O mágico e umbral: as biografias conjeturais de Hermann Hesse
Por Alfredo
Monte
1
Não deixa de ser um fato inusitado, apesar
de auspicioso, a Record publicar uma edição comemorativa dos cinquenta anos da
tradução de Ivo Barroso para Demian – História da juventude de Emil
Sinclair1. Texto-ícone do
século vinte, fez a cabeça de muitos. Nele encontramos a famosa e nietzschiana
frase: «Quem quiser nascer tem que destruir um mundo».
Hermann Hesse (1877-1962) publicou-o em
1919 sob pseudônimo e houve muita especulação na época sobre a verdadeira
identidade do autor. Quando foi descoberta, o livro passou a ser considerado
uma espécie de divisor de águas na sua trajetória artística. E um grande salto,
constata-se hoje, embora na memória de quem aqui escreve e tenham permanecido,
durante anos, após a primeira leitura, muitos aspectos irritantes e
literariamente derrisórios, a saber:
1) essas
pessoas (guias, como são denominadas) que aparecem do nada e que dão ao leitor
a ideia de que o universo inteiro está voltado para o destino do protagonista,
Emil Sinclair;
2) os
símbolos (o pássaro heráldico meio gavião meio fênix, o sinal de Caim, a mãe
que se chama Eva), que são exaustivamente explicados para o leitor, como se
este fosse retardado;
3) a
ausência absoluta de um pano de fundo mínimo para as reviravoltas íntimas do
personagem, já que todos à sua volta parecem fantasmas;
4) os
diálogos irreais e inverossímeis, e, se pensarmos na faixa etária dos
personagens (se é que se pode chamar de personagens seres tão esquemáticos,
pedantes e pomposos).
Recapitulemos o fio de enredo: Emil
Sinclair, aos 10 anos, oriundo de uma família extremamente religiosa, fica à
mercê de outro menino, Kromer, que faz chantagem com ele. Um terceiro garoto,
Max Demian, forasteiro que começou a estudar no mesmo colégio de Sinclair,
aproxima-se dele e consegue afastar Kromer.
A
experiência com Kromer faz Sinclair entrar em contato com o que ele chama de mundo
sombrio, subjacente ao mundo luminoso representado pela família.
Demian revela, através de uma reinterpretação da história de Caim, que não
existe tal dicotomia: o mundo é ao mesmo tempo luminoso e sombrio. Mas Sinclair
ainda não está preparado para aceitar tal verdade (e «the readness is all”», como
diria Hamlet), e através de suas experiências como adolescente mantém uma visão
dualista: ora cai na esbórnia, na dissipação, ora cultua a pureza e a santidade2.
Durante essa trajetória, Demian manteve-se
afastado da vida de Sinclair e este teve como único amigo o organista (e
sacerdote frustrado) Pistórius, que lhe ensina tudo sobre Abraxas, divindade da
Antiguidade a um só tempo Deus e Demônio, congregando em si o luminoso e o
sombrio.
A aproximação da guerra é o paralelo coletivo
da busca de Sinclair: ele tem de sair da casca, isto é, destruir um mundo, para
nascer um novo homem; e o mundo carcomido da Europa talvez tenha de passar pela
destruição para renascer como a ave fênix: «A ave sai do ovo. O ovo é o
mundo. Quem quiser nascer tem que destruir o mundo».
As quatro objeções mencionadas só
funcionam se forçarmos a barra para enquadrar convencionalmente Demian como
romance ou novela. Sem essa muleta classificatória, o texto revela suas
qualidades e o seu alcance. E nos damos conta de que foi escrito por um poeta
que se exprime num relato lírico, projeção poética de experiências
pessoais, que não demanda qualquer verossimilhança, pois se fundamenta numa
simbologia particular. Que se aceita ou não.
Só mais tarde é que Hesse conseguiu se
reequilibrar como narrador, conservando as conquistas de Demian. Surgiram,
assim, seus autênticos romances: O lobo da estepe, Narciso e Goldmund e O
jogo das contas de vidro.
Vencidos (parcialmente, é preciso confessar)
certos preconceitos literários, é fascinante observar, numa releitura, como
Hesse trabalha com vários elementos do imaginário cristão (a história de Caim,
a figura de Eva, os dois ladrões crucificados com Jesus, a luta de Jacó com o
anjo) para lançá-los de encontro a conceitos do pensamento religioso oriental,
principalmente aqueles que são o que talvez de mais coerente e pertinente se
tenha pensado sobre o mundo e a existência, isto é, aqueles que se baseiam na impermanência de
todas as coisas, mesmo as que amamos; e, além do orientalismo (que daria origem
ao seu belíssimo livro seguinte, Sidarta, de 19223), a presença
da psicanálise de feição junguiana, com o uso insistente dos sonhos e do
inconsciente coletivo, sem contar uma inequívoca tendência edipiana.
