Julio Cortázar: “As coisas me chegam como um pássaro que pode passar pela janela”

Por Emma Rodríguez



Há muitas fotografias de Julio Cortázar que nos ajudam a situá-lo em seus lugares de trabalho, ante a máquina de escrever, armando as peças diversas de suas histórias, sempre jogando. Mas ao ler suas Aulas de literatura, livro que compila as aulas ministradas na Universidade da Califórnia, Berkeley, em 1980, a imagem emergente e viva em toda obra é a do professor. Andava a longos passos pelo espaço fechado da sala de aula, anotava palavras, frases, na lousa, convidava e se sentia à vontade conversando com seus privilegiados alunos? Sondemos, mas, sem dúvida, os alunos deviam sentir-se tocados com uma varinha mágica a pensarem na sorte que tiveram de escutar um professor nada comum, o professor “menos pedante do mundo”, como escreve no prólogo do livro Carles Álvarez Garriga.

As aulas de Cortázar gravadas e depois transcritas, nos seduzem porque manifestam a capacidade do escritor na transmissão de conhecimentos e experiências, mas, sobretudo, porque são impulsões que refletem sobre si próprio e seu processo de escrita. Já no primeiro encontro o autor se mostra absolutamente franco e humilde. Nada de grandiloquências. “Sou autor e leitor de contos e romances com a mesma dedicação e o mesmo entusiasmo”, foi a primeira frase que pronunciou antes de entrar no conteúdo principal, centrar-se em si mesmo e começar a contar o que os ouvintes queriam saber: o que o motivava a escrever, quais impulsos o levaram a contar histórias inesquecíveis, de que maneira as inventava e se situava entre os demais escritores latino-americanos.

“Sempre escrevi sem saber ao certo porque faço isso, movido um pouco pela sorte, por uma série de casualidades: as coisas me chegam como um pássaro que pode passar pela janela”, confessava, estabelecendo três etapas diferentes em sua trajetória: uma primeira que denominava estética; uma segunda, metafisica e uma terceira, história. Nesses três planos sucessivos, nem sempre excludentes, com atenção a descobertas e experiências vitais, Cortázar se resumia e se explicava como escritor.

Primeiro, quando jovem, caminhava junto a outros companheiros de geração, homens e mulheres de Buenos Aires de classe média, seguindo o rastro da literatura de então, concentrado em seus valores estéticos e poéticos, “com os olhos fixos em alguns casos em modelos ilustres e em outros num ideal de perfeição estilística profundamente refinada”. Assim explicava, deixando claro que então nenhum desses jovens era consciente da história dramática que estava acontecendo no mundo.

A Guerra Civil em Espanha e a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, lhes chegavam como algo distante, através da leitura dos jornais, nas conversas nos cafés em que se posicionavam contra Franco e o nazismo, a favor da República e dos aliados, sem que a implicação apenas ultrapassasse para o interior da seara teórica. “Nunca nos demos conta de que a missão de um escritor que antes de tudo é um homem tinha que ir mais além...”, lamentava Cortázar, apontando em sua autocrítica o passo até a atitude comprometida que acabaria, mais tarde, definindo-o.  

Na verdade, o grande valor deste livro é mostrarmos a evolução de Cortázar até ao compromisso, seu passo do eu aos nós. “Embora nesse momento em que minha participação e meu sentimento histórico praticamente não existiam, algo me disse muito cedo que a literatura – inclusive a do tipo fantástica e imaginativa – não estava unicamente nas leituras, nas bibliotecas e nas conversas do café”, seguimos suas palavras. Esta primeira lição é uma peça absolutamente reveladora porque nela estão expostas magistralmente as chaves do pai dos cronópios. Os princípios, desafios e descobertas de Cortázar contados pelo próprio Cortázar.

Ante seus alunos de Berkeley o escritor foi se analisando. Uma viagem até seu interior compartilhada, estimulada, por reflexões em voz alta, por perguntas e respostas. No decorrer dessa viagem particular Cortázar recobrou o jovem que, embora seguisse admirando o estilo, a genialidade e excelência de alguém como Borges, já começava a participar dos movimentos de rua, a sentir-se atraído pela linguagem popular, guiado nesta trama do caminho por Robert Arlt, um autor que nesta etapa de transformação o influenciou poderosamente. E depois viajou para a Europa, Paris, onde deu vida a uma personagem essencial, Charlie Parker, O perseguidor, personagem que lhe permitiu sair de si mesmo, de seu estado de ensimesmado com o estético e ir ao próximo.

A seus alunos de Berkeley, Julio Cortázar lhe contou que, a partir desse momento, sem ser filósofo nem estar dotado para a filosofia, começou a interessar-se pela psicologia de seus protagonistas, a perguntar-se sobre o destino humano e seus mistérios. Aí dava por inaugurada a fase metafisica, cujos frutos são dois romances: Os prêmios e a mítica O jogo da amarelinha. De ambas obras, sobretudo da última, o escritor falou numa de suas aulas, assim como da direção que o conduziu até a preocupação pelos indivíduos concretos e suas questões e também pelas sociedades, os povos, as civilizações, os conjuntos humanos. “A posição histórica supunha romper com o individualismo e o egoísmo”, sublinhava, referindo-se de novo aos “caminhos curiosos, estranhos e talvez um pouco predestinados” que o conduziram nessa direção: começando pela guerra de libertação da Argélia, que seguiu muito de perto, e analisando depois o estopim da revolução cubana, um feito crucial em sua biografia.

