será um escritor
infinitamente original e duma adorável sensibilidade, embora incompreendido
pelo vulgo.
Nessa mesma linha ideológica
surgiram outras publicações, como Mouchoir de nuages (1925), Indicateur
des chemins de coeur (1928), L'arbre des voyageurs (1930) e L'homme
approximatif (1931). Nesta última, predomina um fluxo
constante, virulento e primitivo de imagens caóticas, que parece aludir,
simbolicamente, à desordem inicial da criação. Expressa a raiz niilista do
dadaísmo, que fora identificada um ano antes, na obra Le papier collè ou
le proverbe en peinture: a natureza informe, imensa e indeterminada do
pensamento humano e a angústia que se apodera de quem tenta reduzir este vasto
domínio à linguagem da lógica e das palavras.
No início dos anos 1930, nas páginas da revista Le Surréalisme au Service de la Révolution, Tzara
estampou seu célebre "Essai sur la situation de la poésie", brilhante
contribuição cultural e teórica ao estudo da nova criação poética da vanguarda.
Tendo se aproximado da ideologia marxista, esse choque com seu espírito
indisciplinado e niilista gerou uma série de conflitos internos e tensões
externas e, em última análise, também certo equilíbrio linguístico e conceitual
em seus textos, tanto no vocabulário quanto na composição.
Entre 1934 e 1937, residiu a maior
parte do tempo na Espanha, onde foi nomeado secretário do Comitê para a Defesa
da Cultura Espanhola. Nessa época havia acrescentado vários livros à sua
extensa bibliografia, como Où boivent les loups (1932), L'antitête (1933), Sur
le champ (1935), Grains et issues (1935), La main passe (1935), Ramures (1936)
e Vigies (1937).
Durante a Segunda Guerra Mundial, por causa de sua afiliação às ideias comunistas, foi obrigado a refugiar-se no sul da França, onde participou, de forma clandestina e ativa, na Resistência Francesa, trabalhando como elo entre os diversos intelectuais que se opuseram à ocupação alemã e onde escreveu La deuxième aventure
céleste de Monsieur Antipyrine (1938) e Midis gagnés (1939), nos
quais demonstra uma evolução para o equilíbrio e a serenidade experimentada
desde o princípio da década de trinta.
Com o fim da guerra, plenamente
consagrado como uma das principais figuras das letras francesas do século XX,
participou da fundação do Instituto de Estudos Ocidentais e passou a realizar
conferências nas quais abominava a guerra, mas também a mentalidade burguesa
contemporânea, cujo conservadorismo ético e estético sempre havia permitido a
existência das condições sociais e políticas que deram origem à guerra. Os
textos desses discursos foram reunidos em um livro intitulado Le
surréalisme et l'après-guerre, de 1947, mesmo ano em que publicou o livro de
poemas La fuite.
Com a passagem dos anos e superando
em parte esse ímpeto transgressor, sua poesia foi sendo contagiada por
preocupações sociais, mais voltadas para a realidade de seu tempo. Sem
renunciar à vocação renovadora e purificadora de seus princípios dadaístas,
deixou que suas inquietações sociopolíticas (sobretudo pela aproximação ao
marxismo) aflorassem em seus versos, que começaram a se enriquecer com
abundantes elementos humanos, profundos e graves.
Cada vez mais sóbria e depurada, a
poesia da maturidade de Tristan Tzara alcançou um novo alento e uma dimensão
humana profunda, que mostra seu interesse pela fraternidade entre os povos,
pelo destino comum da coletividade, sobre o papel do homem na sociedade de seu
tempo etc.
O deslocamento da sintaxe, a
associação de imagens contraditórias, a busca constante da surpresa na
abstração ou no jogo de palavras, deram lugar, nesta última etapa de sua
produção poética, a uma sóbria, serena e equilibrada reflexão que, após
constatar o vazio e a náusea da existência, volta-se para o ser humano,
buscando nele algum significado.
Os sinos tocam sem razão e nós
também
os olhos das frutas nos olham
atentamente
e todas as nossas ações são
controladas não há nada
oculto.
(L'homme approximatif, 1931)
Nos anos posteriores, concentrou-se
fundamentalmente na crítica e na investigação literária, com trabalhos
dedicados ao estudo da poesia francesa medieval e à vida e obra de François
Villon. Entre os vários livros produzidos
nessa época, destacam-se: Une route seul soleil e Ça va (1944), Le
coeur à gaz, Entre-temps, Le Signe de vie e Terre
sur terre (1946), Morceaux
choisis (1947), Phases e Sans coup férir (1949), Parler
seul e De mémoire d'homme (1950), Le poids du
monde (1951), La prèmière main (1952), La face intérieur e Picasso
et la poésie (1953), L'Egypte face à face (1954), A haute flamme, La
bonne heure, Miennes e Le temps naissant (1955), Le
fruit permis (1956), Frère bois (1957), La rose et le
chien (1958), Le secrete de François Villon (1961), Juste
présent (1962), Lampisteries (1963) e Cinq poèmes oubliés (1965).
Foi um símbolo do envolvimento judeu
na arte de vanguarda e na política de esquerda e, nos anos 1930, converteu-se
no alvo habitual dos ataques antissemitas. Durante a Segunda Guerra Mundial,
suas obras chegaram a ser proibidas na Romênia. Em 1947 obteve a nacionalidade
francesa e abandonou definitivamente seu país natal. Faleceu em Paris, em 25 de dezembro
de 1963.
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Neiva Dutra é licenciada em Letras / Língua e Literaturas de Língua Portuguesa, profissional em revisão de textos e copydesker, autora do blog De Anima Verbum, leitora voraz, apaixonada pela arte e a cultura em todas as suas manifestações e em toda sua profundidade.
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