Matar em nome de Deus
Por Pilar
del Río
Matar em
nome de Deus é fazer de Deus um assassino, disse José Saramago. Caluniar,
difamar, plantar ódio e incitar rancores em nome de Deus é fazer de Deus um
canalha, acrescento com mais modéstia embora com igual firmeza. Assassino,
canalha. Não são estes os adjetivos que frequentemente se aplicam a Deus, mas
se olharmos mais longe ou inclusive prestarmos atenção ao ruído que nos circunda,
são os qualificativos que saltam primeiro porque, em nome de Deus, de qualquer
deus inventado pelas culturas ou homens, se perpetraram e se perpetram os
piores crimes e as atrocidades mais vergonhosas. Tanto no âmbito do público como
na esfera privada, onde a consciência parece não se bastar e necessita recorrer
a dogmas para evitar enfrentar a capacidade de decidir e de escolher de acordo com a razão.
In nomine Dei é uma peça de teatro que
reflete a irracionalidade que nos habita e na qual habitamos. Saramago, nesta
obra, conta um feito real: a matança que com sanha se enfrentaram católicos,
luteranos e anabaptistas na cidade de Münster no século XVI; quando, se
questionavam se o batismo deveria ser na idade adulta – como defendiam os anabaptistas
– ou ao nascer, como reclamavam os católicos, entraram numa espiral de
violência e delírio que acabou convertendo todos em bestas nefandas, em
torturadores, em perturbados que não inspiram nem lástima nem compaixão mas o
mais profundo desprezo, pese os sofrimentos padecidos, pese o número de vítimas
que se deixaram levar à matança seguras de obter o paraíso, sem se dar conta de
que tal ato de coragem, o de morrer quando não era sua hora, o de matar, apesar
de estar proibido, colocava Deus, que era o mesmo para uns, para outros e para
todos, como um carrasco, num segundo dilema: a quem receberia como seus, a quem condenaria ao
fogo eterno ou salvaria para sempre. Não sabemos qual foi a lógica de Deus nem
para o caso importa: o definitivo é que as milhares de pessoas que morreram sacrificadas
em Münster por uma causa religiosa prejudicaram ainda mais a ideia de Deus no mundo.
E assim chegamos até hoje.
Quando Saramago
escreveu In nomine Dei aviões de passageiros
não haviam sido jogados contra as Torres Gêmeas de Nova York, nem haviam
colocado umas bombas nos trens próximo a Madri. Tampouco, com um nome apocalíptico
criado por um lince do Pentágono, haviam destruído os escombros que outros haviam
deixado no Afeganistão e no Iraque as crianças podiam ir às escolas sem que
explodissem bombas de estranhas composições e a leucemia não era essa praga que
te espera no sangue sem que consigas chegar em casa com o corpo intacto. Em 1993,
quando Saramago escreveu esta obra, alguns religiosos fanáticos não haviam feito
de Alá um assassino de pessoas com nomes e retratos em nossa memória, nem
alguns cristãos de não sei quais confissões financiavam, em países que são próximos,
porque o planeta tem uma dimensão humana, operações petroleiras e de outras índoles
com uma moeda que invocam a Deus, e que assim convertem, enquanto ninguém o
remedia, em testamento de todos os tráficos que se realizam com o papel que
leva estampado seu nome.
In nomine Dei não é um panfleto nem um sermão
laico, é um obra literária em que um humano expressou sua melhor condição, que
é a de pensar. E por pensar, sentir compaixão de quem, cada dia, por assumir
umas crenças que qualificam de divinas, consideram que os demais são réus de
culpa, seres alheios ao paraíso. Saramago sabe que construímos edifícios admiráveis
e cárceres onde prendemos a nós mesmos e aos outros. E fazemos isso em nome de
Deus como se fosse uma defesa. Não é. O mundo está povoado de guerras e não por
seres humanos. Cada cultura quer impor sua norma e cada pessoa, sobretudo as
que acreditam-se escolhidas, tentam introduzir seus códigos nos outros. Pobre de
ti se caíres fora: te matarão ou te reduzirão a nada. Inventaram Deus para
esmagar com mais força. E se armaram, os que em nome de Deus reprimem, matam, impõem,
ridicularizam ou vejam a ideia de um ser supremo acolhedor a todos, seja qual
for nossa cor, usos, costumes ou ritos. Talvez essa ideia, sim, houvesse sido boa e
humana, o mal é que ela não ocorreu a ninguém. Por isso as religiões não são aliadas
da humanidade, e sim um estorvo no processo de humanização a qual nunca findamos
alcançar.
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