“Estive misturando-me cotidianamente com um povo que nesse momento se debatia frente às piores dificuldades, que lhe faltava tudo, que se via preso a um bloqueio sem qualquer piedade e sem dúvida lutava por levar adiante essa autodefinição que havia dado a si mesmo pela via da revolução”, explicava. Os estudantes cada vez mais entregues, muito atentos ao escutar Cortázar fazer a seguinte declaração de princípios: “Nesse momento, por uma espécie de brusca revelação, senti que não era apenas argentino: era latino-americano [...] não somente era um latino-americano que estava vivendo isso de perto, mas que isso me mostrava uma obrigação, um dever...”

Aulas de literatura é, sem dúvida nenhuma, uma entrega básica para aproximar-se de e entender Julio Cortázar. Além da indagação profunda sobre seu próprio itinerário, o autor se dirigiu aos seus alunos para falar-lhes, por exemplo, do conto: “Alguma vez comparei o conto com a noção de esfera, a forma geométrica mais perfeita no sentido de que está totalmente fechada em si mesma e cada um dos infinitos pontos de sua superfície são equidistantes do invisível ponto central. Essa maravilha de perfeição que é a esfera como figura geométrica é uma imagem que me vem também quando penso num conto que me parece absolutamente bem realizado”, dizia, passando a relacionar o conto com a fotografia e o romance com o cinema.

“Para mi as fotografias mais reveladoras são aquelas em que por exemplo há duas personagens, com uma casa ao fundo e logo talvez à esquerda, onde termina a foto, a sombra de um pé ou de uma perna. Essa sombra corresponde a alguém que não está na foto e ao mesmo a foto está fazendo uma indicação cheia de sugestões, apelando a nossa imaginação para dizermos: ‘o que havia ali além?’. Há uma atmosfera que partindo da fotografia se projeta fora dela e creio que isso é o que dá grande força a essas fotos que não são sempre tecnicamente muito boas nem mais memoráveis que outras: há muitas mais espetaculares que não têm essa auréola, essa aura de mistério. Como o conto, são ao mesmo tempo uma estranha ordem fechada que está lançando indicações que nossa imaginação de espectadores ou de leitores pode recolher e converter num enriquecimento da foto”, argumentava Cortázar. Impossível resistir à tentação de transcrever este extrato porque diz muito de sua maneira de ver e de narrar, mas também do que buscamos em sua literatura quando a lemos.

Há outra passagem muito interessante nesta primeira lição em que o autor volta a sentir-se parte do compromisso da literatura latino-americana e fala da “revolução de dentro para fora”, dessa sedução dos leitores não exclusivamente pelo viés literário ou intelectual, mas pela possibilidade de oferecer-lhes ferramentas para que ampliem sua informação sobre o mundo cultivem sua compreensão sobre. Há tantos atrativos, tantas sugestões neste livro que é impossível eleger uma ou deixar de sublinhá-las. Já no turno das perguntas dos alunos, das que também se dá por conta cumprida, há uma especialmente significativa sobre a recepção da obra, sobre o que se entende por êxito.

A pergunta dá pé a Cortázar para falar do que entende por Best-Seller, “esses imensos catataus que certa gente compra nos aeroportos para começar as férias e autoipnotizar-se durante uma semana”, destaca. E segue explicando: “Há um verdadeiro contrato entre um senhor que escreve para esse público e o público que lhe dá muito dinheiro comprando os livros a esse senhor, mas isso não tem nada a ver com a literatura. Nem Kafka, nem Maupassant, nem eu escrevemos assim, e perdão por me colocar no trio”.  

Espontâneo, jovial, reflexivo, profundo, próximo, é este Cortázar professor, que noutra de suas aulas fala dos distintos tipos de contos, da musicalidade e o humor na literatura, do erotismo, da presença do elemento lúdico em sua obra, especialmente em O jogo da amarelinha, um romance essencial para tantos leitores e leitoras que o próprio Cortázar, já desde sempre, chega a criticar pelo excesso de individualismo e egoísmo de Oliveira, seu protagonista. É uma delícia visualizar o escritor no momento em que dava conta do processo de maturação da escrita de O jogo da amarelinha assim como de outras entregas suas, caso de O livro de Manuel, onde leva ao extremo sua ideia de fazer entrar a História nos livros, neste caso, o horror, as torturas da ditadura argentina enquanto o autor estava no exílio, convencido de que se podia influenciar a partir da literatura tomada de consciência, firme na ideia de que era necessário engajar-se, participar ativamente, envolver-se politicamente.

Cortázar buscou sempre leitores cúmplices, críticos, ativos. Deles falou também, amplamente, aos seus alunos em Berkeley, dele nos fala quando avançamos com a leitura de suas aulas. Há um momento em que nos diz: “Cada dia que passa me parece mais lógico e necessário que vamos à literatura – sejamos autores ou leitores – como se vai aos encontros mais essenciais da existência, como se vai ao encontro do amor e às vezes da morte, sabendo que formam parte indissolúvel de um todo, e que um livro começa e termina muito antes e muito depois de sua primeira e de sua última página”.

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