Aliás, tudo isso está representado no texto
pela mudança de significado de outro símbolo importante: o umbral (ou soleira)
que a princípio servia para delimitar o mundo luminoso e o mundo sombrio, e
depois é retomado como símbolo de passagem, mas uma passagem que faz tudo
convergir e que congrega tudo, inclusive as contradições.
E se o livro parecia antes subjetivo em
demasia, agora parece simplesmente individualista4. No melhor
sentido da palavra. Num mundo uniformizado, onde todos querem se nivelar pelo
denominador comum do consumo e da facilidade, ler o processo de constituição de
uma individualidade verdadeira e poderosa é algo eletrizante. O próprio texto
encarrega-se, por sua vez, de investir contra o rebanho, a submissão à massa:
«Os filhos
de Caim, marcados com o "sinal", atemorizavam os demais, e aquele
sinal passou a ser explicado não como a distinção que realmente era, mas
exatamente como o contrário. Passaram a dizer que os homens assim marcados eram
pessoas suspeitas e ímpias, o que, na verdade, ocorria. Pois os homens
corajosos, as pessoas de caráter, sempre inquietaram os demais. Tornava-se,
portanto, francamente incômoda a existência de uma raça especial de homens sem
medo e capazes de infundir medo aos demais, e então lhes atribuíram um apodo e
uma lenda amarga para se vingarem daquela raça e justificarem de certo modo os
temores sofridos.... Entendes?
— Acho que sim... Mas... nesse caso, Caim não
era mau e toda a narração da Bíblia está errada.
— Está e não está.... Essas histórias da
remota antiguidade são sempre em essência verdadeiras, mas nem sempre foram
recolhidas e explicadas com toda a garantia de exatidão. Para resumir, minha
opinião é que Caim era um verdadeiro homem, e lhe arranjaram essa história
porque o temiam. A origem do assunto não passou de um murmúrio, como tantas
dessas coisas que se contam por aí; mas a fábula tinha cunho de verdade no que
diz respeito a Caim e seus filhos trazerem um sinal e se diferençarem dos
demais homens... ».
2
Em Autobiographical
writings, traduzido no Brasil como Minha vida, Theodore Ziolkowski reuniu
doze textos autobiográficos de diversas épocas, feições e níveis de qualidade.
Nenhum deles é desperdício de tempo, três são especialmente lindos.
O meu
favorito, de longe, é Hóspede do Balneário (1924); como esquecer, contudo,
A infância do mágico (1923) ou Autobiografia resumida (1925)?
Este último é muito curioso e instigante: até certo ponto, Hesse parece estar
nos contando de uma forma poética e concentrada os caminhos da sua vida, mas em
determinado ponto, assim como fez com seus personagens nos romances, ele
inventa um destino biográfico para si, fazendo um exercício de biografia
conjetural. Assim, por exemplo, a persona, ou eu lírico, que nos narra sua
autobiografia mostra como anelou por ser poeta desde a adolescência («A questão
era a seguinte: a partir do meu décimo terceiro ano de idade tornou-se claro
que eu queria ser poeta ou nada»). Vocação assumida e até bem-sucedida enquanto
carreira profissional, por incrível que pareça, de repente uma terrível cisão
interna, que a Primeira Guerra acarretou, fez com que abraçasse um pacifismo
revoltante para seus concidadãos e amigos, amargando um terrível isolamento («vi-me
denunciado como traidor»).
O sofrimento e os conflitos, tanto externos
quanto interiores (faz um severo exame de consciência, «obrigado a
procurar a causa de meus sofrimentos não externamente, mas dentro de mim»)
desemboca numa radical transformação pessoal. Nós sabemos, por Demian, que
isso aconteceu de fato com Hermann Hesse. Mas ele transforma seu poeta
num pintor, envolvido também com magia, que acaba sendo preso («Com mais de
setenta anos de idade, logo após ter sido escolhido por duas universidades para
receber graus honorários, fui levado a julgamento por ter seduzido uma jovem
usando mágica»). Na prisão, ele pinta uma paisagem (atravessada por um
trem) na parede da cela e a fantasia biográfica vai se encaminhando para um fim
digno de Borges:
«Foi diante
desse quadro em minha cela que eu me achava um dia, quando os guardas chegaram
mais uma vez, com seu chamamento tedioso e tentaram arrancar-me de minha
atividade feliz. Nesse momento senti cansaço e algo como uma revolta contra
toda aquela azáfama, aquela realidade brutal e sem espírito. Se não me
permitiam ficar com meu inocento jogo de artista, sem ser perturbado, nesse
caso devia recorrer àquelas artes mais severas a que havia dedicado tantos anos
da vida. Sem a mágica, aquele mundo era intolerável.
