Mulheres de cinza, de Mia Couto
Por Aurélio Furdela
Chamou-me a atenção para a leitura do mais recente livro do
respeitável escritor Mia Couto, uma apreciação feita por um companheiro das
lides literárias, dizendo que por razões profissionais, lera o Mulheres de cinza*, tendo concluído que estávamos diante de uma grande obra literária,
talvez a melhor do autor em toda sua carreira. Fim-de-semana seguinte, outra
coisa não me ocuparia, senão a leitura do romance, uma leitura ferida
do grande defeito que marca um escritor, diante de uma obra de ficção, seja ela
de poesia, prosa ou teatro, visto que, na verdade, um escritor não lê,
reescreve com os olhos os livros que lhe chegam a mão.
E, na leitura do Mulheres de cinza, também deixei-me embalar naturalmente por
este defeito congénito, que arrisco-me a dizer que persegue a todos os
escritores, lendo não passivamente a prosa que se propõe conduzir o leitor a
Inharrime. Porque também bastante elogiada esta obra, e muito realçados os
aspectos positivos da mesma, vou-me ater tão-somente ao que não gostei do livro.
Algo que me pareceu caro a partida ao autor, é a estratégia
narrativa, recorrendo a uma personagem-narradora, na primeira pessoa
gramatical, devendo assim, no mínimo, conhecer as outras personagens e os
contornos dos eventos da história. Logo nas primeiras páginas, o romance expõe
uma complicada mescla de factores culturais, tradicionais e modernos, sendo
impossível outro caminho, além do ínvio caminho da inverosimilhança.
Confesso que desde o começo da leitura do Mulheres de cinza, não
consegui abandonar aquela sensação de estar mesmo a ler um livro de ficção,
visto que a narração não conseguia desprender-me da ideia de que a história que
lia era uma mera imitação do real.
Recuando no tempo, um episódio que não me escapa a memória, é a impressão que experimentei ao ler Cem anos de solidão, do mestre Gabo. Na altura, era eu aluno da Escola No Caminho da Vitória, da ADPP na Machava, sendo que, como todos outros alunos da escola, era obrigado a trajar um uniforme de calças azuis e camisa branca, um único par que devia ser lavado aos finais de semana. Num belo domingo de sol escaldante em Maputo, lia eu o Cem anos de solidão, enquanto o meu uniforme escolar secava no estendal que atravessava o quintal da casa dos meus pais de uma ponta a outra. Começou a chover em Macondo, uma chuva que duraria, se a memória não me deixa falhar, quatro anos, onze meses e dois dias.
Recuando no tempo, um episódio que não me escapa a memória, é a impressão que experimentei ao ler Cem anos de solidão, do mestre Gabo. Na altura, era eu aluno da Escola No Caminho da Vitória, da ADPP na Machava, sendo que, como todos outros alunos da escola, era obrigado a trajar um uniforme de calças azuis e camisa branca, um único par que devia ser lavado aos finais de semana. Num belo domingo de sol escaldante em Maputo, lia eu o Cem anos de solidão, enquanto o meu uniforme escolar secava no estendal que atravessava o quintal da casa dos meus pais de uma ponta a outra. Começou a chover em Macondo, uma chuva que duraria, se a memória não me deixa falhar, quatro anos, onze meses e dois dias.
O cenário de chuva de Macondo envolveu-me de tal forma que dei comigo a
correr escadas abaixo, para tirar o meu uniforme que secava ao sol no quintal
da casa 204 da Rua Fontes Pereira do Melo, na Malhangalene, onde parecia estar
a cair a mesma “chuva que chovia” no livro. Lendo Mulheres de cinza, não me
senti nem pouco mais ou menos envolvido na atmosfera da estória que, sem ser
uma simples cópia, deve aproximar a ficção à realidade, através de uma
coerência que empresta alguma verosimilhança a ficção narrativa.
A estratégia narrativa, de uma personagem-narradora, exige a esta
entidade, o domínio da cultura ou um profundo conhecimento sobre o meio social
dos bantu, no qual estão mergulhados muitos dos personagens que desfilam no
romance. Sobre a construção de personagens, vale a pena aqui lembrar
Graciliano Ramos, ao referir que “só conseguimos deitar no papel os nossos
sentimentos, a nossa vida. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só
podemos expor o que somos.”
E, para quem conhece o universo dos moçambicanos de descendência bantu, seja de
que quadrante for, e não interessa se azul ou verde, sabe que a figura do pai e
da mãe nestas sociedades não se esgota nos indivíduos por eles gerados, se
alargando deste modo à comunidade na qual se inserem. Não é prática neste
ambiente o uso de pronomes possessivos, isto em referência ao pai ou mãe de
cada membro da comunidade. Na cultura ocidental, até mesmo nalguns círculos
urbanos de Moçambique, onde o individualismo é característica dominante,
pode-se ouvir dizer, por exemplo, “o nosso (meu) pai foi a machamba” , “a nossa
(minha) mãe foi ao mercado”, ou por outra, “Tate wathu atsute tembweni”; “mame
wathu atsute bazara”, mas numa comunidade marcadamente de origem bantu, ainda
por cima dos finais do século XIX, isto não se traduziria da mesma forma, pois
pesam aí aspectos antropológicos nada desprezíveis.
