Os laivos de metafísica na obra de Nuno Júdice
Por Maria Vaz
Nuno Júdice é um dos poetas contemporâneos que constam da minha lista
de preferências: aquela lista de poetas a que se recorre em dias de reflexão.
Quem disse que as palavras alinhadas em verso não podem ser uma espécie de
religião? É que, de facto, miscigenam-se com o culto ao à beleza e com aquilo
que aquela, tantas vezes, esconde, na sua forma ponderada de sublimação do
real.
Repetidas vezes damos por nós a questionarmos filosoficamente o sentido
dos ‘pequenos nadas’ que a vida quotidiana nos trás ou as grandes questões a
que apenas a imaginação, ancorada na crença ou na medida da consciência que
possuímos, permite conjecturar. E não será o pensamento mais racional uma mera
conjectura falaciosamente assente em certezas falsificáveis? Nestes domínios a
tolerância carrega consigo a aversão a dogmatismos, a restrições de uma moral
que perecerá, na medida em que o bem e o mal acarretam, necessariamente, uma
construção a partir de um referencial subjectivo. Enfim. Voltando-nos para a
obra de Nuno Júdice, encontramos facilmente a vida como um dos cernes
temáticos: como um mistério; uma mera parte de um todo maior; um ponto de
encontro entre o passado e o futuro; como um campo de possibilidades em que a
intuição aflora e traz percepções que a razão negaria. Vejamos um excerto do
seu poema “A vida”, da sua obra Teoria geral do sentimento:
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória.
A obra de Nuno Júdice flui em um sentido etéreo, procurando expor as
experiências do espírito em deterimento dos normais pensamentos que a
concreticidade mental faz resvalar para o plano material da existência que
desvaloriza uma qualquer essência que a possa preceder. A leitura da obra deste
poeta constitui uma espécie de viagem a um mundo de sentidos e pensamentos
imaterializáveis, em que ganham lugar as recordações e a criação de profecias
ante percepções inominadas. Talvez seja por esse motivo que os seus poemas
versem, sobretudo, sobre o amor: esse ‘quid’ inexplicável que faz morrer, ainda
que por momentos, uma razão pretensamente imortal. No fundo, a percepção com que
fico, é que a obra de Júdice deambula entre várias transformações ontológicas
geradas pelo ‘sentir’: a transformação imposta por algo que suplanta o ‘eu’ e
qualquer vontade racionalizada que daí advenha. Sobre isto, vejamos esta
passagem do seu poema “Arte Poética”:
Colhi esse poema. Meti-o dentro de água,
como a rosa, para que flutuasse ao longo de um rio
de versos. O seu corpo, nu como o dessa mulher
que amei num sonho obscuro, bebeu a seiva
dos lagos, os veios subterrâneos das humidades
ancestrais, e abriu-se como o ventre da
própria flor. Levou atrás de si os meus olhos,
num barco tão fundo como a sua própria
morte.
Abracei esse poema. Estendi-o na areia
das margens, tapando a sua nudez com os ramos
de arbustos fluviais. Arranquei os botões
que nasciam dos seus seios, bebendo a sua cor
verde como os charcos coalhados do outono. Pedi-lhe
que me falasse, como se ele só ainda soubesse
as últimas palavras do amor.
E, dito isto, parece-nos que a poesia funciona, aqui, como um mecanismo
escapista a uma realidade cinzenta, preferindo o poeta entregar-se ao devaneio
de um amor, talvez idealizado, que, muito embora não atinja os seus elevados
ideais, vá perpetuando o ciclo evolutivo de transformações do ‘eu’, trazendo
consigo a esperança de uma espécie de transcendência do ‘conhecido’. Daí que
tenha escrito o seguinte, no seu poema “o amor, um dever de passagem”:
(…) Vou partir pelo teu rosto para mais longe.
A minha fome é ter-te olhado
e estar cego. Agora eu sei que te abres para o fogo
do relâmpago.
Tenho a convicção dos temporais.
já não sei nem o que digo nem o que isso importa.
Foi esse ‘amor’, que tanto percorre a sua escrita e inunda o seu
pensamento, que fez com que o poeta não descurasse de uma reflexão
poético-filosófica acerca da sua fenomenologia: uma resposta que encontra em
pequenas coisas, que vão da imperceptibilidade à compulsão de querer ter por
perto, de querer estar junto, ainda que não se racionalize o que, em um plano
supra-racional, se torna evidente. E esta sua visão de que o amor se inicia
antes sequer de percebermos, em uma dimensão anímico compulsiva, faz-nos
vislumbrar o sentimento como uma espécie de magia que inunda o coração. Fica a
sensação de que o poeta nos faz tocar a questão existencial de ‘um pasmo
essencial’, em que se dá um desfasamento entre a percepção e uma realidade que
já existia, à priori, e independentemente dessa ‘descoberta’, que poderia
passar ao largo de uma vida. Nas palavras de Nuno Júdice:
Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.
Mas a temática do amor encontra uma complexidade antagónica, que se
encontra na necessidade ansiosa de viver algo em um agora sem fim: algo
puramente material, na fruição dos sentidos mais densos, em jeito de uma
espécie de expansão existencial desprovida de sentido, em que a mente se inunda
de ideais que suplantam a realidade, em que se abraçam vazios e em que olhares
reflectem outros, interiormente queridos, longínquos. Leia-se uma parte do seu
poema “Carpe Diem”:
(…) nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio.
(…) Louco, ignora que o destino, por vezes,
Se confunde com a brevidade do verso.
É a esses vazios existenciais que parece dirigir o poema “Requiem por
muitos Maios”, também da sua obra Teoria geral do sentimento, que podemos ler
abaixo:
Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?
No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.
E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles – os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer – nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.
Conheci tipos que viveram muito – os
que nunca souberam nada da própria vida.
E para terminar, não poderíamos deixar de abordar a temática do
destino: esse vislumbre metafísico que perpassa a sua obra, em nuances que
superam qualquer razão vincada, libertando-nos, uma vez mais, de um mundo de
empirismos: uma espécie de destino desencadeado pela essência que a precede,
mas que podemos transformar. Nuno Júdice parece aludir ao destino como se de
uma ordem do universo se tratasse: algo que vem do ‘eu’, mas que existe independentemente
dele: algo gravado na alma, que existe
independentemente do corpo, de que nos falava Descartes no seu Discurso do
Método; como se a evolução da
consciência permitisse compreender os mecanismos que ligam o ‘eu’ ao ‘outro’,
sem dependência de um qualquer cruzamento de olhares; como se miscigenássemos
princípios herméticos com as teorias budistas que suplantam os ‘véus de Maya’.
Em jeito de conclusão, deixo-vos um passagem carregada de misticismo,
que me fez perder em pensamentos – embebida em uma qualquer tentativa de
apreender a ‘eternidade’ –, da sua obra Meditação
sobre Ruinas:
Os olhos não sabem, ainda, que a visão profunda
os dispensa. Por dentro, o olhar implica a noite;
e é da fusão das formas no negro último do céu,
para além da superfície das estrelas e das nebulosas
que essa verdade brilha com a sua exacta eternidade.
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Beijos.