Chamei ao espírito a fórmula chinesa, mantive-me por um minuto com a respiração
suspensa e me libertei da ilusão da realidade. Depois solicitei afavelmente aos
guardas que fossem pacientes por mais um momento, já que tinha de entrar em meu
quadro e procurar alguma coisa no trem. Eles riram como costumavam fazer, pois me consideravam
mentalmente desequilibrado.
Foi quando me tornei pequeno e entrei em meu quadro, embarquei no trenzinho e
segui nele para o túnel pequenino e negro. Por algum tempo a fumaça de fuligem
continuou a ser visível, saindo do buraco redondo, depois se dispersou e
desapareceu, e com ela todo o quadro e eu com ele.
Os guardas ficaram para trás, tomados de grande embaraço».
Esse texto fantasioso e notável prolonga a
vivência descrita em Infância do Mágico, onde são acrescentados aos
detalhes reais (ele evoca os pais, o avô de uma forma extraordinária) elementos
“fantásticos” que, na verdade, reproduzem as percepções de qualquer criança
imaginativa: «Duradouro foi o meu sonho infantil de que o mundo me pertencia,
que somente o presente existia, que tudo se achava arrumado em volta de mim
para tornar-se um belo brinquedo… Tudo era prenhe de realidade e tudo era
prenhe de mágica, os dois cresciam conscientemente lado a lado, ambos me
pertenciam… Como era diferente o aspecto da nossa porta dianteira, o barracão
do jardim e da rua em uma noite de domingo, confrontado com a manhã de
segunda-feira! Que semblante inteiramente diverso o relógio da parede e a
imagem de Cristo na sala de visitas apresentavam no dia em que o espírito do
vovô dominava, em confronto com aqueles dias quando dominava o espírito de meu
pai, e como tudo isto mudava outra vez e por completo naquelas horas quando não
havia mais o espírito de pessoa alguma, senão o meu próprio, dando às coisas
sua assinatura, quando minha alma brincava com as coisas e lhes conferia nomes
e significados novos… Como era pouco o que se mostrava fixo, estável,
duradouro…».
Em
1924, o futuro amigo íntimo (a essa altura, longe disso; apesar de se
conhecerem há muitos e muitos anos) Thomas Mann lançava A montanha mágica.
Hesse, por sua vez, sofrendo com a ciática, passou algumas semanas na estação
de águas de Baden. Escreveu então uma longa e apaixonante crônica da sua
estadia, que parece ser a contrapartida miniatural do enciclopédico e ciclópico
livro do colega. Uma joia rara, desde o momento em que ele desce na estação,
reconhecendo seus “companheiros” e “concidadãos” no universo da ciática, ao
mesmo tempo sentindo-se superior por poder andar um pouco mais desembaraçadamente,
sem tantos indícios de invalidez: «Via-me cercado de longe e de perto por
colegas sofredores, competidores junto aos quais eu era vastamente sofredor.
Que sorte a minha ter vindo a tempo, ainda na primeira etapa de uma ciática
camarada, ainda com os primeiros sintomas débeis de artritismo inicial! Fazendo
a volta e apoiado na bengala fiquei olhando o leão-marinho por algum tempo, com
aquela sensação conhecida de satisfação, provando que a língua não pode ainda
exprimir os processos psicológicos, pois os opostos linguísticos, maldade e
solidariedade, aqui se encontram unidos com a maior profundeza».
A partir daí não há uma página em que o leitor não tenha um trecho
deslumbrante em sua percepção da natureza humana, dos próprios processos íntimos
neuróticos (a insônia e seus tormentos, e a premente, mas quimérica necessidade
de encontrar um quarto de hotel “tranquilo”). Enfim, uma obra-prima de um
mágico que tirava existências da cartola.
Notas:
Notas:
1 Publicada primeiramente pela
Civilização Brasileira.
2 Essa polarização reaparecerá nas
trajetórias dos protagonistas de um grande romance da maturidade de Hesse, Narciso
e Goldmund (1930).
3 Traduzido no Brasil por Herbert
Caro, também em 1965.
4 Bom lembrar que a “individuação” é o
objetivo da psicanálise junguiana.
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