O pai biológico de um
moçambicano de descendência bantu pertence também a uma não desprezível franja
de filhos da comunidade, entre primos, amigos, incluindo afilhados dos seus
progenitores se os houver, tendo me soado a estranheza que Imani,
personagem-narradora do Mulheres de cinza, ao longo da estória repita frases do
tipo “era a nossa mãe que se ocupava da limpeza do pátio”, “o meu pai nunca
esteve de acordo…”. Esta possessividade escapa por demais aos elementos
culturais que caracterizam os va txopi, que em bom txi txopi diriam “mame ngene
a ngatxi hiyela m’thanda” ou “Tate a si tumeli”, isto é, “mamã é que se ocupava
da limpeza do pátio” ou “papa nunca esteve de acordo”. Não basta que Imani fale
em português, ainda por cima aprendido junto de padres, para que ela se
desvincule do seu substrato cultural. Colocada esta relação e formas de
tratamento entre filhos e pais, como aparece no livro, mesmo reconhecendo que
estamos diante de uma “grande ficção”, mas, em descuido, não oferece uma
aproximação ao real, desnudando assim a farsa e mantendo o leitor aquém do
arrebatamento que caracteriza os grandes livros.
Deixando este aspecto de relacionamento social, dentro da comunidade txopi, da
qual pertenço pela costela materna, e entrando no mundo dos espíritos, Imani, a
um dado trecho da prosa desenvolve que “Como manda a tradição, o nosso pai foi
auscultar um adivinho.” Aqui ficamos com a sensação de que o adivinho é que
estava em aflição, buscando a cura no pai de Imani, visto que a um adivinho não
se ausculta, consulta-se e este, por sua vez, ausculta, ou perscruta os
ossículos mágicos.
Às vezes não nos basta o domínio das técnicas de escrita e
da língua, pois é preciso que esta armadura esteja forrada de um vasto
conhecimento sobre as sociedades que nos propusemos ficcionar. Existe um nível
de conhecimento sobre uma determinada comunidade que não se assimila de ouvir
dizer ou contar, requerendo para tal uma interacção entre indivíduos, sejam
eles originários dessa comunidade, ou não, assimilando este último as práticas
e/ou no mínimo entender a lógica das suas vivências. Geralmente, o pronome
possessivo é aplicado, quando se trata de pais, em situações em que se regista
um desvio no convívio normal do dia-a-dia, por exemplo, em caso pedido de
socorro, “mame wangu ni lamulele”, em casos de problemas, por exemplo, chega um
indivíduo (ou mesmo o pai da família) zangado e se dirige ao filho da casa: mame
wako a pwala hayi? (Onde esta a tua mãe?).
Outrossim é a evolução histórica de alguns conceitos, como Tribo, facto que sai
bastante caro à personagem-narradora, e em última instância, ao próprio autor.
A ideia de assunção desta nomenclatura, tribo, nos finais do século XIX, por
parte de Imani, personagem-narradora, parece bastante anacrónica, ou no mínimo,
duvidosa, ao referir que “sou negra, sou VaChopi, uma pequena tribo no litoral
de Moçambique.” Neste trecho sente-se claramente uma incisiva interferência,
desferida pelo autor ao curso da narrativa, tornando a narração de Imani um
tanto ou quanto improvável, à semelhança do seu próprio nome: Imani, que
denuncia uma levíssima ideia de se tentar impressionar com o exótico.
Antes de terminar, podia referir-me a aspectos como a falta de coerência da própria narrativa. Ora vejamos:
"[o nosso pai, Katini,] murmurou uma espécie de ladainha antes de partirmos por um atalho que despontava na ténue luz da madrugada. Acabáramos de atingir a primeira clareira quando fomos surpreendidos por vozes vindas do mato”
Antes de terminar, podia referir-me a aspectos como a falta de coerência da própria narrativa. Ora vejamos:
"[o nosso pai, Katini,] murmurou uma espécie de ladainha antes de partirmos por um atalho que despontava na ténue luz da madrugada. Acabáramos de atingir a primeira clareira quando fomos surpreendidos por vozes vindas do mato”
Este trecho dá a ideia de que as duas personagens partiram, deixando
para trás o pedaço de chão que Katini riscara com um pau os nomes dos seus
antepassados. Mas num outro desenvolvimento o leitor é inesperadamente
convocado pela personagem-narradora para o mesmo cenário “Foi então que
reparei: o agressor tombara ao pisar no chão onde estavam escritos os nomes.”
Com que magia? O chão terá seguido as duas personagens, enquanto estas
caminhavam, ou então o soldado Nguni era um autêntico pernilongo?
Por estas e outras razões que aqui não mencionei, e para terminar, confessar
que não era isto que esperava encontrar no Mulheres de cinza, sobretudo depois
que me foi dito que estávamos diante de uma grande obra literária, talvez a
melhor do autor em toda sua carreira.
* Por razões desconhecidas, o romance de Mia Couto foi publicado no Brasil com o título de Mulheres de cinzas, quando o título original aparece como Mulheres de cinza. A simples alteração perverte o sentido do texto, afinal, o termo no plural remete o leitor brasileiro para outro sentido, o de mulheres vestidas de cinzas, por exemplo, enquanto o sentido primário e único é o de ser estas mulheres feitas de cinza.
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